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Quando os peregrinos chegavam de carroça e havia procissões com mil anjinhos

Quando os peregrinos chegavam de carroça e havia procissões com mil anjinhos

João Matos Cravidão recorda a festa antiga e a beleza das moças que vinham de fora

João de Matos Cravidão nasceu em Cabeção (Mora), viveu a juventude em Almeirim e reside em Coruche desde 1940. Aos 86 anos, é daqueles cidadãos que está em quase todas as iniciativas públicas realizadas na vila. Foi dirigente associativo em várias colectividades, jogador de futebol e negociante de madeira, actividade que seguiu do pai. Ricardo Carreira

Franzino, bem-falante, simpático e de indumentária atilada, João de Matos Cravidão é um dos personagens característicos da vida e da vila de Coruche. Não é filho da terra mas ali viveu grande parte da vida pessoal e profissional. Foi negociante de madeiras, jogou futebol e foi dirigente de várias associações. Só em 2002 abrandou o ritmo com o aviso sério de dois enfartes. Cada vez que há inaugurações, eventos e actividades ligadas a Coruche, João Cravidão faz questão de marcar presença. É assim que retribui como aqueles que durante muitos anos responderam aos seus apelos enquanto dirigente associativo. Nem do alto dos seus 86 anos recusa entrar numa espiral de passividade. João de Matos Cravidão nasceu a 25 de Junho de 1924 em Cabeção, concelho de Mora, distrito de Évora. O pai e os tios eram negociantes de madeiras e partiram para Coruche e Almeirim à procura de pinhais. Com cinco anos, João Cravidão foi viver para Coruche, onde a família montou um armazém. Depressa rumou a Almeirim, onde estudou até aos 16 anos. Viveu junto à escola e igreja. Tinha em mente ser regente agrícola mas não terminou o segundo ano da escola primária.Almeirim deixou-lhe marcas positivas. Na igreja ajudou o padre a fazer casamentos, baptizados e as novenas. Com os amigos, lembra-se de ir às amoras para a estrada entre Alpiarça e a Tapada. Jogou à malha, ao pião e ao berlinde. “Todos brincavam com todos independentemente da classe social. Até o velho Lico, o maior lavrador de Benfica do Ribatejo, viu o pai de carroça e convidou-o a beber um copo”, exemplifica, comparando com a realidade de Coruche. Regressou à vila do Sorraia com 16 anos e aos 17 começou a dirigir o armazém do pai, a troco de 25 tostões por semana. Jogou à bola no Bairro Alegre Futebol Clube, clube criado à base de miúdos que moravam na zona junto ao Sorraia. Da junção com o Bairro Novo veio a nascer o Grupo Desportivo O Coruchense. João Cravidão é que só fez um jogo pelo clube na III Divisão. “Fiz uma jura de que se partisse os óculos deixava de jogar. Logo do primeiro jogo quis fazer um golo de cabeça, acertei com a cara na bola e parti os óculos. Foi remédio santo”, recorda com um sorriso.Orquestras de música ligeira e romances lidos à luz de candeiaA não ser alguns bailaricos, pouco havia que fazer à noite na década de 40 do século passado. Foi nesses momentos que João Cravidão devorou livros à luz de candeia ou de candeeiro a petróleo. Livros que foi comprando, aos poucos, na livraria Maia, que hoje existe ainda em frente aos Paços do Concelho. Leu colecções inteiras de Aquilino Ribeiro, Fernando Namora, Camilo Castelo Branco, e de outros autores, especialmente romances. A música é outra das suas paixões. Diz ter cerca de 1500 discos de vinil, sem esquecer CD e DVD. Elegeu o som das orquestras de música ligeira, como a de Glenn Miller. Apaixonou-se pela música clássica que lhe acalma o espírito.O sótão de casa, transformado em escritório, é local de recolhimento. Com a caneta de tinta permanente escreve em folhas A4 poesia e romances construídos na mente. Nada que tenha editado. Os textos vão ficando arrumados dentro do arquivador. Pessoa organizada, João Cravidão guarda em dossiers a história da sua passagem pela vida e pelas associações. Através de cartões de identificação, actas, documentos, certificados, diplomas. “Quem não tem memória não tem história de vida”, assegura.João Cravidão casou em 1949 com Ana Rosa, também natural de Cabeção. O matrimónio leva 61 anos. Mais tarde chegou o associativismo. Foi convidado para sócio do Clube Columbófilo sem ter pombos-correios. Esteve na fundação do Clube Ornitológico de Coruche, da Associação de Defesa do Património Histórico e Natural do Concelho de Coruche, da Associação de Comerciantes e da Casa do Benfica de Coruche, associações nas quais exerceu os mais altos cargos. Mas tornou-se benfiquista por um acaso. “Em 1931 a Volta a Portugal em Bicicleta passou em Almeirim e eu fiquei fascinado com a camisola encarnada do José Maria Nicolau, que seguia isolado. Atrás dele passou o Alfredo Trindade. Se o Nicolau viesse de verde, se calhar seria do Sporting”, conta.Festas de Coruche perderam fé e tradição As festas perderam a fé, o respeito e a tipicidade do seu tempo. João Cravidão gostava de ver os peregrinos que chegavam a Coruche de carroça e ficavam dois ou três dias. Uns dormiam nas estalagens, outros estendiam mantas e passavam a noite ao relento junto ao edifício da câmara, conta o coruchense de adopção. Chegou a contar mais de mil anjinhos na procissão da Senhora do Castelo e animais levados como promessas. Os produtores mostravam as suas frutas e, nos bailes, os rapazes abriam os sorrisos com a chegada de moças da região de Almeirim.Não faltaram nessa época as pulhices dos moços. O grupo de João Cravidão até ia para aponte sobre o Sorraia bater em latas ruidosamente para que algum touro conduzido pelos campinos se tresmalhasse. Aficionado da festa taurina, João Cravidão chegou a ir até Badajoz para ver corridas apeadas, mas não se deixa iludir com o negócio montado no país. E não tem planos de ir às corridas das festas. “Família que leve quatro filhos paga 100 euros e já há corridas na televisão. Com uma corrida por ano os empresários pagam o aluguer de uma praça. Não estou para sustentar gulosos nem lhes faço a vontade de dar o dinheiro que eles querem”, garante.“O presidente da câmara, Dionísio Mendes, é um verdadeiro líder”João Cravidão recebeu convites de diversos quadrantes para assumir cargos políticos no concelho que sempre recusou. “Não tenho vocação para político. O que sinto tenho de dizer na cara das pessoas e o bom político não o pode fazer. Não pode deixar falar o coração”, refere, guardando para si as convicções políticas.Sobre a política do concelho, João Cravidão afirma que o presidente da Câmara de Coruche, Dionísio Mendes, é um líder que tem obra feita. “Na câmara fez, em três mandatos, mais do que nos vinte anos anteriores. Falo à vontade porque não sou filiado em qualquer partido e fui um dos que o incentivou a candidatar-se”, recorda.
Quando os peregrinos chegavam de carroça e havia procissões com mil anjinhos

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