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“A prisão era o único sítio do país onde havia liberdade”

António Nabais, filho adoptivo da Póvoa de Santa Iria, actor e autarca combativo

António Nabais chegou à Póvoa de Santa Iria aos 15 anos. Foi trabalhador estudante. Ligou-se ao Partido Comunista inspirado pelo ambiente reivindicativo operário. Passou cinco anos e meio na prisão. Mas não deixou de ler poesia e romances. Foi presidente de junta. Hoje é deputado municipal. O teatro é outra das suas paixões.

Vive na Póvoa de Santa Iria, mas não nasceu cá.Sou natural de Alpedrinha, Fundão. Vim para a Póvoa com 15 anos. Sozinho. O meu pai entendeu que deveria começar a encarar a vida. Tive o apoio de uma pessoa amiga que era o director da fábrica para onde fui trabalhar, a Companhia Industrial Portuguesa. Trabalhava de dia e estudava de noite na Escola Industrial Afonso Domingues, em Lisboa. Começava a trabalhar às 8h00 e saía às 17h00. Às 17h50 apanhava o comboio a correr. Quando as aulas acabavam só tinha um comboio que chegava aqui às duas da manhã. Ficava num quarto que a companhia tinha e comia no refeitório. Aqui me fiz homem. Esteve na fábrica durante muitos anos?Não, porque a PIDE não deixou. Entretanto em 1954/1955 inscrevi-me no MUD [Movimento de Unidade Democrática] Juvenil. Depois no PCP. Estava na tropa quando fui preso pela PIDE. Estive lá cinco anos e meio. Quando regressei a fábrica não me admitiu. Foi quando me candidatei a uma outra fábrica onde permaneci até me reformar aos 64 anos. Como se ligou à política?A ligação surgiu exactamente quando comecei a trabalhar e a tirar o curso industrial. Apercebi-me das dificuldades da juventude. Depois todo aquele meio industrial era bastante forte. Naquele tempo difícil do fascismo o operariado tinha um grande sentimento de reivindicação. O senhor acabava por ser protegido do patrão que não alinhava nesses ideais.Mas eu não tinha que lhe transmitir. Naquela altura funcionava-se clandestinamente. Mesmo com os pais e com os amigos. Ele era meu encarregado de educação. Os meus pais estavam a mais de 200 quilómetros. Que participação política teve no início?No MUD juvenil eram coisas ligadas à juventude. Convívios, festas de confraternização, distribuição de folhetos de uma organização juvenil ligada ao PCP na clandestinidade. Dois anos depois fui convidado para aderir ao PCP. Aí as coisas começaram a ser mais a sério. O que fez de mais perigoso?Era tudo… No sítio onde estamos agora [Quinta da Piedade] existia um olival. As reuniões que tínhamos com o responsável do PCP clandestinamente realizavam-se aqui. De noite, às escondidas. Tinha que levar para a empresa o jornal do PCP: o Avante. Distribuia-o clandestinamente por baixo da mesa a cada um dos militantes e recebia a importância e a respectiva quotização. Depois prestava contas no próximo encontro. Depois era todo aquele trabalho de mentalização das pessoas. Particularmente quando considerávamos que havia necessidade de reivindicar aumento de salários. Foi preso durante o serviço militar. Em que circunstâncias?Não por actividade do serviço militar, onde estava há menos de um ano, mas por toda a actividade que tinha desenvolvido anteriormente. A PIDE quando actuava não era em cima do acontecimento. Procurava tentar prender não um mas uma rede. Éramos controlados e observados. Eles tinham informação por parte dos chamados bufos, homens e mulheres que conviviam connosco e que se prestavam a esse serviço. Quando estava na tropa um dia fui chamado ao comandante e informaram-me que teria que recolher ao estabelecimento prisional da Trafaria. Passado um mês mandam-me regressar à unidade. Nessa altura ía passar à disponibilidade. Quando ía a saír dois fulanos da PIDE seguraram-me pelos braços, meteram-me num carro e começou a situação complicada dos interrogatórios.Tortura?Tortura psicológica e física. Logo para começar foram quatro dias e quatro noites sem dormir. Sujeito a pressão e chapadas para que dissesse aquilo que eles queriam que dissesse. Neguei sempre. Quando estávamos em processo de interrogatório muitas vezes estávamos a dormir e o guarda batia ao postigo às três da manhã e dizia ‘prepare-se para ir à Pide’. A influência que isto tinha numa pessoa... Ali passávamos o resto da noite. Passados uns dias a mesma coisa. Isto durante mais de um mês. Depois do Aljube estive em Caxias. Foram tempos difíceis.Sobretudo no processo de interrogatório. Até ao julgamento, que começou a correr passado 11 meses, estávamos sempre sujeitos a intervenção da Pide, esclarecimentos, exigências. Estávamos presos, mas entendíamos que não poderíamos estar ali passivamente. A prisão era também local de luta. Protestávamos contra determinadas situações, como a alimentação. Numa sala onde deveriam estar sete elementos estavam doze. Protestávamos e depois éramos castigados. Aqui está o meu currículo de castigos [uma folha escrita de um lado e do outro] enquanto preso. Nós dizíamos que prisão era o único sítio do país onde havia liberdade e era verdade. Era a liberdade de se poder falar à vontade, mas estávamos sujeitos a tudo isto. Tínhamos a mania de comemorar datas importantes como o 5 de Outubro. Quando era no render da guarda às nove da manhã cantávamos “A Internacional”. Como se combinava não sei nem me interessava. Quando faziam isso o que acontecia?Passava um dia ou dois e vinha o chefe dos guardas comunicar-nos o castigo que tinha sido endereçado pela PIDE. A PIDE mandava na prisão como mandava nos tribunais plenários que julgavam só os presos políticos. E eu digo-lhe era difícil, doía. Mas também dói um outro aspecto: que muitos elementos da Pide e juízes dos tribunais plenários, que davam sentenças segundo indicação da Pide, tenham vivido pacificamente e não tenham prestado contas a ninguém. Os juízes dos tribunais plenários seguiam as indicações da Pide. Teriam contas a prestar e deveriam ter sido julgados e condenados.O homem que escreveu um poema sobre a árvore a quem taparam as raízesA árvore imponente faz sombra à esplanada do café da Quinta da Piedade, na Póvoa de Santa Iria, e chega aos píncaros do palácio. Tem as raízes tapadas. E por isso, um dia, António Nabais escreveu um poema sobre essa árvore grande. É o seu único poema - “estava mesmo a pedi-las”, – e está guardado numa gaveta. António Nabais esconde-o e diz que não é poeta. Prefere os poemas dos outros e tem a mania de os decorar. “Ó meus amigos desgraçados/ Se a vida é curta e a morte infinita/ Despertemos e vamos/ Eia!/ Vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico/ Como era a Tuna do Zé Jacinto/ Tocando a marcha Almadanim!” [“Mataram a Tuna”, de Manuel da Fonseca].Nasceu no dia 1 de Junho de 1937 em Alpedrinha, Fundão, mas vive desde os 15 na Póvoa de Santa Iria, cidade adoptiva. Foi preso político. Maria Amélia Nabais, a companheira de sempre, mãe do seu filho, foi o seu apoio nos tempos de cárcere. A paixão pelo teatro corre-lhe nas veias. Subiu ao palco pela primeira vez no Cine-Teatro de Alpedrinha aos 14 anos. A peça chamava-se a “Bandeira roubada” sobre o problema das invasões francesas. Depois, já na Póvoa, juntou-se ao Grémio Dramático Povoense. É presidente da Assembleia Geral do Grémio e da Associação D. Martinho. Orgulha-se de ser um dos veteranos do teatro do Grémio e de trabalhar com a juventude. Foi serralheiro e controlador de qualidade. Está na reforma. Costuma dizer a brincar que toma conta de crianças: os seus dois netos Tiago, 14 anos, e Catarina, 11.Lutou para que o mouchão da Póvoa viesse à posse da freguesia, mas a guerra administrativa está parada na Assembleia da República. Foi presidente de junta [1981-1985] e o primeiro presidente da assembleia de freguesia da Póvoa depois da revolução [1976]. Acompanhou o dinamismo das comissões culturais que traziam ao Grémio vultos da literatura e outros áreas. Bebeu as palavras de Alves Redol e Bernardo Santareno e recorda os recitais memoráveis de José Carlos Vasconcelos acompanhado de Carlos Paredes. É actualmente deputado municipal. Um eterno militante combativo. Que “a vida é curta e a morte infinita”.Os livros que os guardas da PIDE deixavam escaparMuitas pessoas aproveitavam o tempo na prisão para aprender.Tínhamos que ocupar o tempo. Eu, que andava a tirar o curso industrial passei a dar aulas ao camponês que mal sabia ler. O camarada formado dava-me aulas a mim. Comíamos, dormíamos e estudávamos na mesma sala. Funcionáva-mos de tal forma que às sete horas da tarde, a hora a que chegava a refeição, o responsável por tratar da mesa avisava-nos e nós perguntávamos: ‘já sete horas’? Tínhamos esse sentimento na prisão. O tempo tinha voado no estudo. Devorei livros, tal como outros, embora já tivesse hábitos de leitura. Que livros leu na prisão?Fiquei com o gosto pela literatura policial. Cheguei a ler Alves Redol que era proibido pela Pide. Não podia entrar na prisão. Então como lá chegavam os livros?Nunca quis saber como lá chegaram. Li “A Mãe” de Máximo Gorki e Hemingway. Alguma literatura estrangeira que passava porque muitos não sabiam o posicionamento político daquela gente. Os fulanos da PIDE, principalmente os guardas, eram maus, mas também eram burros. Havia muita coisa que passava, porque eles não se apercebiam. Eram leituras muito interessantes. Depois fazíamos um debate à volta de determinado livro. Já tinha namorada?Sim. Foi a pessoa com quem casei e que me deu todo o apoio. Os meus pais estavam na terra. Ela andou durante cinco anos e meio a visitar-me. Ia duas vezes por semana. O que lhe levava à prisão?Levava-me o tabaquinho (risos) - na altura fumava – fruta, uns bolinhos e um queijinho. Na hora da refeição era tudo distribuído por toda a gente. Como se conheceram?Eu trabalhava nessa fábrica e ela era filha de um funcionário que residia no bairro da empresa. Conhecemo-nos nos bailes do Grémio. Foi um começo de namoro perfeitamente normal. Saí da prisão em Novembro e casámos em Maio. Durante três meses estive desempregado. Quando cheguei à conclusão de que não poderia voltar à empresa fui procurar trabalho. Agora compreendo melhor o drama das pessoas que estão desempregadas há três ou quatro meses. Eu não estive tanto tempo e já andava em desespero. Uma cidade não se constrói com prédios de rés-do-chão e primeiro andarChegou à Póvoa de Santa iria quando ainda não existiam prédios. A Póvoa de Santa Iria existia principalmente da estrada nacional para baixo. Era relativamente pequena, muito marcada politicamente, como muitas terras aqui da zona. A Quinta da Piedade era um olival. Quando se deu o 25 de Abril de 1974 já se tinha iniciado construção onde existia antes a “galinha assada”, agora bairro da Bolonha. Depois aconteceu a grande expansão urbanística. Claro que isto choca, mas uma cidade não se constrói com prédios de rés-do-chão e primeiro andar. E temos aqui a Quinta Municipal da Piedade...É uma das “obras” de que se orgulha enquanto autarca.Contribui de certo modo para a Quinta Municipal da Piedade. Era um olival, um espaço privado que foi adquirido pelo urbanizador José Maria Duarte Júnior. No processo de negociação exigiu-se ao urbanizador - além de espaços para o quartel de bombeiros, forças de segurança, complexo desportivo e creche - que a parte murada do palácio viesse à posse do município sem custos. Foi um processo que não foi fácil já que o senhor estaria a pensar construir também aqui. Conseguiu-se muito à custa do saudoso presidente de câmara José António Veríssimo a entrega deste espaço à câmara. Nessa altura eu era presidente da assembleia de freguesia.Como vê o mega empreendimento que vai nascer na Póvoa perto do rio?Assusta-nos que metam ali mais uns milhares de pessoas. Não sou contra o facto de haver ali construção e habitação, mas deveria ser uma coisa reduzida para não dificultar a circulação que já é difícil. O problema do trânsito precisava de reorganização e de um estudo apurado. A verdade é que aquela zona não pode ser só verde e de lazer. Têm que existir estabelecimentos e pequena construção. Talvez não aquilo que está previsto: muralhas de cimento. Como olha para zona ribeirinha da Póvoa?Choca-me bastante a situação da zona ribeirinha. É inconcebível que não se tenha resolvido o problema. Está a resolver-se a norte, mas já era tempo de resolver também aqui agora que foi eliminado o bairro dos pescadores. Mas a câmara já apresentou o projecto do parque.Isso já está apresentado há muito tempo. A seguir à estação até estava previsto um grande empreendimento. Acredito que acabe por se resolver. Também não digo que é tudo responsabilidade da presidente de câmara. Mas ela agora é que dirige. Como costumamos dizer: ela agora é que está de serviço.

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