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“Mal de mim quando tiver que deixar de tocar porque o público faz-me tanta falta como o ar que respiro”

“Mal de mim quando tiver que deixar de tocar porque o público faz-me tanta falta como o ar que respiro”

Acordeonista Eugénia Lima vive em Rio Maior e completa este ano oitenta anos de carreira artística

Era uma vez uma menina cujo pai afinava acordeões. Parece o início de uma história feliz mas as histórias felizes fazem-se com luta, trabalho e sofrimento. Sem esforço não é possível chegar tão longe e com tanta vontade de viver.

Há oitenta anos que faz espectáculos. É uma longa carreira. Alguma vez sentiu que tinha sido esquecida?Não. Felizmente não. Onde eu apareço o público dá-me tantas manifestações de simpatia que não posso dizer isso. Eu não tenho sido esquecida. Mas também é verdade que faço para não ser esquecida. Eu apareço e há muitos artistas que não aparecem. Conheço artistas que se fecharam no seu casulo e não aparecem. E as pessoas têm saudades deles. Gostavam de os ver. Mas não sabem deles.Como aparece? Impõe-se. Chega e diz, aqui estou eu?Não apareço só para ganhar dinheiro. Eu toco muito em festas de beneficência. Mas mesmo muito. Até posso dizer que agora são mais as vezes que toco em festas de beneficência do que as que toco a ganhar dinheiro. De todos os concertos só uns dez por cento são a ganhar.E continua a ter o mesmo prazer?O público faz-me tanta falta como o ar que respiro. A última coisa que vou deixar de fazer é deixar de tocar. E mal será de mim quando isso acontecer. Já esteve para acontecer mas felizmente consegui recuperar. Esteve doente? As pessoas não se apercebem disso mas eu tenho a doença de Parkinson. Por causa da doença eu tinha vertigens e tomei um medicamento para as vertigens que me tirou o andar. Foi há três anos. Fiquei numa cadeira de rodas. Quase paralítica. Fiquei sem andar e sem poder tocar. Pensei que nunca mais iria tocar acordeão até ao fim da minha vida. Não conseguia coordenar o som de dois botões. Tentava e era a mesma coisa que estar a pôr a mão em cima de uma pedra, ou de um ferro. Como conseguiu recuperar?Houve alguém que me recomendou um médico das Caldas da Rainha, o dr. Fernando Martins, neurologista. Amigos aqui de Rio Maior, que são a minha família, levaram-me lá. Substituiu-me os medicamentos que eu tomava para a Parkinson e hoje estou assim. (Estica os braços e as mãos mantendo-as firmes, sem um sinal de tremura, em frente ao rosto). Claro que também tive a sorte da doença não me ter atacado com a violência com que por vezes ataca. O médico explicou-me que nestas idades a doença já não ataca com tanta violência. Mas quero dizer às pessoas que têm essa doença que teimem e que façam por viver. Que não desistam de viver.Um artista é obrigado a fazer grandes deslocações. Gosta de viajar? Quando viajo estou sempre ansiosa por regressar a casa. Claro que aproveito para ver o que posso quando estou numa cidade. Gosto de ver coisas diferentes. Coisas bonitas. Mas a nossa casa é a nossa casa. Alguma vez se sentiu mal recebida em algum país?De maneira nenhuma. Sempre fui tratada com muito carinho. A segunda vez que fui à Argentina aconteceu-me algo que ainda hoje me parece inacreditável. Tinha um contrato de um mês. Toquei em três cidades. Buenos Aires, Mar del Plata e Algarrobo del Águila. Durante aqueles trinta dias só comi uma refeição num restaurante. Todas as outras foram em casa de portugueses. Quando estava a almoçar em casa de uns apareciam logo outros a convidar-me para jantar ou para almoçar no dia seguinte. Foi incrível. Quantas apresentações públicas terá feito nestes oitenta anos de actividade artística?Não faço a mínima ideia. Milhares. Em Portugal, em França, Espanha, Alemanha, Bélgica, Áustria, nos Estados Unidos da América, no Canadá, na Venezuela, na Argentina, no Brasil. Fui para o Brasil para estar um mês e acabei por estar lá dois anos. Fui a África com um contrato de três meses e estive lá ano e meio. Angola, Moçambique, África do Sul. Antes dos espectáculos faz alguma preparação especial? Não faço nem nunca fiz. O meu acordeão só sai da caixa para ir para o palco. Sempre foi assim. Nem nunca lhe tremiam as pernas?Isso é diferente. Ainda hoje tremo. E não são só pernas. Tremo toda. Até num simples almoço de amigos eu antes de tocar estou a tremer. Estou cheia de nervos. Enquanto não toco duas ou três músicas não sou eu a tocar. A primeira e a segunda música nunca saem como eu gosto. Depois vou descontraindo e a certa altura estou tão à vontade como se estivesse em minha casa. Mas ao princípio, custa-me muito. Tem algum ritual antes de subir ao palco?Nunca entro no palco sem rezar.Nunca casou? Não tem filhos? Não. Infelizmente nunca tive filhos. A minha vida artística foi uma e a minha vida como mulher foi outra e essa outra não tem história. Não gosto de falar nela. A minha vida com história é a minha vida com o acordeão e é essa que vale a pena contar. Eu tive a sorte de acertar na minha profissão. Tive a sorte de ter acordeões em casa e de ter habilidade para tocar. Saiu-me a sorte grande uma vez na vida. Quem me diz a mim que se eu tivesse ido para direito, como queria quando era nova, tinha sido tão boa advogada como sou acordeonista. Podia ter sido uma péssima advogada ou nem ter chegado a ser advogada. Quem sabe? Aos 84 anos posso dizer que sou uma pessoa feliz. Tenho muitos e bons amigos. Tenho muitas famílias com as quais privo e que são a minha grande família. Não posso começar a citar nomes porque a lista é grande e eu não quero falhar nenhum. Como veio parar a Rio Maior?Vim para Rio Maior depois de ter perdido a minha mãe. Vim para casar. Foi outro fracasso da minha vida. Não vale a pena falar disso. Mas gostei tanto desta gente que fiquei até agora. Toda a gente me estima tanto que estou aqui há 39 anos. Também viveu em Lisboa muitos anos. Das cidades que vi no Mundo, Lisboa é a mais bonita mas não é para viver. Lisboa amedronta-me. Eu sou como a maioria dos artistas, tenho uma sensibilidade muito à flor da pele e Lisboa não me transmite tranquilidade. As pessoas em Lisboa andam angustiadas. Sempre a correr . Sempre com pressa. Sempre tristes. Aqui em Rio Maior as pessoas ainda têm tempo para parar e dar dois dedos de conversa.“Foi por vontade de Deus”As mãos são fortes e estão bem tratadas. Mãos de acordeonista, poderíamos dizer sem mentir. Surpreendentemente têm um aspecto jovem, considerando os 84 anos de Eugénia Lima. A postura é determinada. O discurso vivo e bem disposto. “Nasci em Castelo Branco, na Rua do Espírito Santo nº 13. No dia 29 de Março de 1926. O meu pai era afinador de acordeões. Mário António de Lima. A minha mãe chamava-se Maria do Rosário Martins de Lima”.A menina brincava com os instrumentos que o pai tinha para afinar e um dia estragou um. Foi proibida de entrar na oficina, até ao dia em que se atreveu a contrariar a proibição para ouvir tocar um cliente especial. “ Era um tocar diferente. Quem tocava era um homem a quem chamavam o ceguinho do Ourondo, uma pequena aldeia do concelho de Castelo Branco”, conta.Aconselhado pelo músico e após muita choradeira da filha, o pai de Eugénia Lima comprou-lhe uma pequena concertina. E ela aprendeu sozinha. A primeira vez que actuou em público tinha 4 anos. Foi no cine-teatro Vaz Preto. “A memória desse dia assemelha-se a um fragmento de nuvem. O sr. Tomás Mendes, que era o dono do cinema, levou-me para o palco, sentou-me numa cadeirinha e disse-me para eu tocar. Eu nunca tinha visto tanta gente à minha frente e a certa altura, como estava enervada, enganei-me e parei. Mas eu sempre fui muito espevitada. Levantei-me e disse. ‘Minhas senhoras e meus senhores. Eu enganei-me mas toco outra vez. E toquei’.Tocou e continuou a tocar. Em bailes e festas por toda a Beira Baixa, primeiro, depois em Lisboa, onde se estreou como atracção numa Revista no Teatro Variedades, chamada “Peixe Espada”, aos 9 anos. No mesmo ano tocou na Emissora Nacional num programa do folclore da Beira Baixa, em casas de espectáculos. Em todo o Portugal e pelo mundo fora. Até hoje. Teve dois professores de música mas nenhum de acordeão. O primeiro tocava trompete. O segundo trombone. E tive que criar o meu próprio método para aplicar o que aprendia. Primeiro um método para concertina e depois para um acordeão diatónico. “A primeira vez que vi um método para acordeão foi em França. Tinha eu 20 anos. Era igual ao meu, pois claro. Ainda hoje há quem se admire porque os meus colegas tocam com os cinco dedos de cada mão e eu toco quase tudo com quatro. Foi porque aprendi sozinha. Também dizem os entendidos que eu tenho uma boa mão esquerda. Que é a do acompanhamento. A da harmonia. Como não tinha ninguém que me ensinasse e como a mão esquerda também tinha as sete notas como a direita, eu entendi que a mão esquerda não ia fazer só acompanhamento. Que tinha obrigação de fazer melodia também. Então comecei a tentar tocar com a mão esquerda as melodias que tocava com a mão direita. A inverter. Já perto dos 50 anos de idade obteve o diploma do Conservatório de Acordeão de Paris. Em Setembro de 1984, a União Nacional dos acordeonistas de França atribui-lhe o seu Diploma Honorífico. Em 1986 foi condecorada com a medalha de Mérito Cultural. Em 1980 foi agraciada com o grau de Dama da Ordem Militar de Santiago de Espada e em Outubro de 1995 recebeu o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique.“Adoro fado e cheguei a recusar contratos para não perder algumas touradas”Quantas músicas tem agora o seu reportório?Não faço ideia. Quando era ainda uma criança e comecei a fazer bailes, se acontecia tocar apenas uma noite na mesma terra, tinha reportório suficiente. Se tocava duas ou três noites na mesma terra já tinha que repetir algumas músicas. Os bailes começavam por volta das 9 da noite e chegavam a acabar às cinco e seis da manhã. Eu era muito resistente. Lembro-me de uma vez ter acabado um baile por volta do meio-dia. Quando se esgotava o reportório o que fazia?Repetia aquelas músicas que as pessoas gostavam mais de ouvir. E por vezes improvisava. Fazia músicas no momento. Cerca de 70 por cento das quase 200 músicas que tenho registadas na Sociedade Portuguesa de Autores foram compostas assim. Improvisava e depois quando ia para casa, aperfeiçoava-as. Trabalhava-as. Toca melhor agora do que tocava nessa altura?Acho que nunca atingi o auge. Devia ter estudado mais e podia ter tocado melhor se tivesse estudado mais. Fui sempre um pouco mandriona. E agora a idade e a doença retiraram-me alguma capacidade técnica. Toco mais à base de coração.Que música costuma ouvir? Eu adoro fado. Sou uma doente por fado. O fado castiço, entenda-se. Amália, Lucília do Carmo, Maria Teresa de Noronha, Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos, Fernando Maurício. Continuo fiel aos antigos fadistas. Eu era muito amiga da Amália. Conversávamos muito. Nas minhas actuações costumo tocar uma rapsódia dos fados mais significativos dela. Nunca teve a tentação de cantar?Eu não tenho voz nenhuma, nenhuma. Sou uma negação. Era obrigada pelo meu professor de música a entoar. Mas era uma coisa horrorosa.Do que gosta mais? Fazer arranjos? Compor?Quando podia, gostava mais de compor. Compus até há dez anos atrás. A idade agora já pesa. A cabeça não é a mesma. Como hei-de explicar...começo a estar mais acomodada às necessidades da idade. Gosta de touradas? Sempre fui uma grande aficionada. Chegava a recusar contratos para não perder determinadas corridas. Ia a todo o lado. Mas há muitos anos que não vou. É o comodismo. Vejo na televisão. Escuso de ter aquele problema de arrumar o carro e depois ter que andar muito tempo a pé. Tenho uma quantidade de passe-dobles gravados com nomes de toureiros. O primeiro que gravei foi dedicado a uma senhora chamada Maria Graça que foi a primeira mulher que vi tourear a cavalo. Gravei um dedicado à Conchita Cintron. O último que gravei foi dedicado ao Mondeño. Tem alguma música que seja especial? Fiz uma música que se chama “Minha Vida Meu Sonho” que dediquei ao meu público e ao meu acordeão. Fiz música e a letra. Escreveu uma letra para uma música sua? Isso é invulgar. É uma peça única. O curioso é que as pessoas não sabem que há uma letra mas nos espectáculos trauteiam o refrão. Entra no ouvido e elas trauteiam. E o que diz o refrão?Vem cá meu sonho / Canta comigo/ Leva para longe a Saudade / Traz-me a verdade / Que tens contigo / Vem cá meu sonho / Canção que eu fiz / Leva para longe a tristeza / Dá-me a certeza de ser feliz.Depreende-se do poema que a senhora não vive da saudade.Eu faço o possível por viver cada dia, intensamente. Já não tenho idade para fazer projectos a longo prazo mas procuro viver cada dia da melhor maneira possível. E estou sempre agradecida a Deus por me ter dado tanta coisa que eu nunca esperei ter. Deus foi muito meu amigo. Encostava o queixo ao acordeão para sentir o que tocava porque tinha deixado de ouvir“Estive dez anos sem ouvir quase nada. Entre os 26 e os 36 anos. Aos 40 anos fui operada e recuperei parte da audição. Nessa altura não ouvia quase nada. Só ouvia o que tocava com a mão direita. Para ouvir a mão esquerda encostava o queixo ao acordeão e através das vibrações é que conseguia orientar-me. Depois fui operada e fiquei a ouvir o suficiente para poder tocar. Mas continuo a não ouvir nada do ouvido esquerdo. Do ouvido direito, fiquei com 95 por cento da audição. Agora devo ter uns 85 por cento. Faço uma vida quase normal mas não oiço como as outras pessoas”.O seguro das mãos que nunca fez por causa de uma navalhaOs músicos, instrumentistas costumam ter muito cuidado com as mãos. Alguns até procuram por as mãos no seguro. No seu caso o que faz? Não tenho cuidado nenhum (riso). Nunca pensou fazer um seguro das mãos? Nunca contei esta história mas já que me fez a pergunta, vou contá-la. Uma altura estava a trabalhar em Moçambique e apareceu-me um contrato para ir tocar à Rodésia (actual Zimbabwe). Em conversa com um madeirense que tinha um restaurante na cidade onde fui actuar, fiquei a saber que havia lá uma companhia que fazia seguros das mãos aos artistas. O senhor ofereceu-se para ir comigo e lá fomos. Acontece que, pelo caminho, vi uma navalha na montra de uma loja e decidi comprá-la.Uma navalha?!! É mulher de armas??!!!Eu sempre gostei muito de caçar. Quando era nova ia à caça para o Alentejo, com o meu pai e amigos. Portanto lá ia eu a caminho da companhia de seguros quando vi a tal navalha. Era uma daquelas que têm mil e uma utilidades. Saca-rolhas, colher, tesoura....eu sei lá. Nunca tinha visto coisa tão bonita. Entrei, comprei-a e comecei logo a experimentá-la. Foi de tal forma que fiz um golpe num dedo. Mas se foi um golpe!! Tive que ir ao posto médico receber tratamento. Escusado será dizer que o seguro nunca mais se fez. Eu tive que regressar a Moçambique e com o dedo naquele estado ninguém me ia fazer o seguro. E nunca mais pensei no assunto.
“Mal de mim quando tiver que deixar de tocar porque o público faz-me tanta falta como o ar que respiro”

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