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A menina que não se limitou a ver passar os comboios

Carla Filipe cresceu em Vila Nova da Barquinha, junto à linha de caminho de ferro

A artista plástica Carla Filipe, 37 anos, viveu cinco dias em Vila Franca de Xira para finalizar uma exposição contemporânea com ligação à cidade. O barco varino “Liberdade” é evocado no trabalho “O Povo reunido, jamais será” pela menina que também cresceu junto ao rio, em Vila Nova da Barquinha. A filha de ferroviários recolhia latas que os passageiros atiravam pelas janelas do comboio e coleccionava as exóticas peças.

Na exposição do Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira - “O Povo reunido, jamais será” - utiliza o barco varino “Liberdade” para ter um elo de ligação à comunidade. Utiliza essa estratégia em todas as exposições. É uma forma de cativar?É uma opção que faço. Não gosto muito de expor num formato muito global. Não me agrada a ideia do artista que mostra o trabalho em qualquer espaço. Sou curiosa, gosto de ver a cidade, de ir aos tascos, de conhecer as pessoas. Isso já faz parte de mim. Faz esta abordagem também para chamar mais pessoas?Chamar mais pessoas é o que a televisão faz. Faço o meu trabalho a pensar nos outros, mas é sobretudo para mim. Se for a pensar em estatísticas as coisas perdem-se. Ou seja, a arte não tem que ser democrática. As pessoas aparecem. O público vai-se construindo.Fica muito tempo nos sítios por onde passa?Depende da negociação que consigo arranjar. Mas a ligação à comunidade não é muito profunda. Não faço um trabalho de um sociólogo ou de um arqueólogo. A minha profundidade é mais de habitar a cidade, de percebê-la, de estar. Passou cinco dias numa pensão em Vila Franca de Xira. Que opinião tem da cidade? Já conhecia? Pontualmente. De ficar presa com as cheias quando ia para Lisboa. Como cresci no Ribatejo há relações próximas com Vila Franca de Xira. Senti que, tal como outras cidades, a partir das 22h00 é um deserto. Não há vida na rua. As famílias não saem. Como trabalhava de dia aproveitava para dar umas voltas à noite, mas desisti. Encontrava bêbados na rua. Não são portugueses. Encontrei resmas de pretendentes. Fizeram-me serenatas espontâneas (risos).Isto também acontece em outras cidades. Estive há um mês em Espanha e comparei essa realidade com Portugal. Em Espanha a família vem toda para a rua. E não são só os jovens. É desde a avó ao pai.É sentimento de insegurança ou falta de hábito?As pessoas deslocam-se mais para Lisboa. As grandes cidades também são mais apetecíveis para fazer as compras. Lisboa fica a um quarto de hora. Talvez seja por aí. Ontem queria ir a Lisboa num intercidades, às 22h00, e a bilheteira estava fechada em Vila Franca de Xira. Ninguém vai de intercidades para Lisboa porque é caro, mas eu tenho desconto porque sou filha de ferroviários. Acabei por esperar por um comboio inter-regional. É filha de ferroviários e apesar de ter nascido em Aveiro foi com três meses para Vila Nova da Barquinha. A minha mãe era guarda de passagem de nível e saltava muito de posto de trabalho ao longo do país, mas a nossa família é da zona do Ribatejo. O meu pai trabalhava nas oficinas lá perto. Essa relação dos ferroviários e dos operários aproximou-me muito das lutas dos trabalhadores, dos sindicatos, das greves. Isso sempre me interessou muito desde miúda. Não tinha uma consciência política, mas lembro-me disso. Brincava perto do rio?Tomava banho no rio. Era perigoso porque algumas pessoas morriam. Pagávamos o bilhete e atravessávamos de barco para o lado de lá. Íamos fazer praia. Era onde tinha areia. Viviam onde?Nas casas da CP, junto à linha de comboio, na Barquinha. A minha mãe levantava a cancela. Lembro-me do barulho do comboio. Não me incomodava nada. Era ali que brincava. Quando o comboio passava as minhas bonecas voavam. Havia muito lixo. As janelas abriam-se. Hoje já não se abrem, são vedadas. Havia sempre lixo ao longo da linha. Lembro-me de fazer a colecção das latas de cerveja com umas latas porreiras que mandavam pela janela. Foi a primeira abordagem artística?As crianças têm montes de abordagens artísticas… Mas é verdade que já tinha essa tendência pelos objectos. Se mandassem uma lata que não fosse portuguesa, de um passageiro alemão, por exemplo, simbolizava para mim algo de exótico. Não havia ainda a ideia de que depois poderíamos viajar com facilidade para fora de Portugal. E as compras eram feitas por ali?Lembro-me que íamos comprar bacalhau a Espanha. Ia toda uma comunidade da CP. Pagavam um quarto de bilhete ou nem isso. Eu ia com os meus pais. Era só comprar o bacalhau e voltar. As mulheres traziam quilos a mais e dentro das saias.Porquê. Havia um limite de mercadoria?Sim. E por isso algumas mulheres até traziam o bacalhau preso ao soutien. O fiscal era quase sempre o mesmo. Era um senhor baixinho e muito estranho. Era um trabalho duro?Qualquer trabalho era muito duro. A carga horária era muito maior. Foi uma luta grande para conquistar as sete horas de trabalho. Os turnos eram de 12 a 14 horas. As casas das guardas de passagem de nível eram pegadas. Quem fazia o turno seguinte era a vizinha. Eu era a mais nova de três irmãs. Ficámos lá dez anos. A intenção de qualquer pessoa é poupar para um dia ter a sua casa própria. Estas casas eram provisórias. Algumas não tinham saneamento. Um dia os meus pais construíram uma casa própria.“O Povo reunido, jamais serᔓO Povo reunido, jamais será” – representações gráficas - é o título da exposição contemporânea de Carla Filipe, inaugurada na tarde de sábado, 13 de Novembro, no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira, no âmbito do ciclo “The Return of the Real”. A mostra pode ser vista até 6 de Março de 2011. O título da exposição é uma alusão ao slogan “O povo unido jamais será vencido” que hoje em dia se encontra fragmentado, segundo a artista. “Achamos que o povo tem toda uma consciência política quando não é verdade. As pessoas votam porque votam”, argumenta Carla Filipe. A exposição cruza o grafismo de cartazes reivindicativos com a atmosfera contestatária das colectividades locais de meados do século XX, recorrendo apenas a cores e formas que se insinuam enquanto memória de um gesto de protesto, explica o director do museu, David Santos.Carla Filipe, nasceu em Aveiro, mas cresceu em Vila Nova da Barquinha. Vive e trabalha no Porto. É licenciada em artes plásticas (escultura) pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e mestre em práticas artísticas contemporâneas pela mesma instituição. Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian nos Acme Studios em Londres.

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