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O homem que treinou José Mourinho

Carlos Matias treina ginastas de trampolins em Salvaterra e Santo Estêvão para as grandes competições internacionais

Chegou a treinador após seguir o conselho de um professor de Matemática. E não está arrependido do passo dado. Carlos Matias é um nome conceituado na área dos trampolins e prepara neste momento dois dos quatro ginastas nacionais inseridos no projecto olímpico para Londres 2012. Foi também treinador de outras modalidades e chegou a ser técnico de José Mourinho, quando dirigiu a equipa de futebol universitário do ISEF. “Já na altura era um líder”, diz do agora treinador do Real Madrid.

Qual é o segredo para ter atletas que conquistam tantos títulos europeus e mundiais?Respeito. Os treinadores não são bons, temos é bons ginastas que nos tornam bons treinadores. Não somos conhecidos pelo que fazemos, mas sim pelo que os nossos ginastas fazem. Temos que sentir que conseguimos estar sempre um passo à frente das necessidades dos atletas. Temos que respeitar a possibilidade de sucesso que eles transportam consigo e que colocam no seu trabalho. O segredo é fruto de muito trabalho mas também de muito respeito que sinto pelos meus atletas.É um trabalho solitário?Não. Todo o sucesso que temos alcançado e que podemos vir a conquistar é fruto do trabalho de uma equipa. Tenho um grupo de trabalho e sem ele não conseguíamos os bons resultados que temos atingido. No Clube de Trampolins de Salvaterra de Magos tenho o Hélder Silva e o Amadeu Neves, treinadores que colaboram neste projecto. Em Santo Estêvão tenho o Bruno Nobre e Fábio Vicente. Sem eles não conseguiríamos metade do que temos feito.O treinador tem um papel importante na prestação dos atletas. O que lhes transmite antes das provas?A crença de que é possível ir tão longe quanto eles estejam dispostos a ir. Se confiarem que são capazes e se trabalharem arduamente, se tiverem uma intenção, um propósito e não se desviem conseguem lá chegar. Aqui ou em qualquer parte do mundo. Desde que tenham ambição conseguem o que quiserem. Basta acreditar.Treina atletas para os próximos Jogos Olímpicos.É gratificante saber que existem quatro ginastas para o projecto olímpico em Portugal e dois deles estão em Salvaterra de Magos e Santo Estêvão, a Andreia Robalo e o Diogo Ganchinho, respectivamente. Por que é que eles se destacam actualmente?Esta é uma modalidade de momentos. O resultado de uma prova só diz como é que correu aquele momento, porque a preparação que todos eles fizeram foi intencionalmente muito boa. O que diz sobre os ginastas é como correu aquele exercício que conta para a competição. É preciso sorte mas também muita preparação, porque a sorte dá muito trabalho. O que nós tentamos é colocar todo o trabalho que a sorte exige para que esta possa participar nos resultados.O que sente quando vê os seus atletas a conquistarem medalhas e títulos?Vibro com eles. É fácil imaginar que no momento da vitória eles pensam que todo o esforço que fizeram antes valeu a pena. É uma satisfação muito grande que só quem passa por elas pode almejar alguma vez sentir.Como se lida com a frustração de perder pela diferença mínima?Acontece muitas vezes. É o momento em que temos que manter o foco na intenção, porque a intenção é sentirmos que somos capazes. É sentir que quando desviamos os olhos do nosso objectivo conseguimos ver as pedras que estão no caminho. E esse resultado menos favorável, naquele momento, é uma dessas pedras no caminho. Ou olhamos para a pedra ou olhamos para o caminho. Penso que é importante mantermos os olhos no caminho. O papel do treinador nesse momento é quase só esse.Que tipo de relação tem com os atletas?Muito boa. Creio que eles têm a ideia que não sou um amigo, mas sim o amigo deles. Vêem-me como alguém que sabe o caminho e está preocupado que lhes corram bem as coisas. E que tem conhecimentos suficientes para os ajudar a chegar onde eles querem. Normalmente os treinadores foram atletas. Foi o seu caso?Eu não sou um bom exemplo como atleta, porque pratiquei dezenas de desportos diferentes. Todos eles com sucesso relativo. Só tenho um título de campeão nacional em voleibol, ainda em Moçambique, mas ganhei diversos prémios nas outras modalidades. Pratiquei basquetebol, futebol, hóquei, natação, ginástica, saltos para a água, hipismo. Só no andebol é que não fui federado.Os ginastas do Clube de Trampolins de Salvaterra treinam sem as mínimas condições.Chove no interior do pavilhão e no Inverno treinamos com temperaturas negativas. Tenho por hábito parar o treino para aplaudi-los quando o termómetro chega aos zero graus. São heróis por treinarem nestas condições e mesmo assim alcançarem excelentes resultados.Para quando um espaço em condições?A presidente do município tem-nos ajudado e já nos garantiu que o espaço será ampliado. O que nos afasta deste crescimento não é mais do que conseguir os apoios financeiros necessários para poder fazer a obra. Esta obra exige dinheiro e é intenção da câmara fazer essas obras e vai fazê-las assim que puder. A nós resta-nos esperar que os apoios apareçam porque faz-nos falta um pavilhão em condições.Mesmo assim vêm atletas de todo o país treinar ao vosso pavilhão.É verdade. Temos um dos melhores espaços de treinos de trampolins do país. Além disso, este é dos poucos clubes no país onde existe a possibilidade de treinar em trampolins rebaixados ao nível do solo que tem um fosso de esponjas. É isso que os atrai. Vêm atletas de todo o país.O modo de treinar dos atletas portugueses é muito diferente do modo de treinar dos estrangeiros?Nem é possível comparar. Vivemos uma realidade que não tem nada a ver com aquela com que competimos. Aqueles com quem nós competimos são profissionais e habitam, estudam, crescem e treinam em ambientes profissionais, preparados para o efeito. Não são como os nossos que estudam durante o dia e à noite vão treinar em espaços sem condições, a zero graus no Inverno. É o grande impulsionar do Clube de Trampolins de Salvaterra. Sente o seu trabalho reconhecido?Sinto-me reconhecido nos dois concelhos sobretudo pelas entidades que acompanham mais o projecto. As várias direcções que têm acompanhado os dois clubes penso que também têm a sensação que faço isto por amor. Isto não é a minha profissão, é o meu destino. Se é para fazer é para fazer bem feito. E penso que as pessoas reconhecem o meu sonho de acreditar que é possível em meios pequenos fazer grandes coisas.Valeu a pena os 22 anos que dedicou a este projecto?Bastante. O trabalho e horas despendidas neste projecto têm sido amplamente recompensados pelos resultados que têm acontecido e pela dinâmica que se tem criado. Penso que a visão e o sonho que tive, há 22 anos, de que era possível trabalhar a este nível não era fácil transmitir a outros. Satisfaz-me perceber que hoje existam pessoas que ambicionam, tanto como eu, a possibilidade de continuarmos a fazer coisas maravilhosas.Treinador por vocaçãoO que o levou a tirar o curso de Educação Física?Eu julgava que ia ser veterinário porque tinha boas notas e achava que era a minha vocação.O que o fez mudar de ideias?O meu professor de Matemática do 7º ano deu um sábio conselho aos seus alunos que realmente mudou a minha maneira de ver a vida. Disse-nos que aquele era um momento chave para decidirmos o que íamos fazer para o resto das nossas vidas. As decisões que tomássemos naquela altura fariam indivíduos felizes, ou não, para o resto da vida.Que conselho foi esse?Disse para imaginarmos que éramos pessoas muito ricas, que não precisávamos de trabalhar. E para imaginarmos o que seriamos capazes de fazer de borla para ocupar o tempo. Quando descobríssemos devíamos tirar um curso nessa área pois seríamos felizes enquanto trabalhássemos. A verdade é que não me imaginava a ser veterinário de borla e desde jovem que era treinador, da equipa de xadrez, de futebol. Aquilo sim eu fazia sem ganhar um tostão. Foi aí que decidi tirar o curso de Educação Física.Durante a licenciatura foi treinador de futebol.Sim. Fui treinador da equipa de futebol universitário do ISEF (Instituto Superior de Educação Física) de Lisboa e o José Mourinho era o capitão de equipa. Já na altura era um líder. Era bom jogador e um líder de grupo. Fomos vice-campeões e o Mourinho era uma peça fundamental na equipa.De Moçambique a Salvaterra de MagosCarlos Matias nasceu a 24 de Julho de 1961 em Moçambique. Em Dezembro de 1976 vem para Portugal, inicialmente em Almada, mas fixa residência com a família em Paço de Arcos. Tirou o curso de professor de Educação Física e ficou colocado pela primeira vez para dar aulas em Salvaterra de Magos. Ao contrário dos colegas que tentam ficar perto da sua área de residência, Carlos Matias colocou a casa perto do local de trabalho.“Foi um ano de transição em que todos os factores se conjugaram. O meu filho entrava para o ciclo, a minha filha para a creche e a minha esposa estava desempregada. Foi a decisão acertada. O dia passou a ter mais horas. Em Lisboa perdem-se muitas horas no trânsito”, explica.Foi um dos sócios fundadores do Clube de Trampolins de Salvaterra que nasceu em 1988. Também é treinador no Futebol Clube Estevense, em Santo Estêvão, concelho de Benavente. Diz que não lhe falta conquistar nada. “Já tenho no meu trajecto a participação olímpica e a participação como treinador nas várias categorias. Mas aos meus ginastas ainda falta conquistar algumas coisas e é para isso que luto diariamente, para os ajudar”, diz sorridente.“Temos um projecto demasiado ambicioso para o meio em que estamos”Existem muitos apoios para os trampolins?Existem os apoios possíveis. As pessoas, tanto em Salvaterra de Magos como em Benavente, se puderem ajudam-nos. Sobretudo as autarquias, porque sabem que desenvolvemos um trabalho honesto e leal. Somos leais com quem nos ajuda e reconhecemos o esforço que fazem para nos ajudarem. Sentimos que a culpa é mesmo nossa.Como assim?Sentimos que temos um projecto demasiado ambicioso para o meio em que estamos inseridos. Temos o único ginasta olímpico do concelho de Benavente. Temos a única ginasta no projecto olímpico no concelho de Salvaterra de Magos. Temos campeões do mundo e da Europa ano após ano. Este nível de trabalho não tem paralelo em mais nenhum clube e em nenhuma modalidade em nenhum destes dois concelhos. Os recursos são muito escassos e quando esses recursos nos ajudam nós somos muito gratos porque sabemos que os recursos são escassos.Terem um projecto ambicioso pode ser um problema?Dou-lhe um exemplo: corremos o risco de o nosso ginasta olímpico de Santo Estêvão, para poder treinar, ter que ir para Lisboa porque nos falta um trampolim de qualidade para o atleta treinar em condições para o projecto olímpico. Ele estuda em Lisboa e vem propositadamente treinar a Santo Estêvão porque tem prazer em fazê-lo, gosta do clube. Mas não sabemos por mais quanto tempo vamos conseguir aguentá-lo, até porque existem convites de outras equipas da capital. O ‘motor’ do Clube de Futebol Estevense sempre foi a autarquia de Benavente e, nesta altura, a crise financeira fá-los ‘assobiar para o lado’.As câmaras de Salvaterra de Magos e Benavente não têm apoiado os clubes dos seus concelhos?As autarquias têm sido o principal apoio dos dois clubes. Quando digo que a culpa é nossa é porque o nosso projecto passa por campeonatos do Mundo e da Europa que são caríssimos e o apoio das autarquias não é suficiente. Por exemplo, em Salvaterra não existe tecido empresarial que suporte, mesmo que fosse com pequenos apoios regulares, uma actividade deste nível. Se esta modalidade existe nestes dois concelhos deve-se ao apoio das autarquias. Por que é que as vitórias nestas modalidades não têm o mesmo destaque que o futebol?Parte da culpa será da federação que deveria ajudar a dar mais visibilidade à modalidade. As entidades principais, federações e associações não têm sabido estar suficientemente preocupadas em dar essa visibilidade. Elas têm uma quota-parte muito importante nessa falta de divulgação. As pessoas também não adivinham as conquistas que vamos alcançando se não enviarmos informação à comunicação social.No vosso caso fazem divulgação dos resultados?Disparamos informação para todo o lado, mas a verdade é que apenas pontualmente essa informação é divulgada e publicada nos órgãos de comunicação social. Mas a simples transferência de um jogador entre clubes da terceira divisão distrital, por exemplo, é mais importante que uma medalha de ouro num campeonato da Europa de um ginasta português.Quais são os principais problemas com que se debatem nesta modalidade?Temos tido uma federação, a Federação Portuguesa de Trampolins e Desportos Acrobáticos (FPTDA), que não tem estado à altura do grande desenvolvimento que a modalidade teve em Portugal. Esteve muito centrada nela própria. Provavelmente, em breve, terá que ser reintegrada na federação de ginástica de onde saiu há vinte anos. Penso que a FPTDA quando se destacou da Federação de Ginástica conseguiu um sucesso maior do que capacidade que teve depois para o gerir. Nesta altura paga essa factura e provavelmente terá que voltar às origens.

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