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“Hoje fala-se muito de crise mas a crise real é a crise de valores”

Aos 82 anos a pintora Maria Lucília Moita diz que a plenitude só se alcança na eternidade

A pintora naturalista Maria Lucília Moita, Personalidade do Ano de O MIRANTE no domínio da cultura, não compreende as críticas ao projecto do novo Museu Ibérico de Arqueologia e Arte a nascer em Abrantes e considera-o “um valor para a cidade” e uma forma de colocar Abrantes no mapa cultural português. A artista considera que Portugal é hoje um país que liga pouco à cultura e lamenta que a sua arte tenha passado despercebida fora dos círculos culturais.

Nasceu em Alcanena e agora vive em Abrantes. Nunca pensou deixar o Ribatejo?Nunca se proporcionou. Andei uns tempos em Lisboa enquanto aprendi a pintar com os mestres mas acabei por voltar a Alcanena. Vim morar para Abrantes porque o meu marido é de cá e para não andar sempre a pular entre os dois sítios acabámos por nos instalar aqui, onde ainda hoje vivemos. Em Abrantes havia coisas que não havia em Alcanena, como o contacto com muitos artistas e sentia-se um outro impulso cultural. Havia até um casal amigo que conhecia o Lagoa Henriques e o Lima de Freitas, que depois conheci através deles. Com 82 anos de vida sente que atingiu a plenitude dos seus trabalhos?Não acho, para mim a plenitude só se alcança na eternidade. Entendo que o que fazemos aqui é sempre um caminho para atingir essa plenitude. Acredito muito que levamos connosco todos os valores obtidos ao longo da vida e tudo o que foi autêntico. Felizmente ainda me sinto com capacidade criativa, tenho umas limitações próprias da idade mas a pessoa vai-se defendendo e procurando tratar da saúde para poder render, que é uma coisa que eu sempre tive: a noção de que sem trabalho nada se consegue. Quando comecei a minha carreira os pintores daquele tempo disseram-me que era filha espiritual do Silva Porto. Para mim foi uma honra, mas não fiquei instalada. Não me acomodei com a facilidade, porque tenho a mania da dificuldade. Procuro-a para andar, andar cada vez mais. Os seus primeiros passos foram com Anastácio Gonçalves, seu primo, em Lisboa. Que memórias guarda desse tempo?O que aprendi na casa do Anastácio Gonçalves foi muito importante. Eu era das poucas pessoas que ia àquela casa, porque ele era uma pessoa muito solitária, vivia sempre sozinho, não convivia. Tinha uns amigos que ocasionalmente o visitavam mas no geral andava sempre só. Mais tarde chegou a conviver muito com o Gulbenkian, por ser médico dele, e como eram os dois grandes coleccionadores conviveram muito bem. Essas visitas à casa do “primo António” eram muito importantes para mim. Depois do almoço íamos para o escritório, onde eu lhe mostrava a minha produção e ele opinava. Quando ele ia para o consultório às 15h00 eu ficava lá por casa, muitas vezes, a copiar obras de Silva Porto, Columbano e Carlos Reis, só mesmo para observar melhor a pintura e perceber os seus traços.De todos os modelos que usou para as suas pinturas há algum de que se lembre especialmente?Hoje em dia é complicado fazer esse raciocínio. Comecei com um dos meus netos a fazer um inventário. Cheguei a usar a minha mãe e a criada lá de casa como modelos. Outras vezes ia às igrejas e trazia um velhote ou um sacristão a casa para servirem de modelos. Naquela altura havia asilos de meninas perto de casa, em Lisboa e também lá ia buscar algumas para servirem de modelos. Eu cheguei a ter lições com professoras que iam lá a casa ensinar-me o inglês, francês, português e piano. Não tinha grandes dedos para o piano. Os meus dedos eram apenas para a pintura. Eu lembro-me de fazer os exercícios de piano com a minha empregada a ler-me as lições de história para eu não perder tempo, para poder ter mais tempo livre para a pintura. Quando voltei para Alcanena ia para as aldeias e para o campo pintar.Como era a reacção das gentes da terra a ver alguém a pintar?Havia sempre muita curiosidade. Até chegava a haver pessoas que se punham à minha volta a ver-me pintar. Ainda hoje faço isso quando me apetece, vou onde quero, sento-me numa cadeira e seguro a tela nos meus joelhos. Ponho o carvão a jeito e ataco. O carvão é sempre a minha primeira ferramenta, começo sempre com ele, mesmo para construir o que irei pintar a óleo no final. Num desses dias em que estava a pintar numa aldeia do Alentejo, uma mulher simples, do campo, disse-me: “É uma vida”. Isso marcou-me de tal maneira que ficou comigo até hoje. A pintura para mim não é um vício, é a minha vida.Como se deu a passagem para a poesia?A dada altura senti-me bloqueada e encontrei na escrita um escape inspirador que me permitiu, pouco depois, voltar à minha arte. Foi uma fase, porque eu comecei a pintar sem dar por isso, sem obrigação. Comecei a pintar de maneira dura, crua e geometrizada, porque tinha necessidade de me afirmar. Depois da poesia evoluí.Abrantes tem sido notícia nos últimos anos pelo museu ibérico proposto pelo arquitecto Carrilho da Graça. Qual a sua opinião sobre o projecto?O assunto tem sido polémico e não percebo porquê. Algumas pessoas estão contra mas provavelmente por ainda não terem percebido a dimensão do espaço. Acho que é um valor para a cidade, se realmente lhe querem dar uma dimensão internacional. Abrantes está muito central e acho que seria uma mais-valia inclusive para o país. Eu confio no arquitecto. Ele mostrou e explicou a maqueta. Eu gostava era que se despachassem a construí-lo porque gostava de ainda estar viva quando lá pusessem as minhas obras, porque sou muito esquisita. Sou sempre eu que monto as minhas exposições. Como pintora e artista tenho noções de equilíbrio e composição e coloco isso na montagem de uma exposição. Que visão tem do estado da cultura em Portugal actualmente?Eu já não frequento muito os meios da cultura mas faço o possível por fazer as pessoas ligarem-se à arte, tem sido essa a minha acção, o meu objectivo. Inclusive abrindo a minha casa, o meu atelier, a todos quantos queiram descobrir a minha pintura. Ensinar as pessoas a ver a cultura, ver no sentido de observar além do imediato, é o fundamental. Ainda há em Portugal muita gente que não consegue ver. As pessoas consomem o imediato mas hoje nem tudo o que se pinta é arte. Para mim arte tem de ser uma expressão, o resultado de uma comunicação entre o autor e o alvo. Eu quando estou a pintar não pinto sem rumo, de qualquer maneira. Tenho de estar em contacto com a natureza, com as coisas, tem de ser uma motivação séria. Hoje fala-se muito de crise mas a crise real é a de valores. Falta educar melhor a nossa gente. É o que os professores têm de fazer. Educar as gerações futuras para o bom gosto da música ou da pintura.Sente que tem sido pouco reconhecida pelo seu trabalho fora dos círculos culturais?Particularmente tenho tido todo o reconhecimento que desejaria mas no geral acho que poderia ter tido mais atenção. Quando fiz a exposição na casa museu do Anastácio Gonçalves gostaria que alguns jornais tivessem dado mais atenção ao meu trabalho. Isso realmente mexeu comigo, senti que podia ter havido mais apoio. Foi algo que me magoou. Sobretudo quando diversos rostos importantes da arte, gente de valor, têm apreciado as minhas pinturas e me têm apoiado. Mas isso só particularmente. Não no público em geral. É uma questão de justiça. Acho que era justo que, tal como reconhecem outros, me reconhecessem a mim.Se resumisse a sua vida a uma frase, o que diria?A pintura é a minha vida, eu fiz uma caminhada e tive a felicidade de ter tido oportunidades e possibilidades que meti a render e isso não me pesa na consciência. Trabalhei, lutei, andei. Caminhei sempre e procurei partilhar com todos, numa acção cultural e pedagógica, tudo o que sei. Uma pintora inspirada pelas cebolasMaria Lucília Moita, pintora e poeta, nasceu em Alcanena em 1928 mas há quase cinquenta anos que reside em Abrantes, terra que já considera sua. É considerada um dos grandes nomes da pintura naturalista portuguesa e sucessora espiritual de Silva Porto e Henrique Pousão. Fez exposições na Sociedade Nacional de Belas Artes e ainda hoje tem quadros da sua autoria expostos em colecções particulares nacionais, internacionais e em museus portugueses como o Museu do Chiado, Museu José Malhoa, Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e na casa museu Dr. Anastácio Gonçalves. Maria Lucília Moita começou cedo a mostrar os seus dotes para a pintura, logo na terceira classe fez um “retrato” que encantou uma professora. Maria Lucília Moita é filha única, tem três filhos e sete netos. Confessa que a preocupação dos seus pais, à época, era que a filha virasse uma mulher prendada. A colecção de António Anastácio Gonçalves era da sua família. Foi em Lisboa, na casa do “primo António”, como assim lhe chamava, que Maria Lucília Moita começou a dar os primeiros passos a sério na pintura. Através de amigos comuns conheceu o pintor João Reis, que aceitou dar-lhe lições de pintura entre 1944 e 1946. Começou com gessos e rapidamente avançou para o carvão. Em 1948, por sugestão do mestre enviou um quadro (“Casas Brancas”) para o Salão de Primavera da Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA). O crítico João Portela escrevia então no Diário de Lisboa que a pintura de Maria Lucília Moita era um misto de “sensibilidade de cor, finura poética e romantismo estático de beleza que cativa a imaginação”. Em 1951 viria a receber a menção honrosa do SNBA, com o quadro “Beco da Liberdade”. Sempre usou o carvão e o óleo como principais processos de pintura. Ao longo dos anos viria a realizar diversas exposições, muitas delas com o apoio dos serviços da Fundação Calouste Gulbenkian. Além do centro UNESCO e do Museu Machado de Castro em Coimbra expôs o seu trabalho no Centro Cultural de Belém, galeria de São Francisco e na galeria do palácio de São Bento. Além da menção honrosa obteve as medalhas de prata e bronze nos concursos do Casino do Estoril e em 1989 foi-lhe atribuída a medalha de ouro de mérito municipal da Câmara Municipal de Alcanena. Mais tarde, em 1996, recebeu a medalha de mérito cultural da Câmara Municipal de Abrantes, terra onde foi directora do museu municipal. Casou em 1954 com Fernando Simão.A meio do seu percurso um bloqueio criativo levou-a para os domínios da escrita, mais concretamente a poesia. “Enraízo-me na terra limpa/chão e origem/ na verdade do restolho e da pedra/ e da água nascida”, escreveu em “Tempo Circulado”. Escreveu quatro livros, mas a paixão foi sempre a pintura. Uma autobiografia lançada em 2004 pela câmara de Abrantes apresenta-se como a obra definitiva da autora, com a coordenação de Fernando António Baptista Pereira e os depoimentos de individualidades como Miguel Simão, Urbano Tavares Rodrigues, Miguel Serras Pereira, Nelson de Carvalho e Lagoa Henriques, entre outros. Maria Lucília Moita doou à câmara de Abrantes uma grande parte do seu espólio, onde se incluem 60 quadros a óleo. Adora troncos e pintar cebolas, das quais destaca a sua tonalidade. Aos 82 anos continua a achar que ainda não alcançou a plenitude criativa e é uma cristã que vai todos os dias à missa. Actualmente está a ler «Hymne de L`Univers» de Pierre Teilhard de Chardin mas também tem por perto Miguel Torga. Não abdica de ver o pôr-do-sol todos os dias da sua sala de leitura. Ouve Brahms e Bach. As músicas modernas “complicam-lhe o sistema nervoso”, conta com um sorriso. Nunca ouve música quando pinta. Confessa que é uma pessoa exigente consigo e por isso não espera menos de quem a rodeia. Tem a paixão da verdade e detesta a mentira. Ainda hoje abre as portas do seu atelier, em Abrantes, para mostrar aos mais novos as suas pinturas.

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