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O rapaz mais pobre da aldeia que conquistou a Azinhaga e trouxe Saramago de volta

Ninguém trata Vítor Guia por presidente da Junta por ser um tratamento desnecessário

Durante a conversa com O MIRANTE atendeu uma vez o telemóvel e pediu desculpa. “Era um número de Lisboa. Estou na lista para um transplante de rim. Não podia deixar de atender”. Num breve passeio pelas ruas mostrou a simplicidade do rapaz mais pobre da aldeia que se fez homem e conquistou o respeito do povo muito antes de lhes conquistar os votos. Falou do seu amigo Saramago mas nunca esqueceu Pilar del Rio. Nem podia esquecer. A rua onde fica a Junta tem o nome da mulher do escritor.

Como foi a sua infância? Nasci na Azinhaga no dia 3 de Março de 1956. No meu registo está escrito que sou filho de pai incógnito. A minha mãe chamava-se Maria do Rosário e trabalhava no campo para os seareiros. Criou sozinha 3 filhos. Eu sou o do meio. Nasci e cresci numa barraca ao pé do rio Almonda. Sou borda d’água. Saía do quintal e estava logo no rio. A família da minha mãe é toda da Azinhaga. Somos conhecidos por os Carrasqueiros, não me pergunte porquê. Aqui quase todas as famílias tinham alcunha. Estudou?Fiz a quarta classe com dez anos e meio. As professoras queriam que eu continuasse mas fui trabalhar para ajudar a família. Comecei a ganhar doze escudos por dia a guardar porcos e ovelhas, bois. Até aos 12 anos andei nisso. Depois fui guardar éguas. A seguir fui para a Quinta da Broa desbastar cavalos e tratar dos toiros. Foi dos 12 aos 14 anos. A seguir fui para a construção civil como servente. Passado um ano era aprendiz de pedreiro. Passei a pedreiro e cheguei a construtor.Teve tempo para brincar quando era pequeno?Até aos 10 anos brinquei como qualquer criança. Tínhamos logo ao pé da escola o campo de futebol, largávamos os sacos dos livros e punhamo-nos a jogar. Brinquedos nunca tive. Por vezes sentia isso. Lembro-me de estar na escola a seguir ao Natal e de a professora pedir para fazermos uma redacção a contar como tinham sido as férias. Quase todos os meus amigos falavam nas prendas. Um tractor de brincar, um boné, uma bicicleta, eu era o único que não tinha recebido nada. Passou fome?Passei alguma. E não passei mais fome porque tinha uma avó que ía pedir para a Chamusca, para Vale de Cavalos, para a Charneca de Casével e Charneca de Alcorochel e então lá trazia o azeite que já tinha sido usado para fritar, algum pão por vezes já com bolor mas que a gente comia. Íamos sobrevivendo. Mas foi um ensinamento de vida importante. Por vezes há pessoas mais idosas que me falam dos tempos em que tinham que dividir uma sardinha por dois ou por três. Eu costumo dizer-lhes que nós éramos quatro lá em casa e nem uma sardinha para dividir tínhamos. O que fez ao primeiro dinheiro que conseguiu juntar? Comprei uma bicicleta. Era para ir para o trabalho e para ir aos bailes aos fins-de-semana. Embora não fosse grande dançarino gostava de festas. Casével, Alcorochel... juntávamo-nos aqui em grupos de vinte e trinta e lá íamos todos. Só rapazes.A sua esposa é de Alcorochel ou de Casével?A minha esposa é daqui. Nasceu perto de mim. Tem menos quatro anos que eu. Chama-se Judite. Judite Maria. Temos uma filha, Ana Sofia Carvalho da Guia, que é enfermeira. Já trabalha há três anos no Hospital de Santa Maria.Foi o senhor que fez a sua casa?Fui. Nasci numa barraca e era um sonho meu um dia poder ter uma casa minha. De facto, casei e comecei a juntar dinheiro para fazer uma casa. Fui uns meses para a Líbia, para o pé do Kadafi. Onde ganhei de facto muito dinheiro. Trabalhava para uma empresa alemã. Fiz duas campanhas. Arranjei dinheiro para comprar dois lotes de terreno onde tenho a minha casa implantada e para comprar todos os materiais para a casa, até ao telhado. Demorei sete anos a acabá-la. Dez anos antes do Nobel já Saramago tinha uma rua com o seu nome na AzinhagaA Azinhaga ostenta o título de “Aldeia Mais Portuguesa do Ribatejo”. Trata-se de um prémio do Estado Novo. Efectivamente é um prémio de outros tempos mas não nos foi atribuído por sermos a terra que mais apoiava o regime. Foi por sermos a terra mais portuguesa e isso faz bem ao nosso bairrismo e envaidece-nos. A Azinhaga descobriu Saramago em 1998, quando ele ganhou o Prémio Nobel da literatura? O Nobel veio dar-lhe outra dimensão mas ele já era admirado e respeitado na Azinhaga. Dez anos antes de ser Prémio Nobel já tinha o seu nome numa rua. Eu fazia parte da Assembleia de Freguesia que votou essa proposta em 1988. Não estivemos à espera que a Academia Sueca lhe atribuísse o Nobel da literatura para lhe fazer justiça e lhe prestar a homenagem que ele merecia. Provavelmente não seriam muitos os leitores de Saramago.Nem nessa altura nem provavelmente agora mas estamos a falar de uma aldeia rural onde o analfabetismo ainda é elevado. Mas não saber ler nem escrever não é sinónimo de falta de inteligência.O José Saramago é que não estava muito ligado à Azinhaga. Como é que o senhor chegou até ele e o convenceu a regressar às origens?Quando me candidatei à Assembleia de Freguesia já tinha falado com os outros elementos da lista desse assunto. Já tínhamos a ideia de fazer a casa-museu. Falámos com a editora dele, a Caminho e surgiu a possibilidade de ele fazer aqui o lançamento do livro “As Pequenas Memórias”. Sabe qual foi a reacção de José Saramago? Ele nunca se entusiasmou com a ideia. Ao contrário, a mulher, Pilar del Rio, ficou entusiasmada. Foi graças a ela que a ideia se concretizou. Veio cá com o editor Zeferino Coelho. Testou o som do espaço da fábrica desactivada e considerou-o adequado. Convenceu o marido. Fez-se o lançamento do livro e a festa de aniversário. Foi em 2006. Correu tudo muito bem. Na altura já o senhor estava incompatibilizado com o presidente da câmara da Golegã. Que ajuda é que a Junta de Freguesia teve da câmara da Golegã? Nenhuma.Pediram ajuda?Pedimos. Primeiro verbalmente. Foi-nos dito para fazermos o pedido por escrito o que também foi feito. Naquela altura faltavam dois meses. Quando vimos que o apoio não vinha avançámos sozinhos. Contratámos uma máquina para fazer a limpeza exterior, pedimos um palco à câmara municipal da Chamusca...quando faltavam 15 dias mandaram-nos uma carta para termos uma reunião com a secretária do senhor presidente da Câmara. Já não era preciso. Como interpreta essa situação? Devem ter pensado que não éramos capazes e que eles apareciam no fim para salvar a situação. Esqueceram-se que o livro por onde eles aprenderam foi aquele por onde eu estudei e que já deitei fora há muitos anos. Depois dessa altura passou a ter um contacto mais regular com José Saramago? Sim, falávamos regularmente pelo telefone. Se ele estava em Portugal passava por casa dele. Se calhar veio mais vezes à Azinhaga de 2006 para cá do que tinha vindo durante toda a vida. De que falavam?De tudo. Tinha curiosidade sobre a Azinhaga, sobre as coisas antigas da terra. E tinha uma memória impressionante. Dizia muita vez. Ainda bem que tu apareceste. Não havia praticamente ninguém na Azinhaga que eu conhecesse. Nada me ligava à Azinhaga. Se tu não aparecesses eu não voltaria à terra onde nasci.Ele disse na altura da inauguração da estátua: “Azinhaga não é só a minha terra. É a única terra onde eu realmente podia ter nascido”. Ele fez tudo para compensar a Azinhaga desse seu alheamento ao longo dos anos. Como é que conseguiu convencê-lo a inaugurar uma estátua em vida? Leitores do grupo “Mais Saramago” contactaram a Junta. Gostavam muito de fazer a estátua mas tinham conhecimento que o Saramago não autorizava estátuas em vida. Disseram-me que se eu conseguisse convencê-lo eles pagavam a estátua e ela viria para a Azinhaga.Qual foi a reacção dele? Fui a Lanzarote para o ver e a primeira reacção dele foi a esperada. Nem me deixou continuar. “Não penses nisso! Enquanto eu for vivo não. Depois de eu morrer façam as estátuas que quiserem para os pardais me cagarem em cima à vontade mas agora peço-te que não me fales nisso”.Insistiu?Não. Já lhe tinha dito que a iniciativa não era institucional. Não era política. Era um grupo de leitores que queria fazê-la e que a Azinhaga nunca poderia ter uma estátua dele após a sua morte. Não tínhamos dinheiro para isso.O que o fez mudar de ideias?Tenho quase a certeza que foi a Pilar que o convenceu. Nunca lhe perguntei mas acredito que foi alguma conversa com ela que o fez mudar de ideias. No dia seguinte, à mesa do pequeno almoço, ele disse inesperadamente que sim. “Olha Vítor, estive a pensar melhor. Avancem com a estátua que eu lá estarei para a inaugurar”. Antes do 25 de Abril já se interessava por política?Não. Não estava ligado a nada. No dia 25 de Abril andava a trabalhar num primeiro andar de uma obra na Golegã com uma pessoa que para mim foi o pai que eu não tive, que era o mestre-de-obras, o sr. Augusto Costa, que ainda é vivo. Ele já sabia da revolução. Quando passou um GNR de bicicleta ele gritou-lhe lá de cima. “Anda cá malandro. Vem-me cá prender agora.” E o guarda baixou a cabeça e pedalou com mais força para sair dali.Quando se inscreveu no PS?De início até simpatizava com o PCP mas quando eles defenderam a unicidade sindical afastei-me. Não compreendia como era possível um partido lutar contra uma ditadura e depois querer impor uma central sindical única. No dia em que fiz 18 anos aderi ao Partido Socialista do qual fui militante durante 31 anos. Considera-se um ribatejano?Concerteza, era quase impossível ser de outra forma. Trabalhei com cavalos. Com touros. Gostava muito de picarias. Cheguei a ter uma égua para ir dar os meus passeios até ao Paul do Boquilobo, aos domingos. Vendi-a há três ou quatro anos por causa deste problema nos rins. Até tive mais que uma. Alguma vez pensou vestir um traje típico nos dias de Festa como faz o presidente da Câmara da Golegã?Nunca pensei nisso. O senhor presidente da câmara é de uma das famílias ricas do concelho e essas famílias já se vestiam assim no S. Martinho. Eu se fosse fazer isso estaria a tentar passar por quem não sou.Tem algum passatempo?Gosto muito de jogar às cartas. Temos um grupo que se junta regularmente para jogar à Sueca. Também gostava muito de pescar mas agora com o rio assim não dá.É capaz de distinguir os pássaros pelo canto?Já não tenho a mesma prática mas ainda consigo identificar muitos.O que gostava de fazer na Azinhaga que ainda não conseguiu fazer?Um salão cultural que agregasse todas as Associações onde fosse possível desenvolverem actividades.Como é tratado pelas pessoas da terra? Por senhor presidente? Tratam-me como toda a vida me trataram. Os que me toda a vida me chamaram Vítor continuam a tratar-me por Vítor. Os que me chamavam Pim, continuam a chamar-me Pim. Não me pergunte de onde vem essa alcunha que eu também não sei. Já a tinha em miúdo. Lá aparece um brincalhão que me trata por senhor presidente, mas é mesmo a brincar.O homem que fez Saramago voltar a nascer na AzinhagaAzinhaga, no concelho da Golegã, continua a ser conhecida como a aldeia mais portuguesa do Ribatejo, um prémio recebido há mais de setenta anos. Mas a distinção maior é a de ser a terra natal do Nobel da literatura, José Saramago. Um título que ganhou outro relevo com o trabalho feito pelo presidente da Junta de Freguesia. Vítor Guia, conseguiu que Saramago reforçasse, em vida, a sua ligação à Azinhaga e conseguiu também que as gentes da terra tivessem orgulho no seu filho mais ilustre. No ano da morte de José Saramago esse seu trabalho ganhou outra visibilidade e outra dimensão. Na Azinhaga está instalado um pólo da Fundação José Saramago. Em vida o escritor aceitou inaugurar ali uma estátua sua. Vítor Guia, com a simplicidade própria das pessoas simples, conseguiu cativar Saramago e a sua esposa Pilar del Rio, vencendo a resistência do Nobel da literatura em ser homenageado daquela forma ainda em vida e levando-o a destacar as suas origens de uma forma lapidar: “Azinhaga não é só a minha terra. É a única terra onde eu realmente podia ter nascido”, diria o escritor.Natural da Azinhaga, filho de uma das famílias mais pobres da terra, Vítor Guia é, de certa forma, a própria Azinhaga. Simboliza aquilo que são as suas gentes. Pessoas de trabalho, determinadas e lutadoras. Entrou na política a seguir ao 25 de Abril. Em 1992 venceu para o PS as eleições intercalares para a Assembleia de Freguesia acabando com o longo período de domínio do PCP. Ganhou nas eleições seguintes com uma maioria ainda maior. Em 2001 aceitou o desafio de ser segundo na lista socialista para a câmara da Golegã. Mais uma vitória inesperada. Antes do final do mandato desentendeu-se com o presidente da câmara. Aguentou até ao fim e quando saiu voltou a concorrer à Azinhaga, desta vez encabeçando uma lista independente. Os eleitores da freguesia viram ali uma oportunidade de afirmarem o seu querer e de mostrarem que são eles quem mandam na terra. Deram a vitória ao filho pródigo. Em 2005 e em 2009. Foi a surpresa geral. Num concelho onde o PS continua a ter maioria super-absoluta, ocupando todos os lugares do executivo municipal, Vítor Guia vence na Azinhaga como independente, mostrando que em democracia há valores de que o povo não abdica.

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