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“Sempre me senti parte de cada uma das famílias que habitam nas minhas paróquias”

O Padre Mário Duarte é um cidadão do mundo que criou raízes em Tomar

Fez o noviciado em Itália, estudou Teologia em Inglaterra e foi missionário na África do Sul na altura da transição do regime de apartheid para a democracia. Experiências que sempre encarou de mente aberta. Há 15 anos assentou em Tomar e o seu trabalho é elogiado e considerado inovador.

Quando é que decidiu que queria ser padre?Quando brincava com os meus irmãos, amigos ou vizinhos eu era sempre o padre. Celebrava os sacramentos, só que não era ordenado. Era a minha brincadeira favorita. Quando andava na 4.ª classe passou um padre na minha terra e deixou a direcção do seminário no quadro da escola. Escrevi para lá sem os meus pais saberem. Com o apoio da família entrei no seminário da Consulata de Coimbra nesse Verão. Mas sempre me animaram três vocações. Queria ser jornalista, advogado ou padre. Teve, portanto, dúvidas em relação ao que queria fazer da sua vida?Claro que tive. A vida é um caminho e este percurso é cheio de dúvidas, incertezas, inquietudes e interrogações. Cheguei a estar várias vezes fora do seminário mas regressei sempre. Cada vez gosto mais de ser padre. Sempre joguei entre estes dois binários: ser padre ou constituir família e ter quatro filhos, metade dos que teve o meu pai (risos). Mas quando decidi ser padre, decidi-o livremente. Não me chocaria se um dia a igreja decidisse que os padres poderiam casar. Mas, no meu caso, ter uma família seria limitativo porque estou dedicado de alma e coração à comunidade. Provém de uma família muito religiosa?Sim. Mas a minha mãe não queria que eu enveredasse por este caminho, o meu pai é que sempre me apoiou. Acabou por falecer, com a idade que eu tenho hoje, num acidente rodoviário, perto de casa, três anos antes da minha ordenação. Foi o único elemento da família que não assistiu a esse momento. Como é que foram os primeiros tempos no seminário?No princípio foi o desafio e a curiosidade natural de uma criança. Não foi um percurso fácil. Eu vinha de uma aldeia do centro de Portugal e academicamente mal preparado. Ao ingressar no seminário em Vila Nova de Poiares (Coimbra), sentia que estava atrás dos meus colegas, especialmente daqueles que provinham das grandes cidades. Senti-me um pouco perdido. Durante aquele primeiro ano, fartei-me de escrever cartas aos meus pais para me irem buscar. Mas o meu pai dizia sempre: tu é que quiseste ir para o seminário, vais resistir até ao fim e no final do ano falamos. No fim desse ano, talvez por birra e para mostrar o meu descontentamento por ninguém me ter ido buscar durante o ano, fiquei lá. Não fui a casa. Depois fiz o percurso normal, com todas as dificuldades que os jovens têm.Que dificuldades foram essas?Questionei muitas vezes o caminho que estava a seguir. Tanto que, já quando estava a estudar Filosofia na Universidade Católica de Lisboa, saí do Seminário durante alguns meses e entrei em Direito, onde estive durante dois semestres. Depois achei que a advocacia não era para mim. A minha vocação não era para ser exercida daquela maneira. Acabei por regressar ao Seminário. Acabei o bacharelato em Filosofia e, no final, fui fazer o noviciado para Itália.Como foi essa experiência?Sair do país faz bem. O primeiro desafio é a aprendizagem da língua. Em Itália, éramos 12 ou 13 noviciados, todos de nacionalidades diferentes e todos frequentávamos a Consulata. Os nossos superiores davam-nos as possibilidades de todas as semanas frequentarmos uma família com o objectivo de nos inserir na cultura local. Procurava sempre famílias com crianças. Porque as crianças são os nossos melhores professores. Não têm preconceitos, não têm vergonha de nos corrigir. E isso é positivo quando estamos a aprender uma nova cultura. Missionário na África do Sul numa região onde só existiam três brancosFoi missionário na África do Sul. Como é que descreve essa experiência?Fui para lá em 1991. Estive dois anos ainda com o regime de Apartheid e dois anos após o fim do Apartheid. Tive muita dificuldade em obter um visto para entrar na África do Sul e entrei como jornalista porque não podia entrar como padre. Qual era o seu trabalho?O meu trabalho como o de muitos outros era preparar as pessoas para a passagem a um regime democrático num ambiente de paz. Este trabalho contribuiu para que no fim do Apartheid as eleições tivessem sido pacíficas, quando todos esperavam o contrário. Foi fácil aprender Zulu?Tinha oito, dez horas por dia de aulas. É uma língua muito difícil mas muito matemática. Não conheço nenhuma língua tão sofisticada como o Zulu. Tinha um padre amigo que falava e escrevia zulu melhor que os zulus e dizia que se o modo de vida se assemelhasse ao modo como a língua é constituída eles seriam uma das primeiras nações do mundo. Que tipo de missões tinha?Uma das minhas missões era, à sexta-feira à noite, saltar para cima de uma camioneta e escolher corpos entre mortos, vivos e feridos. Lembro-me que em Ermelo, perto da Travellerspoint, na primeira semana em que estava lá, reabriu uma discoteca e oito pessoas morreram em confrontos. Havia duas forças políticas muito fortes: o ANC (Congresso Nacional Africano) e o Inkatha Freedom Party. No terreno andava com guarda-costas e eles é que me diziam onde podia ir e quanto tempo podia ficar. Porque a presença de um branco poderia dar azo a violência. Nunca mudei de carro porque aquele era reconhecido e todos me saudavam. Dois milhões em obras nas paróquias de Casais, Além da Ribeira e Alviobeira Nasceu na Sertã, estudou em Coimbra, Abrantes e Lisboa. Passou por Itália, Inglaterra e África do Sul. Como é que veio parar a Tomar?Vim para cá como capelão militar. O D. António Francisco Marques, primeiro bispo de Santarém, disse-me que tinha umas paróquias no norte do concelho (Além da Ribeira, Alviobeira e Casais) que bem que precisavam de um missionário. Na altura não aceitei e regressei à África do Sul. Só dois anos mais tarde é que escrevi ao bispo a perguntar se o convite ainda se mantinha. Eram paróquias que estavam sobre a responsabilidade dos padres franciscanos de Leiria. Eu fui o primeiro padre não franciscano a ficar ali.Foi bem aceite pela comunidade?Tive a sorte de ser precedido por um padre franciscano que admirei muito, já falecido, que era o padre Adelino Pereira. Era um homem zeloso e absolutamente incansável. Era o responsável pela Casa do Bom Samaritano, em Fátima, uma instituição de acolhimento, era também o superior dos Franciscanos de Leiria e, além disso, zelava por estas paróquias, às quais trouxe um espírito novo. Quando eu chego, as pessoas estavam a dar os primeiros passos numa visão nova do que era ser paróquia. Eu agarrei no que já existia e explorei o que ainda não existia. Esteve lá durante 15 anos. Há quem descreva o seu envolvimento como umbilical.Foi necessário trabalhar muito em termos de erguer estruturas físicas. Não existiam salas de catequese nestas paróquias. Nas três paróquias, ao longo destes anos, devemos ter feito obras de dois milhões de euros. Começamos por reconstruir a Igreja de Alviobeira, depois a de Além da Ribeira e a de Casais. Há muita obra feita e só tenho a agradecer a generosidade das pessoas. Tivemos alguns apoios, cerca de 90 mil euros do governo central, mas tudo o resto foi conseguido à custa de festas, peditórios ou lotarias. Esteve sempre envolvido nessas iniciativas?O padre tem que ser aquele que dá a alma. A construção mais importante não é a dos espaços, é a da própria comunidade. Isto envolve uma dedicação total às pessoas. Sempre me senti parte de cada uma das famílias que habitam naquelas paróquias. Foram eles que me alimentaram ao longo destes anos todos. Não faço comida. Convites nunca me faltam. Só tenho pena de não poder responder a todos. Considera que é difícil cativar as pessoas para a igreja?É um trabalho constante a fazer. Por exemplo, estou a tentar implementar o acolhimento junto à igrejas. Ter duas ou três pessoas, à porta das igrejas, que dão as boas-vindas à comunidade. Ou oferecer um mimo a quem nos visita. Na Igreja de Santa Maria dos Olivais, por exemplo, todos os paroquianos receberam um postal com uma oração. Este acolhimento é importante para que as pessoas não entrem num ambiente estranho. Ao sábado, na Igreja de São João Baptista, temos uma missa às 18h30 destinada a jovens. A seguir ao tornado foi fazer o levantamento das necessidades e ajudou a organizar um concerto de solidariedade. Não consegue estar parado?Acho que ajudar faz parte da vocação de cada ser humano. O que gostaria é que este trabalho tivesse sido feito, desde o primeiro momento, em conjunto. Estou a aprender muito com esta experiência. Se tivéssemos começado mais cedo teríamos ido mais longe e ajudado as pessoas de uma maneira mais eficaz. Poderíamos ter envolvido o país nesta causa. Um padre que só fica feliz com a felicidade dos outrosPor onde passa é abordado por todos com amabilidade. Quando não o cumprimentam é ele quem toma a iniciativa. Os seus telemóveis não param de tocar. Diz que todos os dias tem convites para almoçar e jantar e são poucas as vezes que recusa. Gosta de se vestir de forma informal. Conhece os quatro cantos do mundo mas desde Setembro que mora a poucos metros da Praça da República, no centro histórico de Tomar. Antes de ser ordenado padre, a 21 de Julho de 1990, e porque não se sentia ainda preparado, pediu para fazer uma pausa. É sem pruridos que confessa que teve algumas dúvidas se o sacerdócio seria o único caminho a seguir. Pensou em ser jornalista, advogado ou padre. Hoje tem a certeza que a escolha não podia ter sido mais acertada. Só é feliz quando sente que os que estão à sua volta também o são. É esse o fio condutor da missão que abraça há 20 anos. O percurso do padre Mário Farinha Duarte, nascido na freguesia da Sertã, a 3 de Maio de 1950, tem que ser contado em episódios. Foi o primeiro de oito irmãos, o único que viria a seguir o sacerdócio. Uma ideia que nasceu em criança e que cresceu com a passagem de um padre na escola da sua terra, a quem viria a escrever uma carta, com 11 anos, às escondidas dos pais. No Verão de 1971 entrou como estagiário no Instituto Missionário da Consulata de Coimbra, uma congregação de origem italiana espalhada por mais de 50 países de quatros continentes. Estudou em vários locais do país. Primeiro em Vila Nova de Poiares, em Coimbra, onde fez os dois anos do antigo ciclo preparatório. O liceu foi feito em Fátima e o ano Propedêutico em Abrantes. Mais tarde rumou à Universidade Católica de Lisboa para estudar Filosofia. Deixou o Seminário para estudar Direito mas desistiu no segundo semestre. Quando terminou o curso foi para Itália fazer o “noviciado”. Em Inglaterra, estudou Teologia, país onde permaneceu quatro anos. No final da experiência, confessa que não se sentia preparado para ser ordenado padre e pediu à congregação para fazer mais um curso, na área da comunicação social, na vertente da Pastoral Juvenil. É enviado para Roma, onde esteve mais três anos. Foi neste país que foi ordenado Diácono, a 8 de Dezembro de 1989 pelo Cardeal José Saraiva Martins, na altura responsável pela Doutrina da Fé no Vaticano. A 21 de Julho de 1990 foi ordenado padre na Sertã, após o que partiu em missão para a África do Sul, onde esteve três anos. Pediu para regressar a Portugal e veio para capelão militar em Tomar, estabelecendo relações com a igreja local. Dom António Francisco Marques, primeiro bispo de Santarém, lançou-lhe o desafio de trabalhar nesta região. Recusou mas dois anos mais tarde escreveu ao bispo a mostrar o seu interesse. Chega a Tomar em Setembro de 1995. Dois anos mais tarde é incarnado na Diocese de Santarém e fica responsável pelas paróquias de Além da Ribeira, Alviobeira e Casais onde permanece 15 anos, estabelecendo uma relação umbilical com a comunidade. Com a saída do padre Frutuoso Matias, em Setembro de 2010, passa a ser o responsável pelas paróquias de São João Baptista e Santa Maria dos Olivais, no centro urbano de Tomar.É fácil apanhá-lo a trabalhar, lado a lado com os paroquianos, no terreno. Quer seja na preparação da Feira de Santa Iria, a subir a um escadote para ajudar a montar stands, quer aquando do tornado de 7 de Dezembro de 2010, onde foi um dos responsáveis pelo levantamento dos prejuízos e co-organizado um concerto de solidariedade a favor de 30 famílias carenciadas atingidas pela intempérie. Para o padre Mário Duarte ajudar os outros é algo tão natural como respirar ou fazer despertar um sorriso numa criança.

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