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“Há uma permissividade quase total na escola”

“Há uma permissividade quase total na escola”

Eurico Ferreira foi presidente da Escola Febo Moniz de Almeirim e ficou conhecido pelo gosto pela electrónica

O professor Eurico Ferreira foi professor três décadas e esteve no conselho directivo da Escola Febo Moniz de Almeirim durante 13 anos, onde para além de ter que lidar com alunos, professores e funcionários tinha que enfrentar as más condições das instalações com salas pré-fabricadas sem as mínimas condições. Ainda era professor quando se interessou pelas engenhocas electrónicas. Construiu emissores e ficou conhecido por fazer com um amigo as retransmissões piratas da televisão espanhola TVE para o concelho de Almeirim. Instalou uma rádio FM na escola e agora dedica-se ao radioamadorismo, transmitindo vídeos por este sistema conhecido por banda do cidadão e que normalmente é usado para comunicações via rádio. Nesta entrevista o professor conta como foi o seu percurso de vida e fala da Educação de outros tempos e de hoje.

Quando estudava também levou reguadas e puxões de orelhas?Era a prática, mas ninguém fazia queixa em casa porque ainda levava mais do pai. Era um exagero. Temos que reconhecer que não era método. Houve miúdos que ficaram marcados para o resto da vida e que ainda hoje, passados muitos anos, têm pesadelos com os professores e a escola. Conheço uma pessoa nessa situação. Hoje a realidade é bem diferente.Há uma permissividade quase total. A indisciplina é generalizada nas escolas, os professores têm dificuldade em controlar os alunos, perdem uma boa parte da aula a mandá-los calar e estamos numa situação insustentável. A primeira grande reforma que o Ministério da Educação deve fazer é meter ordem nas escolas, que estão num caos, e reforçar a autoridade do professor sem deixar de reprimir abusos que possam existir. O professor tem que ter autoridade porque é uma referência na educação da criança.Nessa altura já havia indícios do que chama o caos que reina hoje nas escolas?Nunca pensávamos muito nisso, mas às vezes até dizia a alguns colegas professores que não fossem demasiado exigentes com determinados aspectos porque algum dia íamos ter um fim triste. E efectivamente chegamos a um extremo em que o ambiente nas escolas é muito mau. Gerou-se um clima de excessiva competitividade entre professores por causa entre outras coisas da progressão na carreira. E se o ambiente é mau entre professores não pode ser bom para os alunos. Quando andou no liceu o ensino era muito mais rígido. Tive professores excelentes que tinham métodos e organização de trabalho avançados para a época e que ainda hoje estão actuais. As aulas começavam em Outubro mas em Setembro já estávamos ansiosos que as férias acabassem porque gostávamos de ir para as aulas e sentíamo-nos bem na escola.Quando começou a dar aulas não havia problemas entre professores?Vivíamos um clima de camaradagem e amizade que tentei fomentar sempre enquanto estive a dirigir a Escola Febo Moniz de Almeirim. Tinha um cuidado especial no acompanhamento de colegas que estavam a começar a profissão, porque me recordava dos tempos em que comecei e das dificuldades que tive. Hoje as pessoas fogem da escola. Já não há um amor à causa da educação…Numa altura em que não eram obrigatórias as aulas de substituição consegui que algumas se efectuassem em regime de voluntariado. Hoje nem a pagar as pessoas querem.“Todos passámos um mau bocado” na antiga escola Febo MonizEsteve 13 anos no conselho directivo da Escola Febo Moniz, dos quais 11 como presidente. Como é que aguentou dirigir uma escola de salas pré-fabricadas onde as condições eram muito más?Era um drama. Tinha pena pelos professores, funcionários e alunos. Todos passámos um mau bocado naquela escola. Quando chovia muito chegava a haver inundações e às vezes era necessária a intervenção dos bombeiros. No Verão as temperaturas nas salas eram altíssimas e ainda houve alguém que teve a ideia de construir uns pavilhões de madeira pintados de preto. Mas os arquitectos e engenheiros não viam que aquilo era impossível. Uma vez entrei nessa sala e o suor corria-me em bica. Mandei toda a gente para casa e assumi a responsabilidade. Não chegou a trabalhar na nova escola. Reformei-me na altura em que a escola é atingida por um vendaval que destruiu as coberturas das salas. Foi um contributo do São Pedro para que se avançasse para a construção de uma nova. Tinha um ar muito reservado, dando a ideia de austeridade. Era uma forma de impor o respeito?Hoje estou um bocado mais expansivo, mas naquele tempo era mesmo assim. Mas essa impressão desfazia-se logo que as pessoas falavam comigo. Recebia toda a gente de braços abertos. Tem saudades da escola?Tenho sobretudo saudades do convívio com os colegas. Tenho colegas que se reformaram e nunca mais puseram os pés na escola. Eu ainda hoje vou à escola onde tenho colegas do meu tempo. Hoje aquilo é um luxo comparado com o meu tempo, em que era uma vergonha. Alguma vez teve que puxar as orelhas a algum aluno?Tive, tive. Havia lá uns malandrecos. Tive que pôr alguns em sentido. Às vezes encontro alguns deles que me falam disso. Acho que ninguém gosta de tomar medidas drásticas, mas às vezes é necessário. Mas não havia problemas graves de indisciplina…Já havia na altura. Havia uns alunos que eram potenciais delinquentes e que agora são adultos responsáveis com uma vida extraordinária. Se calhar alguns não se perderam por haver alguma rigidez do conselho directivo.O professor tem um papel importantíssimo na sociedade. O professor tem que ter consciência e também dar o exemplo mesmo na sua vida particular.E dão o exemplo?Hoje as pessoas talvez não tenham essa noção. Os professores não dão o exemplo até pela forma como se apresentam. Não sou reaccionário nem demasiado conservador, mas tem que haver o mínimo de dignidade. A maneira como se apresentam tem influência no respeito que devia haver nas escolas?Isto é um meio pequeno. Um professor que vive ao lado dos seus parceiros, dos seus alunos, dos pais de alunos e se dá o mau exemplo não é respeitado por estes e isso é mau. Foi para a reforma porque já estava farto de aturar alunos?Foi por saturação e desencanto. O trabalho docente é muito desgastante e já não tinha a energia que tinha no início da carreira. Depois comecei a aperceber-me que os alunos nos chegavam cada vez com menos preparação, desmotivados, sem interesse. Isso começou a criar-me alguma desilusão. Mas também porque tinha problemas familiares a que tinha que me dedicar a tempo inteiro. Quando é que começam os problemas de relacionamento dos alunos com os professores?O 25 de Abril foi uma rolha que saltou de uma garrafa de champanhe, extravasou e as coisas ainda não assentaram. Era complicado na altura dar aulas. Muitos deixaram de fazer trabalhos de casa, de estudar… É nesta altura que o sistema de ensino se começa a degradar…Quiseram inovar e fazer uma ruptura com o passado. Mas hoje em dia chega-se à conclusão que o sistema do antes do 25 de Abril não era tão mau como se dizia. Actualmente sentimos muito a falta de técnicos porque acabaram com as escolas industriais e fizeram o chamado ensino unificado. Deixou-se de formar bons técnicos. Os professores devem ser avaliados?Devem. Mas o sistema de avaliação que foi instituído era demasiado burocrático e veio criar dificuldades, até em termos de relacionamento entre as pessoas. Devem ser avaliados porque nas escolas há os que fazem muito e outros que só fazem o mínimo e ganham o mesmo.O filho do latoeiro que aprendeu a fazer os seus próprios brinquedosEurico Ferreira nasceu em 26 de Outubro de 1939, filho de um latoeiro de Almeirim. Desde cedo que gostava de aprender a ver o pai e os outros artesãos do Largo Manuel Rodrigues Pisco em Almeirim a trabalhar. “Fazíamos os nossos brinquedos porque os nossos pais não tinham dinheiro para os comprar”. Com oito anos fazia carrinhos de lata, autocarros de passageiros, aviões, navios. “Brincávamos na zona onde tínhamos uma empresa de camionagem que faziam transportes entre um ponto e outro do largo dividido por localidades”, recorda.Fez a escola primária em Almeirim onde apanhou o célebre professor Salavessa que era bastante severo para os alunos. “Na altura, antes de irmos para a escola, os que não se davam bem com os outros desejavam que eles apanhassem esse professor”, conta. Foi estudar para o liceu nacional de Santarém, actual Escola Secundária Sá da Bandeira, numa altura em que era preciso fazer sacrifícios para estudar. O pai não tinha dinheiro para o transporte de autocarro, que custava cinco escudos por dia, quase uma fortuna na altura. Comprou-lhe uma bicicleta na qual ia todos os dias para o liceu, fizesse sol ou chuva. “Era um grande esforço físico mas éramos felizes e tínhamos saúde”. Licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras de Lisboa. Era bastante trabalhador e tirava boas notas, foi várias vezes para o quadro de honra e conseguiu uma bolsa de estudo do Ministério da Educação e outra da Gulbenkian que dava para pagar a estadia. Concluiu o sétimo ano com 17 valores de média. Começou a dar aulas no Externato Braamcamp Freire em Santarém, depois na escola do posto emissor americano da Raret em Glória do Ribatejo, concelho de Salvaterra de Magos, e fixou-se na Escola Preparatória Febo Moniz, actual escola dos segundo e terceiro ciclos. Continua a viver em Almeirim. Sempre se interessou pela electrónica e é um passatempo que lhe ocupa tanto tempo que até já parece uma profissão. Construiu emissores, fez uma rádio na escola e transmissões piratas da televisão espanholaO aprender a fazer é importante para o percurso de vida?Quando era miúdo ia ver o meu pai a trabalhar, era latoeiro, e os outros artesãos. Passava horas de volta deles a vê-los trabalhar. Pelo menos aprendi a apreciar e dar valor ao trabalho dos outros. Desta forma ficamos preparados para muitas coisas, como reparações em casa, ter a noção de como as coisas se fazem. É isso que falta à juventude?Hoje as crianças são solicitadas para um mundo virtual, que não é benéfico. Muitas vezes estão desligados da realidade e chegam a adultos sem saber mudar uma lâmpada, arranjar uma tomada. Considero-me muito feliz por ter tido a infância que tive. É um entusiasta da electrónica. Qual foi a primeira engenhoca que fez?Foram descodificadores para emissões de satélite. Era uma coisa pirata na altura. Ainda estava na escola. Depois juntamente com o meu grande amigo Eduardo Reguinga, que já não é vivo, começámos a retransmitir a TVE de Espanha para o concelho de Almeirim. Em termos técnicos não devia ser fácil. Fomos buscar o sinal do canal a Alter Pedroso, no Alentejo, onde instalámos um retransmissor que chegava a Montargil, onde instalámos outro que transmitia o sinal para Fazendas de Almeirim. Inicialmente os equipamentos funcionavam com baterias, todas as semanas tínhamos que mudar as baterias. E foi também por sua causa que a câmara municipal começa a retransmitir uma emissão de televisão em condições ilegais.A câmara um dia manifestou-me o interesse de retransmitir um canal da parabólica, como se dizia na altura. Era um canal que emitia filmes. Emprestei o meu emissor que foi apreendido pelas autoridades quando descobriram o caso. A câmara não desistiu e montou outro sistema na serra de Fazendas de Almeirim, mas que acabou por desligar ao fim de um tempo porque os comerciantes começaram a queixar-se que não vendiam antenas parabólicas. Mas não desistiu das emissões piratas de televisão.Chegámos a transmitir actividades desportivas em Almeirim com a participação do actual presidente da câmara Sousa Gomes. Mas a grande transmissão foi a da inauguração do relvado do campo de futebol do União de Almeirim. Na altura não tive problemas porque as emissões eram esporádicas. Também deu o seu contributo às rádios piratas com o surgimento em Almeirim da Emissora Voz do Sul…Na altura interessei-me por construir um emissor de FM. Meti-me a fazer a placa de circuito impresso com base numa que estava numa revista. Ia sendo o meu fim porque deu muito trabalho e tive que pedir ajuda a um técnico de Santarém, o Luís Matos, que esteve toda a noite a corrigir os erros. Fiz umas emissões em casa e quem estava no lançamento da rádio veio convidar-me para colaborar no projecto. Não estava interessado numa colaboração e acabei por lhes vender o emissor. Levava as suas engenhocas para a escola?Coloquei uma parabólica para dar filmes para os alunos treinarem o Inglês e criei uma rádio escolar. Já havia uma em Santarém, na Alexandre Herculano, mas era em circuito interno, passava em colunas de som no pátio. Em Almeirim fizemos uma com emissor que se apanhava à volta da escola. Depois foi suspenso porque a Rádio Comercial de Almeirim começou também a queixar-se de interferências. Como é que se interessa pelo radioamadorismo?Quando me reformei, vi-me sem nada para fazer. Passava o meu tempo na escola e até nas férias quando havia obras de manutenção estava lá. E então tinha que arranjar qualquer coisa para me entreter. Tinha vários amigos que eram radioamadores e pus-me durante três meses a estudar a legislação, códigos de comunicação… Interessei-me por fazer as minhas antenas e os meus equipamentos em vez de os comprar já feitos. Interessei-me sobretudo pela televisão através do canal de radioamador (banda do cidadão). Como é que são essas emissões de televisão?Podemos transmitir filmes, vídeos de visitas, ou o que estamos a fazer em directo. Ficaram célebres os serões do técnico e comerciante Carlos Oleiro de Santarém que punha uma câmara apontada à sua mesa de trabalho e ia mostrando o que estava a fazer, a construir. Era uma espécie de aulas de telescola. Podíamos fazer perguntas e ele respondia através do áudio da emissão de televisão. Chegámos a fazer uma vídeo-conferência por este sistema entre as escolas Febo Moniz e Sá da Bandeira em Santarém.
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