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“O Serviço Nacional de Saúde é mal gerido e não tem viabilidade”

O médico Manuel Oliveira é um dos promotores do novo hospital privado de Santarém

O médico ortopedista Manuel Oliveira é um dos rostos do novo hospital privado de Santarém cuja abertura está prevista para Outubro. Trabalha no sector privado e no público. É um crítico do Serviço Nacional de Saúde que acusa ser uma fonte de desperdício. Aponta o dedo não só à gestão como aos utentes que usam e abusam do sistema. Considera que só quem não tem capacidade económica deve continuar a beneficiar de cuidados de saúde gratuitos.

Como surgiu a ideia de criar um hospital privado em Santarém?Foi a partir do encerramento do piso 10 do Hospital de Santarém onde funcionava uma clínica privada. Na minha opinião foi um disparate da administração porque a sua existência era uma maneira de segurar muitos profissionais no próprio hospital. Agora as pessoas estão pura e simplesmente a desertar. Os elementos mais novos preferem ir para um sítio onde possam trabalhar depois do hospital, como complemento ao mesmo. Nós avançámos com o projecto do hospital privado para tratar os nossos doentes das seguradoras e os doentes privados [da Scalmed, Santarém]. Esperemos que depois venham outros. Se quer que lhe diga, acreditamos que o nosso projecto até vai contribuir para conseguir fixar profissionais no próprio hospital público.Mas porquê em Santarém e não em Tomar, de onde é natural, por exemplo?A primeira coisa que criei foi o Centro de Reabilitação do Nabão com o médico António Júlio. Depois decidimos criar este espaço [Scalmed] em Santarém. Como não temos muito espaço para operar utilizamos o Hospital da Misericórdia do Entroncamento. Mas é um problema porque é longe. Cheguei a falar com o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Tomar para nos alugar as instalações do antigo hospital, onde trabalhei. Queria criar lá uma unidade do género. Criaram-me dificuldades. A minha mulher – que é enfermeira da nossa equipa – andava farta de me chatear para construir qualquer coisa em Santarém. Um dia estava de urgência e disse ao António Júlio: «Já ando farto de caminhar para o Entroncamento. Temos de criar aqui um espaço nosso». A ideia começou assim. Nesse dia começámos a estabelecer contactos. Comprámos o terreno, fizemos o projecto e está quase acabado. Ao contrário de Tomar Santarém acolheu bem o projecto...O Dr. Moita Flores foi excepcional. Colaboraram sempre não ultrapassando a lei mas agilizando a aprovação das coisas. Ainda bem que foi assim. É uma desgraça o que se passa em muitos municípios deste país. E tiveram até direito a uma isenção.Por cada área que construímos temos que dar determinado espaço à câmara. A área que tínhamos não nos permitia fazer essa concessão que teria que ser paga. O que pedimos à câmara foi que nos isentasse desse valor. A proposta foi aprovada em sessão de câmara com a abstenção do partido socialista. Em causa estavam 140 mil euros. Sondaram outros municípios?Sim. Almeirim, por exemplo, mas a nossa vontade desde o princípio foi fazer em Santarém. É aqui que temos as seguradoras. Praticamente todas as capitais de distrito têm coisas do género. Nós não tínhamos nada. É importante que um projecto deste calibre tenha os médicos envolvidos como empresários?Sobretudo como empresários. Estão a defender uma coisa que é deles. Querem o melhor. O indivíduo que faz uma clínica e que não é médico tem como único objectivo o lucro. Nós temos outras preocupações.Quem investe quer ganhar dinheiro. No seu caso não será também assim?Não… Neste momento estou a fazer cirurgia do SIGIC (Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia). No Hospital do Entroncamento eu podia pôr a prótese de anca que estou a pôr no Hospital de Santarém - que custa metade do preço. Ganhava mais dinheiro mas não quis. Se temos uma prótese que custa dois mil euros mas que dá garantias de que os doentes vão ficar bem preferimos isso a colocar uma prótese de mil euros que não dá essa garantia. Os médicos, por muito mal que digam deles, não querem só ganhar dinheiro. Queremos acima de tudo bons resultados.Então um médico gestor nunca será um empresário tão bem sucedido…Não necessariamente. Nós sabemos exactamente o que queremos e precisamos. Sabemos gerir sem desperdício melhor do que um empresário que não tem conhecimentos na área. Um amigo dizia-me: «Tens que meter aqui um gestor». Eu respondi-lhe: «Para me levar à falência?» Como é que teve coragem de avançar com o projecto numa altura em que as famílias têm mais impostos para pagar e algumas os salários cortados?Seja qual for o partido que vá governar o nosso país, por muito boa vontade que tenha, não tem maneira de manter o Serviço Nacional de Saúde tal como está.O problema é que muitas pessoas não poderão recorrer a um serviço privado...Com certeza que não. A política de saúde tem que ser revista no sentido de dar igualdade de oportunidades a uns e outros e de forma a que a qualidade seja garantida. Neste momento uma cirurgia em qualquer hospital do Estado fica muito mais cara do que num hospital privado. Porque é que o Estado começou a fazer as listas de espera fora do hospital? As listas de espera dão prejuízo a um hospital que tem a estrutura toda montada. Nós conseguimos fazer essas cirurgias e ainda ganhamos dinheiro para o hospital e para os médicos com materiais melhores do que aqueles que são usados no hospital público. Consegue explicar-me isto?É um problema de gestão?Exactamente. Sabe em quanto fica uma consulta de urgência no Hospital de Santarém? Em 120 euros. Uma pessoa está em Coruche, dá um pontapé e fica com o dedo a sangrar. Chama uma ambulância. O cidadão comum vai ter que participar no pagamento da ambulância e em mais esses 120 euros. É impossível o Estado continuar a suportar isto. Vamos ter um Serviço Nacional de Saúde só para pobres e indigentes?Não acredito que o Serviço Nacional de Saúde venha a ficar só para pobres. Mas tem que haver uma grande modificação na forma como está organizado. Há um desperdício enorme que todos nós pagamos. As pessoas que trabalham lá têm responsabilidade e os doentes também. Os doentes têm responsabilidade a que nível?Usam e abusam do Serviço Nacional de Saúde muitas vezes de forma injustificada. Há outro problema grave: o acesso aos hospitais. Vamos a qualquer urgência no país e está à pinha. Os serviços nos centros de saúde não funcionam. Metade das pessoas não tem médico de família. Não estou a criticar os colegas mas isto não é bom para o país. No hospital tenho 240 doentes inscritos para operar. Quando é que vou conseguir operar estas pessoas? Acho que andamos a enganar os doentes. Em 1993 estive no Hospital da Prelada no Porto. Funcionava de manhã à noite. O objectivo era fazer sete cirurgias por dia. Na parte administrativa tinham três funcionários. As pessoas trabalhavam com objectivos. Isso não acontece no público. Sente o estigma do funcionalismo público? Sem dúvida. No tempo de Leonor Beleza foi criada a exclusividade dos médicos. Posso ser criticado pelos colegas que defendem a exclusividade mas penso que esse foi um dos grandes males. Grande parte dos meus colegas em exclusividade tem um horário e o ordenado garantido. Eu nunca estive em exclusividade. Acho que tira a motivação para trabalhar. Como vê os protestos na região, frente aos centros de saúde?O distrito, pelo que sei, com a quantidade de colegas que se reformaram na área da medicina familiar vive uma situação dramática. Quem fica lá apanha com tudo. Chamam-lhes nomes mas eles já não têm capacidade para mais. São humanos e têm um limite de resistência. Há relatos de médicos contratados por empresas para o Serviço de Atendimento Permanente que adormecem a meio das consultas. É aceitável que seja assim?Muitos serviços de urgência estão a recorrer a esse sistema. A despesa com os médicos entra como material em vez de entrar na rubrica dos vencimentos. É uma maneira de esconder as despesas. O que pensa sobre a vinda de médicos de outros países?Outro disparate. Está tudo mal desde o início. Quando os nossos filhos queriam tirar medicina tiveram que ir para Espanha e para a República Checa porque não tinham vagas. Andamos a ser governados por tontos. Agora vão contratar colombianos. Nem eles nos entendem nem nós os entendemos a eles. A medicina tem muito a ver com a sensibilidade de cada país e com os hábitos que eles não conhecem mas as pessoas ficam contentes por terem lá um médico. Novo hospital privado de Santarém em Outubro O novo hospital privado de Santarém, que está a ser construído nas traseiras do Staples (na estrada para Casais da Alagoa), deverá ficar concluído no final de Agosto para abrir as portas entre Outubro e Novembro deste ano. A garantia é dada por um dos sócios, o médico ortopedista Manuel Oliveira. Um grupo de sete investidores – dos quais apenas dois não são médicos - decidiu apostar na estrutura que vai ter todas as especialidades médicas (com excepção da cirurgia cardio-torácica), três blocos operatórios, 24 camas de internamento e vários tipos de exames complementares de diagnóstico. Todo o equipamento para o hospital já foi comprado. O projecto “Scalmed – Hospital Privado de Santarém”, que começou a ser pensado há um ano, está orçado em 12 milhões de euros. “É um projecto ambicioso que vai ser muito bom para o distrito e para o próprio Hospital Distrital de Santarém porque vai ajudar a fixar os profissionais. Estamos a fazer isto com muita paixão”, revela Manuel Oliveira. Alguns médicos vêm de Lisboa e Coimbra. O conselho de administração escolheu os elementos para formar as equipas e cada um constituiu o seu grupo de trabalho. “Acho que é importante que as pessoas trabalhem num ambiente agradável e que saibam o que os outros valem”, explica Manuel Oliveira que garante que vai fazer uma mistura de equipas colocando elementos mais experientes com profissionais mais jovens a fim de lhes permitir adquirir mais experiência.“Vamos fazer alguns exames que até aqui obrigavam os doentes a deslocarem-se a Lisboa”, exemplifica. Na pediatria, por exemplo, a unidade vai ter várias valências, nomeadamente cardiologia pediátrica, urologia, entre outras. A equipa vai contar com oito especialistas só em ortopedia além de médicos especializados em cirurgia geral, urologia, otorrino, oftalmologia, entre outras especialidades. No total o hospital privado de Santarém vai acolher 60 profissionais, entre médicos, enfermeiros, administrativos e assistentes operacionais. A área tem cerca de 5700 metros quadrados. O edifício inclui cave e dois pisos.O estudante de medicina que sempre ajudou os pais na agriculturaÉ verdade que quando era mais jovem chegou a pensar ser pedreiro?Dizia isso em miúdo. Sabe porquê? O meu pai fez uns armazéns e quando lá andavam os pedreiros achei piada ver aquilo a crescer. Dizia ao meu pai que queria ser pedreiro. Depois passou-me a vontade (risos). Por causa das notas pensei que poderia não entrar para medicina e a dada altura pus a hipótese de seguir Engenharia electrotécnica ou Direito.Não foi um aluno de 19?Os meus pais eram agricultores e sempre trabalhei durante o tempo de liceu. Ajudava e gostava muito do trabalho. O meu pai tinha lagares de azeite, terrenos e destilaria de figo e eu laborava com ele. Tínhamos muitos animais. Às tantas trabalhava mais do que estudava. Entrei para Coimbra com 12,5 valores. O que é facto é que depois de estar na faculdade acabei por ter notas iguais ou superiores a uma colega que entrou com 19 porque tinha mais tempo para estudar. E que opinião tem dos alunos de 19?Acho que temos bons miúdos a trabalhar mas alguns pensam que a nota lhes dá a sabedoria e não é verdade. Muitos não têm conhecimento de vida nem senso clínico. O que fazia na agricultura para ajudar a família?Com nove anos já andava debaixo das figueiras a apanhar figos. Comecei cedo a trabalhar com o tractor. Isso faz bem aos jovens. Hoje em dia as pessoas têm falta de saber o que custa a vida porque cai-lhes tudo do céu. Os filhos não dão valor a nada. Esta parte da minha vida ajudou-me a crescer. Nasceu em casa?Nasci em Cabeças, a três quilómetros de Tomar. Curiosamente quem fez um parto à minha mãe foi um colega oftalmologista. O parto correu mal e por isso sou filho único. O médico chegou a perguntar ao meu pai quem queria que se salvasse: se o filho se a mãe. A infância vivida no espaço rural foi feliz?Podemos ser muito mais felizes ao ar livre. Fartei-me de fazer casas com tijolo. Os jovens agora estão todo o dia agarrados aos computadores. É doentio. Nós íamos aos pássaros, subíamos às árvores e fazíamos bolas de trapos para jogar. Como foi a sua vida de estudante?Estava no terceiro ano da faculdade quando me casei. A lua-de-mel foi interrompida por causa de um exame. A minha ex-mulher tirou radiologia. Eu que sempre tinha querido voltar para Coimbra, onde tinha vaga, acabei por ficar por Santarém porque ela estava aqui. Tivemos um filho. Acho que nos casámos cedo demais. Passados três anos as coisas começaram a correr mal e acabámos o casamento. Casei com uma enfermeira que faz parte da minha equipa há já muitos anos. Alguma vez deixou um doente por tratar por falta de capacidade económica?Não. Se me aparece um doente que não tem capacidade económica posso não o operar numa entidade privada mas tento levá-lo para uma unidade pública. Nunca deixei por tratar um doente por falta de capacidade financeira.O médico que detesta acordar cedoCostuma dizer aos amigos que o dia deveria começar a seguir ao almoço. Levantar cedo é o que mais custa ao médico ortopedista Manuel Oliveira, 53 anos, que se divide entre o trabalho no Hospital de Santarém e as clínicas privadas. Tem problemas em adormecer e por isso não se importa de trabalhar até tarde. É filho único e tem também um único filho do primeiro casamento. A companheira é uma enfermeira da equipa de ortopedia com quem trabalha. Vivem com a filha da esposa, de 13 anos. O filho de Manuel Oliveira estuda em Coimbra mas visita-o aos fins-de-semana, sempre que pode. Desde que deixou de fazer bancos de urgência no Hospital de Santarém, onde agora vai apenas duas vezes por semana, consegue jantar mais cedo. Como médico divide-se por Santarém, Chamusca, Almeirim, Tomar e Entroncamento. Costuma refugiar-se ao fim de semana na casa com piscina que construiu em Tomar. A família passa actualmente mais tempo em Santarém. Visita com regularidade os pais, de 75 e 78 anos, e a avó de 102 que tem na cidade do Nabão. Grelhados é a única coisa que se aventura a fazer na cozinha. Não aspira nem passa a ferro. Gosta de ver o mar numa esplanada para recuperar a paz de espírito. Os espectáculos, sejam de música ou teatro, também o ocupam nas horas vagas. A caça, tal como as viagens, é uma paixão. Em casa tem um mini ginásio para quebrar a monotonia das horas que passa parado entre as consultas e as operações.

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