“O povo português também é cego quando lhe apetece”
Ruy de Carvalho esteve na livraria “Mensagem Aberta” em Vila Franca de Xira
A livraria bar “Mensagem Aberta”, em Vila Franca de Xira, encheu na quinta-feira à noite para uma conversa com o actor Ruy de Carvalho. Tem 84 anos mas guarda dentro de si um menino de 18. A peça chamava-se “O Render dos Heróis”, de José Cardoso Pires. Estreou a 1965 no Teatro Império de Lisboa com música de Carlos Paredes. Ruy de Carvalho interpretou o cego e a imagem do homem - acocorado a um canto, de viola aos pés, com uma lata na mão para receber esmolas - ficou de tal forma marcada que o actor a elege como a grande personagem de uma longa carreira que já vai em 64 anos. “O povo português também é cego quando lhe apetece”, diz Ruy de Carvalho. A frase rendeu-lhe uma salva de palmas na livraria bar “Mensagem Aberta”, na Miguel Bombarda (Rua Direita), em Vila Franca de Xira, que encheu na noite de quinta-feira, 21 de Abril, para ouvir as histórias de um actor consagrado que, aos 84 anos, se apresentou com refinado sentido de humor, memória intocável e a simplicidade que lhe é reconhecida.Ruy de Carvalho reside na Rua Armando Cortez, em Paço de Arcos, no concelho de Oeiras, mas visita frequentemente Vila Franca de Xira. O filho, João de Carvalho, também actor, mora em Alverca e é vereador da Coligação Novo Rumo (PSD/CDS-PP/MPT/PPM) na Câmara Municipal de Vila Franca de Xira. As memórias mais vincadas que Ruy de Carvalho tem da cidade são curiosamente dos tempos distantes em que atravessava a Ponte Marechal Carmona para viajar rumo ao Alentejo. Ruy de Carvalho confessou-se apaixonado pelas viagens e pela África do seu coração para onde já viajou 29 vezes mas que ainda não acabou de visitar. Falou com a humildade que admira nas pessoas e que não confunde com subserviência e no papel dos homens e no papel das mulheres de hoje.O actor, que elogiou a mãe dos seus dois filhos, companheira de sempre que já partiu, aproveitou para louvar o trabalho das mulheres na sociedade portuguesa que na sua opinião “estão a ajudar o país a crescer”. Contou anedotas, falou dos truques dos beijos técnicos, das vissicitudes em palco e do livro de poesia de Ruth Ministro que está a ler: “A Minha Nuvem”. Bonito, descreve, não se aventurando pelas desventuras de amor da autora. Sobre José Saramago conta como se incomodou quando o escritor “apagou” dos livros a dedicatória a Isabel da Nóbrega. Entre uma e outra provocação da plateia solta-se, inesperadamente, uma voz mais firme para lembrar um excerto de uma peça de “Gil Vicente” a propósito das proibições e das preferências da Censura. O actor transfigura-se para encarnar a personagem e volta a ficar sereno pouco depois. Foi amigo de Alves Redol que também escreveu para o teatro. “Via-o no Café Império com a sua bóina”, confidencia. Concorda quando alguém diz que mesmo as grandes peças ficam pouco tempo em cena em Portugal e lembra que em Portugal as pessoas se afastaram do teatro com receio do preço dos bilhetes. Em palco, mesmo às escuras, sente o papel de um rebuçado a abrir-se e ouve as senhoras a mexer nas carteiras. “Os homens ressonam mais”, diz com humor. Os médicos nunca desligam o telemóvel e fazem um sinal para pedir desculpa por abandonar a sala quando recebem uma urgência. Um dia um comboio que passou no Entroncamento em 1941 - num espectáculo ao ar livre do Teatro do Povo - provocou no actor um lapso de memória que o fez continuar a repetir por instantes o mesmo gesto sem falar. A “branca” que o atingiu em plena peça terminou depois do comboio passar porque o actor recuperou o texto socorrendo-se dos movimentos corporais. Tinha 23 anos. Hoje tem 84 anos e guardado dentro de si o jovem de 18 anos que nunca deixou de ser.
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