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“Falta educação dos autarcas para a arte”

João Cutileiro inaugurou exposição de desenhos na Sociedade Euterpe Alhandrense

O mestre João Cutileiro, 74 anos, esteve em Alhandra no sábado, ao final da tarde, para inaugurar uma exposição de desenhos que pode ser vista até 13 de Junho na Sociedade Euterpe Alhandrense. O MIRANTE aproveitou para falar com o consagrado escultor. Os desenhos de perfis femininos desnudados - obsessão do artista - foram pretexto para uma conversa sobre medidas perfeitas, pedreiras e arte pública entre risos, ironias e desprendimentos.

Por que é que anda de máquina fotográfica ao peito?Preciso de ter mais olhos e sobretudo mais registos. Está a aproveitar para captar imagens de novos modelos?Não só para modelos. É para a vida. Captei aqui, por exemplo, a minha neta. É muito raro não trazer a máquina e quando não trago arrependo-me. Porquê esta obsessão pela figura feminina?Vem de criança. Sempre gostei muito.A figura do homem não é tão apelativa?Para mim foi quando os meus filhos tinham 12, 13, 14, 15 anos. Depois perderam a graça (risos).O senhor não se deixa fascinar apenas pela figura feminina perfeita.O que é a figura perfeita de mulher? O que é para si?Não há. As mulheres podem ser muito bonitas ou não conforme a atitude que elas tomam em relação ao seu próprio corpo.Uma mulher avolumada pode ser bonita.Sim! Ainda agora estava a falar com uns amigos de umas prostitutas ucranianas que são-me trazidas a Évora para serem desenhadas. Não quero estragar a fonte... mas é uma tristeza. São tão bonitas mas falta-lhes brilho no olhar. É a primeira coisa. Depois é o saber estar.Elas não sabem estar?Para elas sabem. Para mim não - Gosta de peixe? - (risos).Não é apenas aquilo que vê. É aquilo que sente para além disso. Sinto mas acho que os olhos ajudam muito. Tem algumas esculturas na região, sobretudo em Torres Novas [D. Sancho I, frente ao Castelo]. Costuma revisitá-las?Por hábito não. Se estiver perto dá-me um certo prazer visitar e às vezes fotografá-las nos enquadramentos. Normalmente acompanho a colocação mas entretanto cresceram mais umas ervas. É bonito tornar a vê-las.E nestas alturas tem vontade de mudar alguma coisa?Bloqueei essa vontade mas é um processo de autocontrolo. É como sentir uma espécie de ciúme. É como quando se vê um ex-amor com outro. Temos que nos controlar para não lhe ir bater. Assimilo que foi o melhor que fiz na altura e parto para outra. Vila Franca de Xira tem um Museu do Neo-Realismo, corrente em que não se enquadra.Já disseram que sim. Já me chamaram surrealista. Já me chamaram tudo.Como é que lidou com a corrente?Na pintura há coisas boas e más. Escultura neo-realista não me lembro de ter visto nenhuma boa. O concelho vive a grande problemática das pedreiras. As populações não gostam de tê-las ao pé. Como é este assunto visto aos olhos de um escultor?Percebo perfeitamente o manifesto. Dá-me vontade de dizer: se ele há tanta mulher, se ele há tanta pedra, porquê só uma? A minha fantasia “distingue escolhe e quer” [cita Marcelino Mesquita]. Não é preciso ir às pedras que estragam a vida dos vizinhos. Há outras pedras... Se não tens cão caças com gato. Falou em erotismo quando falou nos desenhos que tem em exposição. É um sentimento que fica para quem frui a obra?Lembro-me do velho e grande amigo Sá Nogueira, que a dada altura foi neo-realista, pegar numa escultura minha de uma menina nua e dizer-me: “deves ficar muito excitado quando fazes isto”. “Não, não”, respondi, para mim são bocados de pedra. Excito-me na produção mas não sexualmente. Quem as vê sente o que quiser.Como lida com a crítica sobre o uso e abuso do corpo e dos nus na sua obra?A Maria João Seixas mandou-me no dia de aniversário um telegrama - acho que ainda não havia e-mails - com uma citação de um escritor espanhol do século XVII: “Uma mulher nua nunca sai de moda”. Confessou há pouco entre amigos que tem o sonho recorrente de se achar sem calças na rua. É isso que acontece com algumas das suas obras. Não. Isso tem a ver muito mais com a infância e com a repressão que os portugueses levaram a esse nível. É a ideia do ser apanhado com as calças na mão. Além da figura da mulher a imagem do guerreiro também está na sua obra.Durante vários anos estive sob a ameaça de ir para Angola matar gente ou emigrar e nunca mais pôr cá os pés. Nos anos sessenta ninguém acreditava que houvesse 1974. O guerreiro existe a esse nível. Em Alhandra temos uma escultura de homenagem a Soeiro Pereira Gomes, em Vila Franca de Xira a Alves Redol. Como vê a arte pública no concelho?As esculturas públicas que vi aqui são más. Em outros sítios de outros concelhos vejo também coisas muito más. Se antigamente ficava um pouco ressentido por ter recebido tão poucas encomendas estou agora muito contente por não ter tido mais. É um problema do artista ou da ideia que a autarquia lança?Basicamente a culpa é da autarquia. Os autarcas foram eleitos por algumas características que não têm nada que ver com a capacidade de escolher artistas e depois espalham-se. É um problema da falta de educação dos autarcas. Que gastam também muito dinheiro na arte pública.Aqui há anos um arquitecto coordenador de uma grande obra (que eu não digo qual é) veio encomendar uma peça para essa grande obra. Perguntei-lhe qual era o valor e ele disse-me. Eu respondi: “tente fazer um urinol público com esse dinheiro” (risos). Acha que foi por isso que não teve tantas encomendas?Não. Os meus preços são iguais aos outros.Pela frontalidade que tem?Ajuda (risos) mas não me arrependo da postura que tenho tido conhecendo os meus colegas que trepam.

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