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Uma vida a criar toiros

Uma vida a criar toiros

João Ramalho vive em Salvaterra de Magos há 76 anos e possui a sua ganadaria há meio século

Apaixonado pelo mundo da festa brava, João Ramalho é ganadeiro há 50 anos. Nasceu em Lisboa a 24 de Setembro de 1934 mas foi registado em Salvaterra de Magos onde viveu toda a vida. Filho de pai ganadeiro foi com naturalidade que seguiu esse caminho. Diz que uma boa lide não tem que ser bonita e que a maioria das pessoas vai aos toiros pelo divertimento e não pela beleza da faena. Defensor dos toiros de morte, afirma que os empresários portugueses compram toiros espanhóis porque são muito mais baratos. Antigo forcado do grupo de Santarém, pegou 60 toiros, 56 dos quais à primeira tentativa. Não tem computador nem utiliza internet e só tem telemóvel porque lhe ofereceram.

Quando um toureiro não se sai bem numa lide, costuma-se dizer que o problema é do toiro. Concorda com esta teoria?Não. Existem toiros que os toureiros não são capazes de dar a volta. São os chamados toiros bravos. O toiro bravo é aquele que nos faz secar a boca quando estamos à sua frente, que impõe respeito. O toiro que os toureiros gostam e que o público hoje em dia acha que é o toiro bravo é o toiro colaborador, é um animal menos agressivo e que ajuda no espectáculo. Quando aparece um toiro com bravura os toureiros têm mais dificuldade em lidar.Qual é a principal característica que um toiro deve ter para ser bravo?Para ser bravo um toiro tem que ter uma casta boa porque se for má só tem medo e isso é péssimo. É fatal tanto para o animal como para o espectáculo. Um toiro com casta boa é nobre e luta até ao fim. Vem sempre galopando, defendendo a sua morte, mas sempre a querer combater.Ainda existem toiros bravos?Há críticos que dizem que o toiro não é bravo, mas na verdade o que é preciso é ter toureiros de grande dimensão que saibam lidá-los, dobrá-los, castigá-los, dominá-los para depois tourearem de forma bonita. O público hoje, nitidamente, gosta mais da faena bonita. Diverte-se mais. Agora o que eu pergunto é se este toiro que proporciona uma faena bonita é bravo ou não. Na praça do Campo Pequeno, por exemplo, que tem capacidade para cerca de oito mil pessoas, existem apenas duas mil pessoas que sabem o que estão a ver, os outros vão apenas pelo espectáculo.Uma boa faena não tem que ser bonita?Uma boa faena pode nem sequer ser bonita. A função do toiro é combater, é investir no seu adversário que está na arena, neste caso, cavalo e cavaleiro. Se um toiro é combativo não deixa o cavaleiro fazer coisas bonitas como a pirueta, por exemplo. Para o grande público, quando um cavaleiro não consegue fazer estas acrobacias não gosta da faena.Há bons cavaleiros em Portugal?Tirando o Pablo Hermoso de Mendoza, que é excepcional, Portugal é o país que tem melhores toureiros a cavalo. Na minha opinião existem dez toureiros em Portugal que são figuras. Só tenho pena que esses toureiros que são figuras sejam tão repetitivos nos cartazes. São sempre os mesmos e em todas as praças. Considero que há praças onde não interessa eles irem e deviam dar oportunidade aos mais novos, que não são figuras, de tourearem nessas praças menos conceituadas.Portugal tem toureiros a cavalo a mais?Tem muitos. Toda a gente quer ser cavaleiro. Hoje em dia não se aperta com os artistas. Na minha época ia-se aos toiros por afficion e muito para ver e criticar. Hoje em dia vai-se aos toiros para divertimento e não se está preocupado com os pormenores e técnica do toureio.O público mudou muito nos últimos anos?Sim. Não é tão exigente. Na minha época de forcado, na década de 50 e 60 - que foi a época áurea do toureio a pé em Portugal - era muito raro ver toureiros e forcados darem a volta à arena como se faz hoje. Na maior parte das vezes, os toureiros iam aos tercios agradecer e voltavam para dentro. Mas os cavaleiros e os toureiros não têm que dar a volta à praça para agradecer porque a sua obrigação é desempenharem uma boa lide.Nesse tempo as corridas de toiros não eram para as elites?Não. Eram um espectáculo digno em Lisboa, que se realizava aos domingos e às quintas-feiras, e aos sábados em Algés. As praças estavam sempre cheias. Os bilhetes para a juventude eram mais baratos do que os bilhetes de cinema por isso as pessoas gostavam de ir aos toiros. Um bilhete custava cinco escudos o que equivale agora a um euro e meio.“Os toiros em Espanha são mais baratos”Por que é que os empresários, como aconteceu na época passada, apostam em comprar toiros em Espanha?Compram em Espanha porque são mais baratos. Em Espanha existem muitos toiros e menos corridas. E existem muitos ganadeiros que se meteram no negócio apenas porque têm dinheiro e querem ser conhecidos no mundo da festa brava. Para isso pretendem que os toiros sejam lidados nas praças importantes. Por isso vendem os seus toiros para as praças importantes praticamente de borla, porque querem aparecer e ser conhecidos. É diferente uma pessoa ser ganadeiro de tradição do que aquele que tem o negócio como outra profissão qualquer.Os toiros espanhóis são melhores que os portugueses?É igual. A grande maioria dos toiros espanhóis que vêm para Portugal são toiros já ‘tentados’, não estão corridos e trazem o certificado em como estão puros. No final das corridas têm que ser mortos. A carne em Espanha vale 60 euros e em Portugal vendem a 200 euros o quilo. É um grande negócio para eles.Os ganadeiros portugueses têm dificuldades em colocar os seus toiros em Espanha?Sim. Nós cá deixamos entrar tudo, desde que tenha o certificado o animal pode vir imediatamente. Os espanhóis têm mais vantagens em trazer os animais para Portugal do que nós para Espanha. Desde que o toiro esteja sanitariamente bom pode entrar e vem para morrer. Quando o toiro vem para ser morto no nosso país o animal tem dez dias para entrar em Portugal. Os empresários compram o toiro, lidam e matam. Um toiro lá, se matarem, vale à volta de 200 euros e cá vale 600 euros. A diferença é enorme, por isso os espanhóis vendem os toiros mais baratos.Quem é que manda actualmente na festa brava?São os empresários porque há muita gente a querer tourear. As grandes figuras têm direito a escolher os toiros que querem lidar. Faz parte da festa. No tempo em que eu era forcado nos Amadores de Santarém, o grupo era o grande cabeça de cartaz. Nós é que escolhíamos os toiros que queríamos tourear. E acontecia o mesmo com os toureiros que eram figuras. Isso acabou e tenho muita pena porque um cavaleiro que seja figura tem que poder decidir que toiros quer lidar. As grandes figuras têm que poder ter o direito de decidir que ganadaria de toiros vão querer tourear.A festa brava perdeu a beleza que a caracterizava?Acho que sim. Antes era uma festa e vivia-se para aquilo. Por exemplo, as pessoas juntavam dinheiro para a corrida que se realizava durante a feira de Salvaterra de Magos. As pessoas viviam para aquele dia. Em torno da praça, antes de chegarem os toiros, já se discutia e falava sobre como ia ser corrida. E acontecia o mesmo um pouco por todo o país onde existe a tradição das corridas de toiros. Acho que antes era mais bonito.Devia haver uma revisão de todo o cerimonial das corridas de toiros?Concordo com a redução do tempo do espectáculo. As cortesias podiam ser muito mais breves porque demoram muito tempo e é péssimo para os espectadores. As voltas à arena não fazem sentido porque os artistas já foram aplaudidos durante a lide. Tudo isto encurtaria o espectáculo em pelo menos uma hora.As praças deviam modernizar-se e serem mais confortáveis?As pessoas hoje em dia são muito comodistas e querem estar bem instaladas, mas se todas as praças fossem um pouco mais largas com espaço para se encostarem seria melhor.Disse recentemente que existem muitos jogos de interesses no mundo da festa brava. Que jogos são esses?Atrever-me-ia a dizer que existem cinco grupos de forcados em Portugal que vão às grandes praças. Os outros grupos, para actuarem nessas grandes praças, não pagam o toiro porque é proibido, mas têm que garantir um determinado número de bilhetes e se não tiverem esse número de bilhetes o dinheiro que lhes dão para a ceia não é tão grande. Isto para mim é um jogo de interesses onde os empresários dominam. Claro que não são todos assim mas muitos fazem isto.Os empresários não têm uma postura correcta?Acho que não. Hoje em dia ser empresário é um modo de vida e eles no fim da época têm que fazer contas e perceber se ganharam ou perderam. Tenho pena que entrem nesse jogo onde só o dinheiro interessa.Costuma acompanhar as corridas em que participam os seus toiros?Todas. Só não vi duas, uma em França porque vendi os toiros para serem lidados em Portugal mas só depois é que soube que já tinham sido lidados em Fréjus. A outra não vi foi porque tive duas corridas no mesmo dia, na Figueira da Foz e em Santo António das Areias, perto de Marvão, onde as minhas filhas me representaram. De resto vejo todas.“Se os empresários baixassem preços dos bilhetes as praças enchiam”O espectáculo em Portugal está a perder a força?Não, está com mais força.Isso deve-se a quê?Há muita juventude a ir aos toiros e isso é importantíssimo. É o espectáculo que tem levado mais gente nova aos toiros e isso deve-se muito aos forcados. Hoje em dia não há terra que não tenha um grupo de forcados. Os forcados trazem os amigos, as namoradas e as mulheres que levam as amigas. É devido aos forcados que se tem aumentado o número de pessoas nas praças de toiros.Existem grupos de forcados a mais em Portugal?Sim, o que prejudica a festa. Se existisse metade dos grupos que existe actualmente já era muito bom porque ficavam os de melhor qualidade. Por exemplo, no grupo de Salvaterra de Magos há forcados muito bons. Depois os colegas ficam tristes porque os melhores saem do grupo para irem para outro, mas isso sempre foi assim.É defensor dos toiros de morte?Sou.Porquê?É a maneira mais digna de um toiro morrer. Não concordo que o toiro depois de lidado seja levado pelos cabrestos e morra no matadouro. Acho que era muito mais digno morrer a lutar na praça.Acredita que vai ser possível voltar a matar toiros nas praças portuguesas?Não. Não temos uma grande figura do toureio apeado que permita que as corridas com toiros de morte voltem a Portugal. Se houvesse toureiros a pé com força para que as corridas voltassem a ser como eram antes de chegar o João Moura talvez houvesse oportunidade para as corridas de morte.Como assim?Quem acabou com o toureio apeado foi o João Moura porque era um cavaleiro com muita força e como não havia muitos toureiros a pé ele praticamente impôs a corrida a cavalo. Era muito bom e como não havia grandes figuras não lhe puderam bater o pé.As câmaras municipais devem ajudar a festa comprando bilhetes ou dando outro tipo de apoios?Devem, porque nos dias de corrida é uma mais valia para as terras. Os restaurantes e cafés enchem. É uma grande propaganda para as localidades onde se realizam corridas. Apesar de haver algumas corridas com preços baixos, por que é que ainda se mantêm preços pouco convidativos para as famílias irem aos toiros?Porque estupidamente os empresários têm a mania de jogar e fazem as contas à meia casa. Com meia casa já querem ter o espectáculo pago por isso colocam os bilhetes tão caros. Se praticassem preços mais baixos as praças enchiam e os empresários conseguiam talvez melhores resultados.O ganadeiro que não utiliza computador nem internetFilho de ganadeiro foi com naturalidade que João Ramalho seguiu as pisadas do pai. Nasceu em Lisboa a 24 de Setembro de 1934 mas foi registado em Salvaterra de Magos onde viveu toda a vida. Completou o curso na Escola Agrícola na capital. É na Quinta das Gatinheiras, no meio do campo, entre Salvaterra e Benavente que vive e onde possui a sua ganadaria. O seu dia começa habitualmente pelas seis e meia da manhã a tratar dos animais. Conhece-os um a um e sabe quem são as suas famílias.O ganadeiro recorda o seu primeiro contacto com os toiros. Tinha cinco anos e um enorme fascínio por aquele animal bravo. Estava com os irmãos e apesar da professora não deixar João Ramalho foi ver os toiros. Quando o avô soube que tinham desobedecido à professora deu-lhe duas palmadas. O menino João não gostou e disse um palavrão. O avô levou-o ao pai e contou-lhe o que se tinha passado. “Levei outra palmada”, recorda. Apesar de tudo a paixão pelos toiros manteve-se durante toda a vida.Aos 16 anos, numa picaria em Benavente, estreou-se a pegar toiros. Tudo para impressionar a rapariga com quem queria namorar. Quis ser toureiro mas tornou-se forcado do grupo de Santarém. Entre 1955 e 1961 pegou 60 toiros embora diga sempre que foram 58 porque não conseguiu pegar dois deles. “Costumo dizer com orgulho que, durante seis anos, peguei 56 toiros à primeira tentativa e dois à segunda”, conta. Despediu-se do mundo da forcadagem a 15 de Agosto numa corrida nas Caldas da Rainha. Quinze dias depois casou. Dia 30 de Agosto completa cinquenta anos de casado com actriz Tareka. Tem duas filhas e três enteados - dois dos quais o actor Tó Zé Martinho e a escritora Ana Maria Magalhães -, dez netos e cinco bisnetos.Monárquico e religioso assumido, João Ramalho começou a sua actividade como ganadeiro no ano em que casou tendo debutado em 1965. Tem entre os seus passatempos ler livros sobre toiros e recordar faenas antigas. Não tem computador nem sabe mexer com a internet e só tem telemóvel porque lhe ofereceram. “Fui praticamente obrigado a ter um telemóvel mas não ligo nenhuma ao aparelho”, confessa bem-disposto. O ganadeiro ainda não pensa na reforma. Quer continuar a trabalhar, se possível, até morrer. Passou o bichinho da aficcion à família mas não tanto quanto gostaria. O futuro da Ganadaria João Ramalho já está assegurado através das filhas e de alguns netos que ajudam o pai e avô com aquele que é o projecto da sua vida.“Se não fosse mulher a Ana Batista seria uma primeiríssima figura”Como vê as mulheres a lidarem toiros nas praças?Tenho imenso respeito pelas mulheres. A mulher é tão importante que tenho medo que na praça fique desfigurada ou tenha um dissabor grande por isso não gosto muito. Apesar de ter noção que existem toureiras muito boas.Que opinião tem sobre a cavaleira Ana Batista, sua conterrânea?A Ana se não fosse mulher era uma primeiríssima figura do toureio a cavalo em Portugal.É prejudicada por ser mulher?Sim. Não é machismo mas são muitos séculos em que se protege primeiro as mulheres e as crianças. Primeiro que esta mentalidade mude ainda vai demorar muito tempo.As mulheres têm mais medo que os homens dentro da praça?Não, talvez porque se sintam mais protegidas. Se uma mulher cair do cavalo dentro de uma praça, durante a lide, em segundos estão todos a protegê-la. Se for um homem a cair estão lá os capinhas e pouco mais. As mulheres não têm medo porque se sentem muito protegidas.Salvaterra de Magos tem apostado em espectáculos taurinos?Podia fazer mais. Era importantíssimo para o desenvolvimento do concelho porque as corridas de toiros trazem muita gente de fora.O que deveria ser feito?A Misericórdia, que é a detentora da praça, tinha a obrigação de quando alugasse a praça não olhar só ao dinheiro que vai amealhar, devia olhar também à categoria dos espectáculos que dão. Tem obrigação de guardar sempre um dia para a própria Misericórdia dar um espectáculo na sua praça de toiros. Eu e a minha mulher organizávamos sempre um espectáculo por ano, no Domingo de Ramos. Trazíamos grandes figuras do toureio e a praça enchia.A praça é disponibilizada para espectáculos populares?O ano passado pediram para realizar uma garraiada dos estudantes dentro da praça mas não emprestaram. Não se pode alugar uma praça para este tipo de espectáculo e devia poder. O empresário tem que ter a sensibilidade para abrir as portas aos jovens para se divertirem e continuarem com as tradições da festa brava.
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