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Maria do Céu Corça e o eterno fado da rosa enjeitada

História de uma cantadeira telefonista na fábrica de tomate de Azambuja

A noite de Lisboa perdeu uma fadista. A fábrica de transformação de tomate de Azambuja ganhou uma telefonista. Maria do Céu Corça, valor reconhecido na terra, viu a sua carreira promissora silenciada pelos brandos costumes de então. O destino não lhe calou a voz e as “fadistices” continuam a fazer parte da sua vida.

A rapariga, telefonista na fábrica de transformação de tomate de Azambuja, cantava Rosa Enjeitada: “Sou essa rosa, caprichosa, sem ser má/ Flor de alma pura e de ternura ao Deus dará/ Que viu um dia, que sentia um grande amor/ E de paixão o coração estalar de dor”. E a mãe interrogava-se. Mas porquê esta música, porquê, sobre uma rosa enjeitada “sem mãe sem pão sem ter nada?”.O tema vibrava no íntimo de Maria do Céu Corça - “Afinal desventurada quem és tu?” – mas a rapariga acabou por deixar levar-se na música dos brandos costumes de então. “Naquela altura era muito feio que uma rapariga fosse para Lisboa cantar o fado”, diz não totalmente conformada, à distância de várias décadas, a mulher que tem o coração em forma da rosa, tema imortalizado pela voz de D. Maria Teresa de Noronha, o seu ídolo de sempre no fado. Há quem diga que o timbre de Maria do Céu Corça, hoje com 67 anos, casada e com dois filhos, se assemelha à voz da aristocrata com alma de fadista. Os primeiros quatro discos (singles) da “diva” Maria Teresa de Noronha, foram oferecidos a Maria do Céu Corça por Joaquim Ramos, actual presidente da Câmara Municipal de Azambuja, que para a fadista amadora continua a ser o “Quitó”.São incontáveis as vezes que Maria do Céu Corça lançou a agulha no gira-discos para ouvir a voz que a inspirou. “Só canto fados dela”, diz com orgulho. O irmão é um poeta especial que faz questão de também interpretar. A letra que escreveu dedicada à mãe está no repertório (ver caixa) da fadista. Tudo começou há 52 anos nas récitas do grupo de teatro no salão paroquial da terra. Cantava Simone de Oliveira, Maria de Fátima Bravo, Lurdes Resende e Madalena Iglesias. O fado surgiu alguns anos depois, em 1965. Tinha 21 anos. O à vontade nas lides do fado levaram-na a ser convidada, como outros fadistas da zona, para cantar nos arredores: Alenquer, Carregado e Vila Franca de Xira. A acompanhar: um acordeonista cego. Só quando um chefe da fábrica e a esposa a convidaram para uma noite de fados na “Parreirinha de Alfama”, em Lisboa, Maria do Céu Corça interpretou um fado tendo as guitarras como cúmplices. Nesse dia conheceu Maria da Fé que tinha chegado do Porto e estava a iniciar carreira. O seu destino foi diferente. Provavelmente Maria do Céu Corça passou ao lado de uma grande carreira no fado. “Cheguei a falar nisso mas nem os meus pais nem os meus irmãos me incentivaram. Gostavam de ouvir mas queriam que ficasse por perto”, diz a fadista que ajuda a alegrar as noites da Feira de Maio nos apontamentos de fado vadio que se organizam do Largo dos Pescadores, no Largo de Santo António e pelas tertúlias da vila.As letras das músicas “Rosa Enjeitada” e “Cavalo Russo, com letra de um poeta da terra (ver caixa), foram decoradas de tanto as ouvir em disco e na rádio. Em 1965 teve o privilégio de cantar ao lado de Maria Teresa de Noronha numa festa de beneficência. Ainda era o Valverde uma quinta.Maria do Céu Corça não aprendeu a cantar na escola mas é uma entusiasta do trabalho que tem desenvolvido a Escola de Fado de Azambuja, secção do Centro Cultural Azambujense, que tem trabalhado para dar a conhecer os novos talentos. Tem uma cassete gravada e integra um grupo de fadistas numa compilação em CD. Entrou no filme sobre Azambuja. A cura de um linfoma custou-lhe parte das cordas vocais mas não a fez perder o amor ao fado. Agora choro em silêncioFoi a chorar que eu nasci/ Mas muito cedo aprendi/ A rir com a minha mãe/ Se a tivesse aqui agora/ Ria sempre a toda a hora/ Não sei rir com mais ninguém. / Mas quis Deus que ela partisse/ No dia triste e não disse/ Quantas saudade deixou/ Partiu nas asas do vento/ num feliz contentamento/ Foi um anjo que a levou./ Agora choro em segredo/ Sinto até às vezes medo/ de não ver mais, não ter esperança/ Se aqui estivesses mãe querida/ eu só riria na vida/ Voltaria a ser criança.António Pedro Corça“Cavalo Russo” nasceu em AzambujaA letra da música sobre o Cavalo Russo “que se chamava gingão” nasceu em Azambuja e é da autoria de Paulo José de Carvalho Vidal, um dos filhos do patrão do pai de Maria do Céu Corça, que foi feitor da Casa Vidal durante mais de meio século. “Foi o meu pai que amansou esse cavalo russo”, diz com orgulho a fadista natural de Azambuja, onde o tema dos toiros anda de mãos dadas com o fado. A mãe ia ajudar a fazer o enxoval das filhas e o pai ajudou a criar os filhos quando a senhora Vidal enviuvou. A ligação com a família continua. “Eu tive um cavalo russo/ Que se chamava Gingão/ De uma capona bravia que eu queria sentia/ Como um bom irmão/ Era o cavalo mais lindo, que nasceu no Ribatejo/ Eu nunca tive outro assim, tão manso que enfim/ Ainda o desejo! / Saltava que era um primor/ Tudo fazia com graça/ Era bom a tourear a derribar sem vacilar/ No campo ou na praça/ Corria lebres com gosto/ E nenhum galgo o passava/ Quando o viam a correr e com prazer e sem sofrer/ A todos pasmava!/ A brincar lá na lezíria, podiam admirar! / A brincar lá na lezíria, podiam admirar! / Ainda parece que o vejo à beira do Tejo, a correr a saltar/ Foi um toiro que o matou,/ num dia de infelicidade/ eu nunca mais montei nem sei se o farei, /tal é a saudade”.

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