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Quando as papelarias alugavam romances e o barbeiro fazia negócio com livros de cowboys

Quando as papelarias alugavam romances e o barbeiro fazia negócio com livros de cowboys

Maria José Vitorino, professora e bibliotecária, e a sua Vila Franca de Xira de outros tempos

A biblioteca municipal emprestava livros e na papelaria alugavam-se romances de amor. O barbeiro fazia negócio com aventuras de cowboys. Nos anos 60 e 70 do século passado Vila Franca de Xira fervilhava cultura impulsionada pela classe operária e por algumas personalidades ligadas à Igreja. Maria José Vitorino requisitava livros em nome da mãe e das tias. Memórias de uma professora e bibliotecária, premiada a nível internacional, que hoje ajuda professores e alunos a “construir” bibliotecas nas escolas.

Como foi a sua infância em Vila Franca de Xira?Fui criada no cais. Em Vila Franca de Xira nessa altura sentia-se mais a diferença entre grupos sociais. Havia muita gente que não ia ao cais. Vila Franca era muito mais longe de Lisboa. Havia menos pessoas e as pessoas conheciam-se mais. Faziam as compras e pagavam na altura da feira. Mandavam-se fazer sapatos e samarras. A Feira de Outubro era a altura de fazer compras e o colete encarnado era a altura dos emigrantes regressarem. O que faziam os seus pais?A minha mãe era de origem varina. O meu pai era de Torres Novas e veio trabalhar para Vila Franca. O meu pai abriu uma agência de viagens onde a minha mãe também trabalhou. O meu avô era comerciante de peixe. Era das poucas pessoas que tinha telefone para poder saber se estava mau tempo para ir buscar o peixe. Vendia na lota, perto dos SMAS. Depois as varinas iam vender com a canastra à cabeça. Os netos juntavam-se ali. Nasci na casa onde funciona hoje os Correios e vivi sempre perto do hospital. Ainda hoje moro no bairro do mercado. É onde gosto de viver. E em menina ia brincar para o rio?Sim. Não me lembro de não saber nadar. Acho que não tive uma infância típica, muito menos sendo rapariga. Mesmo entre os mais crescidos não havia muita gente que nadasse. Um tio meu nadava bem. Havia uma única mulher que também nadava que era a Loló, a quem também chamavam a sereia do Tejo. Uma mulher muito bonita que mais tarde emigrou para França. Não tínhamos tanto a noção do perigo mas também não andávamos completamente à solta. De vez em quando havia problemas. Morriam crianças. No Tejo?E não só. Havia muitos enterros de anjinhos. Coisa que hoje pouca gente sabe o que é. Morriam de várias razões. No parto e de doenças. A evolução da vacinação deu-se nos anos 60. Evoluímos muito. Outra coisa que também havia era a emigração. Lembro-me daqueles que se foram embora no final dos anos 60. Ou por causa da guerra ou por causa da pobreza. A Europa e a América foram oferecendo outras condições. Ou as pessoas esperavam ter outras condições. Muitas tiveram, outras não. E as mulheres?Éramos imensas. Muito poucas continuaram a estudar. Ainda no outro dia tentámos fazer essas contas. As raparigas a partir dos 10 anos iam trabalhar. Eu ainda andei na costura e bordados. Algumas iam para as fábricas. O que se achava natural era não estudar. Estudar era uma coisa que se opunha a trabalhar e era um privilégio para poucos. Em 1971 entrei para a escola e em 1976 fui estudar para Lisboa. O meu pai era contra o ensino privado. Para ir para o liceu e não ir para a escola industrial fui para Lisboa. De comboio?De comboio. E com passe operário. Não havia passe de estudante. Repare no que isto quer dizer. Para estudar não era preciso ter só dinheiro. Era preciso ter apoio familiar em termos de mentalidade. Eu comia em casa de uma tia do meu pai em Lisboa. Para muitas famílias era um desperdício estudar. Como se aproximou dos livros? Na minha casa havia livros mas desde cedo me tornei leitora da biblioteca municipal de Vila Franca de Xira que tinha uma característica: o empréstimo, o que a maior parte das terras não tinha. Eu levava livros na vez da minha mãe e das minhas tias que também eram sócias. Lembro-me que havia uma papelaria que alugava romances de amor. Havia um barbeiro que alugava livros de cowboys. Na biblioteca a gente não pagava. Apenas íamos levantar. Neste caso era um negócio. Havia uma sede de cultura em Vila Franca…Sim. Havia aqui um clima particular. É uma terra diferente. Havia uma cultura operária forte e a influência das Igrejas que foram muito progressistas. Foi o caso do padre Moniz. Chegou a dar aulas em Vila Franca de Xira.E participei em campanhas de alfabetização. Comecei a dar aulas nas escolas públicas em 1976. Em Ansião, onde fui colocada, não havia ensino especial mas havia crianças deficientes. Algumas eram guardadas em capoeiras porque as pessoas trabalham no campo e não tinham com quem as deixar. Era também uma forma de esconder essa realidade?Existia a pobreza, a ignorância e o medo. Toda a gente sabia que as crianças lá estavam. Qual era a alternativa? Se calhar não havia mais ninguém em casa. As coisas modificaram-se muito. Até determinada altura, por exemplo, os miúdos não bebiam leite. As professoras do primeiro ciclo foram umas heroínas. Outra coisa desse tempo é que não havia escolas. Quando comecei a dar aulas na escola industrial existiam espaços por toda a cidade. Essas soluções rápidas corresponderam também a uma intenção de querer alargar o acesso à escola. Depois do 25 de Abril as condições eram precárias mas isso era um passo em frente em relação ao que existia antes.Em Vila Franca os museus estão fechados aos feriadosA componente cultural de Vila Franca de Xira ficou resolvida com a criação do museu do Neo-Realismo?Não. A criação deste museu emerge de movimentos culturais e locais fortíssimos. O museu é a prova viva de que se as pessoas se empenharem conseguem determinado objectivo. Uma das coisas interessantes é o ânimo que deu este museu a outros movimentos. Isto contagia. Nenhuma coisa só por si resolve um problema. Noto que falta estratégia. Não quer dizer que não se façam coisas positivas. O concelho de Vila Franca tem vindo a ganhar características de dormitório. Há menos indústria e menos trabalho e isso condiciona as práticas culturais. Lembro-me de haver grupos da casa de pessoal das fábricas. Isso desapareceu porque a maior parte das pessoas já não trabalha cá. As pessoas têm outro escape. Veja o que existe de Vila Franca na internet, os blogs.São muitos…Há muita gente a criar. Há muita gente a pensar. Lá porque não vão às inaugurações não deixam de existir. O que os afasta das iniciativas?Quem quer ir a uma inauguração? Escolhem outras coisas. Vão a Lisboa ao cinema. Vão ao passeio ribeirinho. Não vão ao centro comercial. Ainda vão aos mercados. A rua antes era das crianças. Há ruas para as crianças? Onde é que elas estão? Finalmente a Quinta da Piedade na Póvoa de Santa Iria já tem a possibilidade de ser atravessada. Era uma espécie de um grande saco onde as pessoas andavam às voltas. A malta mais nova ou vai para Lisboa ou para a rua direita. Tem que haver vida nocturna. A lacuna em relação a locais de encontro não depende da câmara.Depende. O desenho urbano, o trânsito, o betão, a falta de verde. Uma certa desordem urbana. Fechar ruas ao trânsito é sempre polémico. O problema do acesso ao rio também não é fácil de resolver. Costumo observar a feira de antiguidades. As pessoas vão visitando mas toda aquela rua tem imensas casas vazias que não estão habitadas nem estão à venda. O comércio não tem muito dinamismo. A câmara pode promover parcerias e procurar que as pessoas vençam algumas resistências. Guimarães é um exemplo a seguir. Em Vila Franca quando há feriados os museus estão fechados. Quando as pessoas podem ir ao museu fecha-se o museu. Isso desincentiva a visita?É um desprezo do suposto utilizador. Para isso a contratação de pessoal tinha que ser diferente. Por exemplo, o arquivo pretende a salvaguarda do património. Para isso é indiferente se estão abertos a uma hora ou a outra. Há tempos consultei o arquivo da legislação régia que foi posto online. Vou lá à hora que me apetece. O funcionário pode até trabalhar três horas por dia…Maria e os livrosEncontro marcado para as 9h30 na cafetaria do Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira. Maria José Vitorino está lá antes da hora marcada. Um jornal, um café e um folhado. Pede desculpa mas o vício de passar os olhos pelas notícias é mais forte. “E esta história das cartas de condução caducadas que nos apanhou a todos desprevenidos?”, comenta. Empresta o jornal para descortinar quem foi a vítima da secção humorística. Sorri. É a caricatura de Paulo Portas.Maria José Vitorino, 56 anos, que já correu pela Câmara em Vila Franca de Xira com o Bloco de Esquerda, está na lista à Assembleia da República pelo mesmo partido. Talvez por isso o olhar esteja demasiado centrado na questão nacional. Mais do que as próximas eleições autárquicas ou o sucessor de Maria de Luz Rosinha preocupa-a a forma como o memorando com o FMI vai ser aplicado num agrupamento de autarquias. Nasceu em Vila Franca de Xira. É bibliotecária e professora. Trabalha actualmente com a rede de bibliotecas escolares no concelho de Lisboa mas continua a ser professora da escola Vasco Moniz. Recebeu em 2009 um prémio internacional pelo trabalho desenvolvido na área das bibliotecas. É divorciada. Tem uma filha e um neto e gosta de morar nas imediações do mercado. Estudou em Lisboa. Depois em Coimbra, onde morou 15 anos. Agora ninguém a faz arredar pé da cidade ribeirinha. Não faz tantas caminhadas como gostaria. Na mala tem o livro “Contos Carnívoros”, de Bernard Quiriny, para ler e suportar o atraso de quem faz esperar os outros. Admite porém publicamente no perfil do Facebook os seus condicionalismos: “Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro”.O exibicionista da biblioteca aos olhos de uma bibliotecáriaHá uns tempos relatámos o caso de um homem que se despia em plena biblioteca municipal.Exibicionistas sempre houve. Lidar com estas situações pode acontecer com quem trabalha em qualquer sítio público. A maneira de lidar com isto é mais complicada em alguns casos do que noutros. É coisa para se resolver com a mudança de um regulamento?Depende do peso que se dá ao regulamento. Não há regulamento no mundo que preveja todas as situações. Não há situação grave no mundo que esteja à espera que a gente consulte o regulamento. O regulamento tem que transformar em letra legível para todos um procedimento para prevenir as situações. A certa altura tem que haver capacidade de decisão de quem é o responsável. Creio que os meus colegas tiveram essa capacidade. Se fosse responsável da biblioteca teria barrado de imediato a entrada?Não é assim tão simples. Aqui há uns anos começaram a aparecer em Lisboa pessoas, sem abrigo, que vivem na biblioteca e ali fazem a barba. As bibliotecas são dos poucos espaços onde as pessoas não precisam de pagar para estar e cada um pode estar à sua vontade. É diferente de alguém que se exibe numa biblioteca...São comportamentos que têm que ser corrigidos. Não sei se chamaram a polícia... Varia a maneira como a pessoa actua perante a situação dependendo se é mais velha, mais nova, se é homem ou mulher. Chateia-a que os jovens escrevam abreviando as palavras?Não. Há uma frase muito engraçada do Millôr Fernandes que diz assim: “quando os eruditos descobriram a língua ela já estava pronta”. Chateia-me mais que haja um fraco domínio da língua. Um fraco domínio da bola. Está a ver-me a jogar futebol? Não sou capaz de marcar de cabeça. Não sou capaz de correr com a bola nos pés. Tenho pouca versatilidade. O que me entristece é a pobreza de só se usar a língua de uma certa maneira. E os erros ortográficos?São fáceis de corrigir. O pior são os erros de construção sintáctica. As pessoas usam muito o computador e isso corrige-se automaticamente. Impressiona-me a pobreza do vocabulário. Há só um amarelo? Se quero insultar o outro não sei insultar um bocadinho. Só sei insultar muito.
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