O padre que deixou o sacerdócio desiludido com a Igreja
Ludovico Rosa tem uma vida multifacetada, como sacerdote, professor, dirigente associativo, marido e pai
Os 15 anos como padre marcaram-no para o resto da vida, mas a desilusão com as incoerências da Igreja, entre o que prega e o que faz, levaram-no a mudar de vida. Casou, tem um filho e fez vida como professor. Reformado, continua a dedicar-se ao associativismo, actividade em que se iniciou no Entroncamento e que hoje lhe preenche boa parte dos dias em Tomar. Ludovico Rosa, o padre de barba e cabelos compridos da década de 70 que tinha fama de comunista, é, aos 67 anos, um arquivo ambulante de histórias para contar: do Mini que perdeu quando acompanhava os bombeiros num incêndio aos avanços das paroquianas que ele a custo conseguia conter para não ceder às tentações da carne.
João Calhaz / Elsa Ribeiro GonçalvesFoi padre durante 15 anos. Deixou o sacerdócio porquê?Uma coisa é aquilo que se lê nos evangelhos e outra coisa é aquilo que eu via e que era pregado. Afastei-me não para casar mas por uma questão de coerência. Essa falta de coerência da Igreja ainda se verifica hoje?Ai se ainda se verifica hoje… Já tenho ido a igrejas e deixo de lá ir porque se lá vou tenho de falar. E como não quero levar um ensaio de pancada prefiro não pôr lá os pés, para não ouvir afirmações que são feitas lá de cima do altar, em que se abusa da autoridade.Mantém-se católico?Sim. Não perdi a fé. E não me importava de ser padre na mesma. A sua discordância foi com a hierarquia católica?Foi e com toda uma prática. Sou capaz de perder a fé nalgumas coisas e mesmo que estivesse a exercer não teria fé em certas coisas. Ficou desiludido com alguns dos ministros da Igreja?Sim. Mas não com aqueles que se casaram, atenção!Foi mais difícil deixar de ser padre ou decidir ser padre?Decidir ser padre foi muito fácil. Tinha dez anos quando sou metido na forma, ando 12 anos metido na forma, o que é que se poderia esperar?Levou uma espécie de lavagem ao cérebro?No fim de contas levei. Por mais liberdade que se apregoe que se tem, custa-me a acreditar que se tenha liberdade quando a gente entra com 10 anos. Por exemplo em relação ao celibato: eu aceito-o desde que seja adulto, consciente e que a pessoa opte. Há muita gente que não é crente nem é católica e é celibatária.Faz sentido o celibato?Os apóstolos eram solteiros? Eram todos casados menos o São João. E o celibato passou a ser obrigatório a partir de certa altura por interesses inclusivamente económicos.A Igreja Católica está desajustada da realidade?Numas coisas está, noutras não. Não nos podemos esquecer que a Igreja Católica é feita de homens e entre os homens há de tudo. Aquilo que é hoje ainda é muito fruto dessa experiência como padre?Sim. A formação que nos deram e sobretudo depois a vivência, o contacto com as pessoas enriquece-nos. A experiência que tive nos Bombeiros do Entroncamento também foi riquíssima, eu entrava em tudo, ajudava nas festas a aviar copos e até ia aos fogos. Rebentei com um carro num fogo, o meu Mini foi para a sucata.Uma pergunta indiscreta: enquanto padre alguma vez foi assediado pelas paroquianas?Mas quem é que não é (risos)? Novinho. Assediado e de que maneira, novas e velhas. E nunca cedeu à tentação da carne?Não, mas não quer dizer que não tenha andado lá próximo. Isso nunca impediu que não andasse no carro com senhoras lá dentro. Fossem novas ou velhas, dava boleia a toda a gente. “Pedir pão é fazer política”A política nunca foi um apelo?Política partidária não. Mas pedir pão é fazer política e nessa linha entrei. As minhas homílias não eram sem sal. Aliás, ensinaram-me os padres operários que para se pregar tem que se ter a Bíblia ou o evangelho numa mão e o jornal na outra. Só com a Bíblia não. Eu tive sempre a preocupação de estar atento ao que se passava e nas homílias falava disso. Chamaram-me tudo. No Entroncamento, após uma missa à tarde, eu saio da igreja e uma senhora esperava por mim lá fora e disse-me que eu era um padre comunista e que o terreno para a igreja tinha sido dado pela família dela. Respondi-lhe que agradecia muito o terreno mas em relação ao resto para ter paciência, pois não estava ali para ser criado dela nem estava ali para a servir. Mas nessa mesma altura recebi um envelope com uma carta e uma nota de 20 escudos do S. António lá dentro onde se lia “Sr. padre muito obrigado por aquilo que disse. Uma pequena lembrança”. Não sei de quem era. Ainda hoje guardo a nota e a carta. O que acha do Entroncamento hoje?Não sei, já não conheço aquilo. Começo por não conhecer a maior parte das pessoas. Os amigos conheço, obviamente, como o presidente da câmara que sempre que me encontra faz uma festa e pergunta se o casamento dele ainda é válido. Porque fui eu que o casei (risos). Mas hoje já é muito raro encontrar alguém que conheça e também passo pouco tempo no Entroncamento. Passo mais tempo em Riachos, onde tenho casa. O exercício de cargos políticos nunca o seduziu?Isso não. Penso que é muito difícil como padre exercer um cargo político. E depois de ter deixado o sacerdócio?Depois não se proporcionou. Cheguei ainda a concorrer por uma lista da CDU aqui em Tomar. Convidaram-me e aceitei. Mas prefiro meter-me noutras coisas, como a associação de dadores de sangue de que faço parte ou a participação como figurante numa série de filmes e publicidade.Ter sido padre facilita-lhe a vida como actor?Isso talvez, mas nunca gostei de ser actor ao dizer a missa. Porque a missa é um acto em si a gente chama-lhe um sacramento, que é um símbolo de uma realidade. O que acontece é que a maior parte das missas não são símbolo de nada.A sua fé nunca esteve em risco?Não. A figura de Cristo do evangelho e o que tenho visto em tanta gente que tem dado a vida por ele motivam. Eu ia muito a Taizé. Conheci esse fenómeno há muitos anos pois tive uma fase mística, estive lá um mês, estive um mês na Cartuxa de Évora a fazer vida dos monges, estive nos trapistas em Espanha, nos beneditinos, na Suíça…Tem necessidade desse recolhimento ainda hoje?Ainda em parte. Preciso de reflectir, de ler. Sou um louco por leitura, por música. Tenho milhares de discos e CD e milhares de livros. Quando estava em Lisboa não perdia um concerto da Gulbenkian. O meu filho acompanhou-me a muitos concertos, de AC/DC, Rolling Stones, U2. Não perdia um festival de Vilar de Mouros, de Paredes de Coura, o Rock in Rio. Nada disso eu perdia até há dois ou três anos. Depois tive um enfarte e tive de parar um bocado. “Há gente que era melhor não ser professora”Reformou-se como professor. Que diferenças foi notando nos alunos com o passar dos anos?Diz-se que os alunos são muito incorrectos, mas em Tomar esse fenómeno nem se nota muito. Eu comecei a dar aulas em 1967 numa escola do Cacém. Fui para lá nomeado professor de Moral. Quando olhei para as cadernetas dos alunos era tudo rapazes com cara de mais velho que eu. Alguns muito bem vestidos. Vou para a primeira aula, informo sobre o livro que tinha sido adoptado e que talvez fosse melhor comprarem um caderno ou um dossiê. À minha frente está um rapazinho talvez mais velho do que eu, de fato e casaco, que se levanta, volta-se para trás e pergunta: “Ó turma alguém compra esta merda? Eu não compro nada disto!”. E sentou-se. Até hoje nunca apanhei um aluno assim. Isto em 1967.Ficou gravado na memória. Nunca esqueci este episódio, mas nunca expulsei um aluno da aula. Os problemas eram resolvidos dentro da aula ou no fim. A relação entre o professor e o aluno é hoje mais aberta.Penso que sim, mas muitas vezes os alunos têm razão. Vê-se gente que era melhor não ser professora, mas é o único buraco que têm para se meter em termos profissionais. Hoje já não será assim.Já não. Mas costumo dizer que o aluno rende se tiver um bom relacionamento com os professores.Ligação à Igreja marcou-o para toda a vidaDas múltiplas facetas do percurso de Ludovico Rosa a que mais o marcou e o ajudou a tornar-se naquilo que é hoje foi a de padre. Ele próprio o assume. Para o bem e para o mal ficou marcado para o resto da vida. O percurso foi iniciado aos 10 anos quando entrou no seminário de Santarém por influência do padre Gonçalves, do Entroncamento, a então vila onde vivia com os pais e três irmãos perto da casa paroquial. Esteve três anos em Santarém, depois mais três no seminário de Almada e ao fim desse período a paróquia do Santo Condestável, em Lisboa, ofereceu-se para pagar os estudos a um aluno carenciado que frequentasse aquela instituição almadense. Acabou por ser ele o contemplado. “Nunca me faltou nada até acabar o curso”, recorda. Entrou então para o seminário dos Olivais (Lisboa), que frequentou seis anos. Pelo meio, no final da década de 60, ainda deu aulas de Religião e Moral no Cacém. Uma espécie de estágio e de identificação com o mundo do trabalho que lhe permitiu conhecer alguns dos alunos mais problemáticos que apanhou ao longo da carreira docente.A primeira paróquia onde trabalhou foi a de Belém, em Lisboa. Estava na Suíça a trabalhar numa fábrica (trabalhava habitualmente nas férias no estrangeiro) quando soube da colocação. “Era uma paróquia difícil, com muita gente empenhada politicamente”, contra ou a favor do regime do Estado Novo, recorda. Se até aí a política era uma área que não lhe despertava interesse, o ano que esteve em Belém mudou a sua forma de olhar o mundo. Ganhou consciência política, muito graças ao padre Felicidade Alves, responsável pela paróquia, famoso pelas suas posições anti-regime que o levaram à prisão e a ser excomungado pela Igreja.Ludovico Rosa seguiu o seu caminho e passa depois dois anos como professor do seminário de Penafirme, regressando a Lisboa, à paróquia da Ajuda, onde reencontra o padre Gonçalves que conhecera no Entroncamento. Na Ajuda “as coisas não correram bem” com o seu antigo mentor e o jovem Ludovico acaba por retornar à casa de partida, o Entroncamento. “Não queria ir para o Entroncamento mas colocaram-me as coisas de tal forma que tive de ir. Costumo dizer que ninguém é profeta na sua terra, não me sentia confortável”. Aí empenhou-se na comunidade como dirigente associativo, foi professor de Religião e Moral e deu nas vistas também pela barba e cabelos compridos e pela sua simpatia com os ideais da revolução de Abril. O que não caiu bem no seio da comunidade religiosa. Recorda-se também dos avisos que levou da hierarquia católica quando foi visto na primeira fila do concerto que José Afonso deu em Árgea (Torres Novas) nesse período escaldante e que foi transmitido pela televisão.Foi muitas vezes conotado com o Partido Comunista, mas garante que nunca teve filiação partidária, embora mais tarde tenha integrado uma lista da CDU já em Tomar. “Se eu saio de uma estrutura em que uma pessoa está um bocado amarfanhada, que é a Igreja, ia-me meter numa pior que a Igreja? Nem pensar nisso!”.Entretanto decide tirar também o curso de História, pago pelo bolso dele, “porque não queria viver de um curso oferecido pelo dinheiro das esmolas”. No Entroncamento esteve até 1981. Ruma então a Tomar e deixa o sacerdócio para se casar, em 1983, com uma colega e amiga com quem deu aulas em Cabo Verde. Esteve 30 anos ligado à Igreja e foi padre 15 anos. A partir daí começou um novo capítulo da sua vida.Tomar não tem sabido aproveitar as suas potencialidades Tem um nome invulgar, Ludovico. É de família?O meu nome completo é Ludovico António Alves Rosa. Sou Ludovico porque o meu avô materno era Ludovico e foi meu padrinho de baptismo. A minha mãe era Ludovica. Nasci no Alentejo, no concelho de Arraiolos, mas fui criado no Entroncamento. Como é que veio parar a Tomar?Vim para Tomar porque fiz cá o estágio enquanto professor de História. Concorri em primeiro lugar para o Entroncamento mas a vaga foi ocupada por uma professora de Santarém. Estive aqui dois anos na Escola Gualdim Pais e depois fui dar aulas para o Entroncamento. Gostei da cidade de Tomar mas não gostei do ambiente. Disse que nunca mais cá punha os pés. Mas nunca se deve dizer nunca.E a que se deu essa reviravolta?No meu segundo ano de estágio, há uma colega que esteve durante quatro anos a trabalhar como cooperante na Guiné-Bissau e que voltou à escola, fazendo parte do Conselho Directivo. Na sala de professores apareceu um pedido de professores para ir trabalhar para Cabo Verde e Guiné. Pensei que era uma experiência que gostava de fazer. Essa minha colega disse que ia novamente. E o que é certo é que fomos para Cabo Verde (estivemos lá um ano na Cidade da Praia) e casámos em Cabo Verde. Mantive a minha casa nos Riachos, mas acabei por vir morar e trabalhar, já como efectivo, em Tomar. Quais são as suas origens?Venho de uma família humilde, com poucos recursos. Sou o mais velho de quatro irmãos. O meu pai era ferroviário, natural de Arraiolos como eu. Ficámos a viver no Entroncamento. Entrei no seminário com 10 anos e nunca tive férias até ter ido para Cabo Verde, com quarenta anos. Nas férias grandes, cheguei a trabalhar num hotel e numa cerâmica na Suíça. E trabalhava no duro. Gastava todo o dinheiro que ganhava em livros, música, concertos e viagens. Corri países como Grécia, Tunísia, Egipto… Mais tarde, cheguei a levar comigo 50 alunos, nessas viagens. Sempre se envolveu com muitas actividades de Tomar? Estou aqui há 28 anos e penso que tenho vivido muito discretamente. Envolvi-me com a organização do Festival de Cinema que, nos anos 80, se realizava no Cine-Teatro Paraíso e que era fabuloso. Lamento muito que tenha acabado porque vinham cá filmes de todo o mundo a concurso. Há três coisas que me têm ocupado muito tempo. Uma é a participação em filmes que são rodados no Convento de Cristo, em Tomar. Fiz um casting, fiquei inscrito na agência e passaram a chamar-me. E participo nos encontros que se fazem de “História ao Vivo” no Convento onde, normalmente, faço de João de Castilho. Também fiz parte do Coro da Canto Firme. Agora estou mais dedicado à Associação de Dadores Benévolos de Sangue do Hospital de Tomar que fez 21 anos. Também faço parte da recém-formada Liga dos Amigos da Sinagoga.Tomar não tem sabido aproveitar o seu potencial histórico?Já me faz dizer o que não queria mas tem aproveitado muito mal. Esta cidade se estivesse na Suíça, na Alemanha ou Espanha era outra. Não consigo entender. As fábricas foram-se, o comércio está quase todo fechado. Uma cidade que está localizada no centro do país e com um rio a atravessá-la podia ser mais bem aproveitada. Tem faltado cabeça aos políticos. A todos. Falta competência para dar a volta à situação.Quando é que deixou crescer a barba?Deixei crescer a barba quando fui para a paróquia de Belém, em 1969. Tinha também o cabelo comprido. Há uma história engraçada, a propósito da barba e do cabelo. O meu filho foi o primeiro jovem a usar “rastas” em Tomar. Certo dia fui abordado por um conhecido que me perguntou como é que eu dava autorização para ele andar assim. Puxei de uma fotografia minha de quando era jovem e o assunto ficou arrumado.Há alguma coisa que o faça cortar a barba? Nada (afaga a barba). Não fiz promessa nenhuma mas a barba faz muito jeito. No Inverno, aquece-me a cara. No Verão, é sombra. À noite, serve de almofada (risos).Um reformado a quem não falta o que fazerA ligação à vida associativa começou no União do Entroncamento, na primeira metade da década de 70. O popular clube disputava campeonatos de basquetebol, de andebol, de hóquei em patins e o então padre Ludovico Rosa acompanhava sempre que podia as equipas nas suas deslocações. Quando estava num projecto era de corpo inteiro. “Onde me metia tentava render o máximo”, diz. Ainda hoje é assim. Foi também presidente da direcção e da assembleia geral dos Bombeiros Voluntários do Entroncamento e o seu espírito de missão não se resumia às questões burocráticas. Faziam questão de acompanhar os operacionais aos fogos, tendo num deles perdido o seu automóvel, um Mini. Da constelação de interesses fez ainda parte a sua ligação ao movimento escutista, tendo sido assistente e secretário do agrupamento do Corpo Nacional de Escutas (CNE) do Entroncamento durante alguns anos e era presença habitual nos acampamentos. Integrou ainda o conselho de representantes do CNE a nível nacional.Durante a sua estadia como padre no Entroncamento decide adquirir casa própria e liga-se à cooperativa de habitação Sópovo, de Riachos (Torres Novas), onde foi também presidente da direcção. Ainda mantém a casa na carismática vila, chama-lhe a sua “casa de campo”, e não esconde a afeição pela terra e suas gentes.“Metia-me em muitas actividades”, reconhece. Já em Tomar, onde chega no início da década de 80, faz parte da equipa que cria o festival de cinema para a infância e juventude. Foi e é dirigente da associação Canto Firme e é um dos dirigentes de uma associação de dadores de sangue de Tomar, a quem dá muito do seu tempo “e com muito gosto”. “Estou reformado mas hoje estou mais ocupado do que quando dava aulas”, diz. A sua mais recente ligação ao associativismo é como dirigente da Liga dos Amigos da Sinagoga de Tomar.
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