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O escritor que se sentia meio pássaro e meio índio velho

O escritor que se sentia meio pássaro e meio índio velho

Textos de Alves Redol analisados no Museu do Neo-Realismo

O escritor neo-realista que imortalizou gaibéus e avieiros também falou de si nos textos que deixou. Aos 54 anos de vida Alves Redol confessou, em jeito de balanço, que se sentia meio pássaro e meio índio velho. Na sua infância conviveram duas borboletas. Uma vermelha e outra negra. A energia e a morte.

“No casulo da minha infância conviveram duas borboletas. Uma vermelha, iluminada, que condensa toda a maravilha do meu mundo infante. Uma borboleta vermelha, talvez tonta, ou que me entontece e me deixa no sangue, na pele, na boca, no ninho das mãos, nas folhas verdes que me nascem nas mãos, mil favos de mel silvestre, construídos na ternura que dei e recebi sem pedir contas aos mil travos de fel que se entornaram sobre mim nestes 54 anos de vida”. É o escritor neo-realista de Vila Franca de Xira, Alves Redol, que o confessa num dos poucos textos autobiográficos. “Os neo-realistas falam pouco de si. Falam do ‘outro’ social. Reinventam uma realidade através das histórias dos outros”, analisa Vítor Viçoso, especialista em literatura neo-realista, pouco depois da leitura de um excerto da obra pelo Grupo de Teatro do Grémio Dramático Povoense, na tarde de sábado, 5 de Novembro, no Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira. No texto com uma forte carga poética o escritor faz uma espécie de balanço aos 54 anos de vida sem saber que duraria apenas mais quatro, continua Vítor Viçoso. “A outra borboleta, negra, é a morte. Mais tarde ela ganhará o rosto de Joaquim Gaiteiro, o homem de quem fugirei aterrorizado acolhendo-me, trémulo, no regaço de minha mãe”. Joaquim Gaiteiro, monstro fúnebre da sua infância, é cangalheiro de profissão. “Vem vestido de negro, inseguro nos passos tolhidos pelo reumático, traz os panos ornados de fantasias e flores prateadas ou doiradas. Depois fujo dele e só o imagino ligado ao ruído da carreta que parte, puxada vagarosamente por dois homens vestidos de negro, vergados pelo peso da morte que levam consigo”. A morte rodeia-lhe a infância, dá-lhe a mão, deixa atrás de si um rasto de silêncio, de dor e de ausência. Se a borboleta vermelha é a vida e a energia a negra é a morte. Aos três anos Alves Redol perdeu dois irmãos e enfrentou a morte dos tios, sublinha Vítor Viçoso. No mesmo texto Alves Redol confessa que ao observar uma foto de perfil se sente meio pássaro e meio índio velho. “A metáfora do pássaro aparece em vários romances. É um símbolo da capacidade de nos libertarmos, do sonho da vida embora muitos de nós acabem por sufocá-lo por circunstâncias várias”, reflecte Vítor Viçoso.Mesmo nos romances o lirismo está presente na obra de Alves Redol. Seja na forma como descreve o parto feito no barco em “Avieiros” seja na maneira como aborda a monda do arroz em “Gaibéus”.A “Barca dos Sete Lemes” embalou o público que se arrebatou igualmente à leitura da divertida mas burlesca história do comerciante Serafim em “Olhos de Água. Eis que um exemplar comerciante morre no leito da varina mais louca e picante da vila. Pela voz dos actores do Grémio Dramático Povoense (António Nabais, Fernanda Canha, Diogo Martins, José Canha e Maria José Brazinha) duas dezenas de pessoas viajaram pela obra de Redol ouvindo excertos de obras como “O Muro Branco” e “Barranco de Cegos”, liturgia do poder totalitário ligado à terra: “Há um cavalo na alma de cada homem” (…) “A vida também é um picadeiro”. “Há almas que se amassam só com açúcar, que é o que damos ao cavalo”. O segredo, conclui o autor na obra de ficção, é uma mistura de “chicote e açúcar”.
O escritor que se sentia meio pássaro e meio índio velho

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