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“Emociono-me com a força interior e a grandeza de algumas crianças abandonadas”

Catarina Marcelino é directora da Fundação Madre Luiza Andaluz e é lá que vive entre meninas que lhe chamam “Titi”

Tem um percurso de vida ligado à solidariedade social e assim quer continuar mesmo depois de se reformar. Observadora atenta da realidade alerta para novas e preocupantes realidades como o facto de, por vezes, chegarem à instituição de Santarém pedidos de jovens que querem ali viver porque não se sentem bem no seio da sua própria família.

É directora da Fundação Madre Andaluz há uma década. Já tinha experiência nesta área?Sim. Antes de vir para a Fundação Madre Andaluz abri um centro de acolhimento em Loulé [Algarve], onde trabalhei durante algum tempo. Vir para esta casa era um grande desafio pessoal. Já conhecia a instituição uma vez que trabalhei no Centro Social Interparoquial que é aqui ao lado. Quando trabalhava no Centro Social visitava as meninas da Fundação Madre Andaluz e cheguei a ser ‘família amiga’ de uma menina, a Marta, que na altura tinha três anos e hoje já tem 21 anos e continuamos a pertencer à mesma família.O que é uma ‘família amiga’?Quando nos tornamos ‘família amiga’ de uma criança visitamo-la na instituição e acompanhamos o seu crescimento e evolução. A Marta ia para minha casa aos fins-de-semana e nas férias e acabou por acontecer uma coisa engraçada: Em vez de a tirar da instituição para viver comigo vim eu trabalhar para a fundação.Como é que se torna uma das ‘criadoras’ da Instituição Casa da Primeira Infância de Loulé?Tenho familiares que vivem em Loulé e o presidente da Casa da Primeira Infância é meu familiar e como ele conhecia o meu trabalho e sabia do meu gosto por esta área de intervenção convidou-me. Estava em Santarém mas não tive medo de arriscar. Estive lá dois anos e depois vim para a Fundação Madre Luiza Andaluz. A Casa da Primeira Infância de Loulé foi uma instituição que me ensinou muito e onde descobri a minha vocação.Como surgiu a oportunidade de trabalhar na Fundação Madre Andaluz?As irmãs, Servas de Nossa Senhora de Fátima, de quem sou muito próxima, convidaram-me para abraçar este projecto. Também conheci a história da Madre Luiza Andaluz e identifiquei-me com ela e fez todo o sentido aceitar o convite.O que é que a marcou mais ao longo dos dez anos que está à frente da Fundação Madre Andaluz?Marca-me muito a nossa sociedade que permite que estas meninas tenham que vir aqui parar. Aqui dentro o que me enternece mais é sentir que elas quando vêem para aqui ficam desamparadas, sem rede, e assistimos à força interior e grandeza que possuem. Isso é que me comove profundamente sobretudo quando são mais pequeninas.Porque é que decidiu viver na instituição?Acho que deve ser o meu karma [risos]. No Centro de Acolhimento de Loulé também era educadora residente. Quando vim trabalhar para a Fundação não vim trabalhar apenas com as meninas mais velhas que viviam aqui e, portanto, quase que era uma exigência que também estivesse presente ao fim-de-semana. E como, de certa forma, tento identificar a minha vida à semelhança da minha mentora espiritual [Madre Luiza Andaluz] e das irmãs optei por viver aqui. É a minha casa e sinto-me muito bem cá.Diz que as meninas e as irmãs da Fundação Madre Andaluz são a sua família, a par da família biológica. Porque é que nunca casou?Fiz uma opção de vida. Desde pequena que sempre quis ser muito livre e quando encontramos um modelo de vida com o qual nos identificamos, como aconteceu com a Fundação Madre Luiza Andaluz, fica tudo mais claro. Podemos sentir-nos felizes e realizadas sem casarmos nem termos filhos. Sinto-me realizada a dedicar a minha vida aos outros.Nunca pensou ser freira?Houve uma altura da minha vida, durante esta fase de entrega de vida aos outros, em que achei que podia ser freira, embora tivesse que ser na Congregação da Servas de Nossa Senhora de Fátima, porque é com elas que me identifico. Mas o facto de ter descoberto a minha corrente espiritual numa fase mais tardia fez com que não tivesse avançado com essa ideia. Se fosse mais cedo talvez, mas também sou realizada assim e sinto-me em paz com a vida.Os motivos pelos quais as crianças vêm para esta instituição são os mesmos das crianças que eram institucionalizadas há meio século?Aparentemente são, embora actualmente damos nomes diferentes. Há 50 anos as crianças vinham para a Fundação por carência, pobreza, orfandade, falta de apoios. Alguém que detectava que uma criança não estava bem, pedia e a criança entrava. Às vezes vinha uma filha e depois vinham mais duas ou três. Hoje as meninas chegam-nos por diversos motivos e começamos a ter também aquelas que nos chegam porque elas próprias acham que não estão bem na família e pedem para vir. O grande drama dos dias de hoje e pelo qual as crianças vêm aqui parar é porque a família não lhes dão regras.Como são as regras para quem vive na Fundação Madre Luiza Andaluz?Quando elas chegam digo-lhes sempre que viverão muito bem se quiserem e viverão muito mal se quiserem. Tudo depende delas. Temos algumas rotinas e essas rotinas transformam-se em regras.Que rotinas são essas?Durante a semana levantam-se às sete da manhã para irem para a escola, regressam para o almoço. Há sempre tarefas partilhadas. Todas limpam o quarto, a cozinha, tiramos as ervas do quintal. Tudo como uma família, todas fazemos tudo. Têm horas de estudo. As regras baseiam-se sobretudo em ter horas para tudo.Porquê?Porque sabemos que quanto mais elas souberem o que vem a seguir mais tranquilas vivem e menos sobressaltos têm. Também não saem sozinhas à noite.As mais velhas aceitam bem essa regra de não poderem saír à noite?Aceitam. Como elas se levantam muito cedo também se deitam muito cedo. Além disso, a maioria vai a casa aos fins-de-semana e isso torna tudo mais tranquilo. Elas aceitam tudo muito bem.É difícil cortar o ‘cordão umbilical’ quando elas vão embora?Não vou dizer que não crio algumas angústias quando elas seguem o seu caminho fora da instituição. Algumas criam-me dores de estômago sobretudo em determinadas situações em que não acredito muito no sucesso fora da Fundação. Há situações em que durmo mal mas elas sabem que estamos todas aqui para o caso de alguma coisa correr mal.Como é que a Fundação Madre Luiza Andaluz consegue sustentar-se?Essencialmente porque a comunidade é nossa amiga. Temos pessoas que com muita regularidade nos ajudam. Dão-nos laranjas, batatas, muita coisa. Recebemos uma verba da Segurança Social mas é insuficiente para colmatar todas as despesas. Na nossa vida diária contamos muito com a comunidade.O que significa para si a Madre Luiza Andaluz?É uma grande referência para mim. Já perspectivava a minha vida um bocadinho nesta linha, de um trabalho virado para os outros e com os outros. Não de cima para baixo mas de igual para igual. E acho que a Madre Luiza Andaluz, num tempo muito diferente do nosso, soube fazer o bem. Acho que Luiza Andaluz ainda é muito actual e identifico-me profundamente com a sua forma de estar na vida.Já tiveram um casamento aqui na instituição. Como foi?Uma das meninas que viveu aqui desde os cinco anos, quando decidiu casar fez esse pedido. A Fundação tinha sido a sua casa e por isso fazia todo o sentido. Eu acabei por ser a madrinha. Agora está de bebé e telefona-me quase todas as semanas. Pergunta-me sempre se estou preparada para ser avó. Eu respondo-lhe que estou sim que estou “à vontade” (risos).Que balanço faz destes dez anos a dirigir a Fundação Madre Andaluz?Tem valido a pena.Daqui a dez anos imagina-se a desempenhar o mesmo cargo?Espero que não. Espero ser só avó e não ‘titi’. Gostava muito de, daqui a dez anos, estar reformada e estar a fazer voluntariado aqui. Sou uma pessoa um bocado aventureira e dez anos é muito tempo. A minha disponibilidade de vida está um pouco entregue a esta congregação de que eu gosto e com a qual me identifico. Se me chamarem para outro projecto nesta área; se me mandarem para algum lado, com certeza que irei, com muito gosto. Sou uma mulher de desafios.Dedicação totalCatarina Marcelino nasceu em Moçambique há 50 anos e veio para Portugal com 12 anos. Os pais são de Vaqueiros, freguesia do concelho de Santarém, e foi aí que assentaram arreais quando regressaram de África. Estudou em Alcanena até ao antigo quinto ano tendo completado o liceu na Escola Secundária Sá da Bandeira, em Santarém. Educadora de infância, licenciou-se em Educação Especial tendo feito uma pós-graduação em Mediação Familiar. Trabalhou no Centro Social Interparoquial de Santarém e num Centro de Acolhimento em Loulé, no Algarve. É directora da Fundação Madre Luiza Andaluz, em Santarém, há uma década. A Fundação nasceu há 86 anos, pela mão da madre Luiza Andaluz, uma escalabitana que começou por acolher meninas na sua própria casa na altura da gripe pneumónica e que, com muito esforço e dedicação, fez nascer a instituição que hoje acolhe 20 crianças do sexo feminino, entre os 9 e os 17 anos, num edifício situado no centro histórico da cidade. A Personalidade do Ano na área da Cidadania identifica-se com os ideais de Luiza Andaluz e quer continuar a trabalhar na área social como voluntária, depois de se reformar.Catarina Marcelino não tem filhos. As meninas de quem cuida são a sua família mais próxima. Elas retribuem o afecto e os cuidados tratando-a por ‘Titi’. Para estar mais próximo delas vive numa dependência dentro do perímetro da instituição. A Casa da Cerca, assim se chama, é partilhada com três jovens de 15, 16 e 17 anos que já têm alguma autonomia e que estão a preparar-se para sair da Fundação. Apesar de ter um espírito positivo garante que nunca se habituará às injustiças do mundo.Diz que por vezes recebe compensações inesperadas. A da menina que cresceu na casa, que fez questão de ali realizar o seu casamento e que já a nomeou avó do filho que está para nascer ou a visita da jovem muito bonita que usava piercings e não se adaptou bem às regras da instituição mas que um dia fez questão de a visitar para lhe agradecer, olhos nos olhos, o que tinham feito por ela.

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