O alfaiate que talhou o seu caminho sem fazer inimigos
Manuel Pereira Dias é uma figura da história contemporânea de Abrantes, pela sua ligação ao movimento associativo e à actividade política
É uma figura incontornável de Abrantes. Foi alfaiate durante 70 anos e actualmente gere uma tabacaria no centro histórico da cidade, onde nasceu e vive há 81 anos. Militante do Partido Socialista, é membro da Assembleia Municipal de Abrantes há 36 anos, sendo apreciado por todas as bancadas partidárias. Manuel Pereira Dias formou-se na escola da vida mas possui uma enorme cultura geral denotada pelo discurso fluido e bem construído ao qual gosta de acrescentar uma substancial remessa de factos históricos.
O que é que ainda o faz correr na política? O espírito associativo que tive desde sempre. Na altura da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) arranjei um grupo de cinco amigos e juntávamo-nos para debater o tema. Até tínhamos uma sede de vão de escada. Éramos todos contra a Alemanha e a favor da Inglaterra. Isto era política pura. Porquê? Porque não suporto ditadura. Para mim há uma palavra absolutamente indispensável: liberdade. Não há democracia sem liberdade. Acredita que ainda pode ajudar a mudar o mundo?O mundo (pausa para acender um cigarro)… Nós fazemos parte do mundo. A mudança é sempre geracional. O problema da crise na Europa assenta em ter muita riqueza. A Europa foi sempre um grande continente desde os tempos da civilização grega. Nós aqui somos uns ricalhaços. Diga-me uma coisa. Mesmo em crise, vive-se pior do que há vinte anos? Não. Penso que isto vai mudar mas os europeus têm que aprender a viver com menos. Como vê a possível perda de importância do Tribunal Judicial de Abrantes e a extinção do Tribunal de Trabalho local?Acho mal, mas também sei que as coisas não estão decididas. Ainda se pode discutir esta extinção caso a caso. O Tribunal de Trabalho em Abrantes tem muita procura e por aqui correm processos que não correm, por exemplo, em Tomar, pelo que não deve fechar.É uma machadada na afirmação de Abrantes na região?De algum modo é, mas não só. Embora na questão do hospital sinta que não estamos a perder temos o problema da saúde, dos tribunais, das escolas…Acha que a cidade tem perdido protagonismo para outras cidades vizinhas?Em alguns aspectos talvez. Por exemplo, temos aqui o problema da Escola Superior de Tecnologia de Abrantes (ESTA) que é uma extensão do Instituto Politécnico de Tomar. Eu já disse à presidente da câmara que a escola não pode continuar onde está senão corre o risco de fechar. Se isso acontecesse era um desastre para a nossa região.Os autarcas locais têm sabido defender os interesses do concelho?Sim. A Maria do Céu Albuquerque (actual presidente da câmara eleita pelo Partido Socialista) é uma mulher que anda muito atenta e tem estado a desempenhar bem o cargo. Também teve um padrinho que era muito bom, o antigo presidente da câmara, Nelson de Carvalho, que a empurrou dentro do Partido Socialista para se candidatar e suceder no cargo quando pensou que não se devia recandidatar. Que balanço faz do mandato da actual presidente da câmara?É um balanço positivo. Ela tem jeito para aquilo. Não pára. Às vezes pergunto-lhe onde vai buscar tanta energia. Sabe falar com as pessoas e trata os assuntos da câmara com muita seriedade. Há uns tempos a questão da insegurança em Abrantes esteve na ordem do dia. Houve algum alarmismo ou justificava-se esse sentimento?Eu nasci no centro histórico, conheço isto muito bem. Não direi que há um problema de segurança grave. Muito longe disso. O problema de insegurança em Abrantes é igual ao de Tomar, Santarém e de outros concelhos. Recordo-me que, aqui há uns anos, todas as noites eram roubados em média dois, três carros. As pessoas andavam alarmadas. As autoridades tinham indicações de quem o fazia mas não actuava porque se tratava de um menor que roubava carros desde os doze anos. No dia em que fez 18 anos a polícia foi à procura dele e prendeu-o. Já foi julgado e apanhou onze anos de cadeia. Está na cadeia há menos de um ano e já não há notícias de carros roubados. Era este o problema de segurança que, felizmente, se alterou. Abrantes também é falada pela questão da RPP Solar. Acredita que a fábrica vai chegar a funcionar?Eu tenho esperança que aquilo arranque. O que acontece é que o empresário Alexandre Alves tinha o projecto elaborado, até quem lhe comprasse o produto no estrangeiro mas não tinha dinheiro. Para fazer a unidade precisava de muito dinheiro e foi à banca mas, como rebentou a crise, os bancos deixaram de lhe emprestar dinheiro. Aquilo parou e não nos podemos admirar muito. O Estado parou com muita coisa em Abrantes. Vê as novas instalações da ESTA a serem construídas em Abrantes? Ou o novo Centro de Saúde Familiar na antiga garagem rodoviária? O homem da fábrica também parou. O dinheiro é escasso…Por falar em polémicas, o que pensa do projecto do museu ibérico que prevê a construção de uma torre de 30 metros de altura no centro histórico de Abrantes? (Pausa)…A torre não chega a ter trinta metros porque só caves são três ou quatro. É uma questão interessante porque o arquitecto Carrilho da Graça, que elaborou este projecto e pensa nestas coisas, notou que Abrantes era uma terra de construções altas. Senão repare: o castelo, o hospital, a zona do hotel… Se isto é uma terra de obras altas porque não fazer uma coisa alta dentro do centro histórico? Depois temos o espólio valioso da Fundação Ernesto Lourenço Estrada e filhos. É uma riqueza para a região porque além de ser um museu é uma escola. Vai ser benéfico em termos culturais e económicos porque vai trazer muitos interessados até Abrantes.“A juventude de hoje não se mete muito nos partidos”O PS de Abrantes nas últimas eleições internas tinha pouco mais de 30 militantes em condições de votar. Há um desinteresse pela vida partidária?Esse não é um problema de Abrantes mas nacional. Trata-se de um fenómeno geracional. A juventude de hoje não se mete muito nos partidos. Por acaso, a JS de Abrantes agora está mais activa o que é bastante positivo mas os partidos, a nível nacional não têm progredido. Porquê?Há um certo afastamento das pessoas em relação à política. Senão vejamos: a vida política é aliciante? Em termos materiais digo que talvez não porque, se a pessoa tiver um bom emprego, fora da política ganha mais dinheiro. Eu não acho que um ministro ou um presidente de câmara ganhe muito. Se calhar há funcionários públicos que ganham igual ou mais. O próprio Presidente da República também não tem um grande ordenado. Depois, outra questão é que o nosso parlamento tem deputados que politicamente são maus o que contribui para o descrédito da classe política. Sente-se um ribatejano de alma e coração ou a proximidade ao Alentejo e à Beira atenua esse sentimento?Lá de cima, do Castelo de Abrantes, avistam-se bem as Beiras, o Ribatejo e o Alentejo. Nasci aqui e gosto de estar aqui. Os meus pais eram da Beira, da aldeia de Monsanto de que tenho muitas saudades. Acho que Abrantes é uma terra bonita. Tem aqui algo que adoro: o rio Tejo, que corta aqui o país ao meio. Gosto muito de ir ao Aquapolis, sentar-me na varanda da esplanada a beber alguma coisa e ficar, simplesmente, ali sentado a olhar para o rio. As corridas de toiros fazem parte dos seus gostos?Não sou aficionado. Vi uma vez uma corrida de toiros de morte em Badajoz. Em Portugal só vejo pela televisão e nem vejo sempre. Por aí não sou ribatejano (risos).Qual tem sido o seu lema de vida? A minha ideia desde sempre é que eu gosto do Homem, do meu semelhante seja de que parte do mundo for. Acho que o Homem foi uma boa descoberta. Sou antiguerras. Estou na política há muitos anos e não tenho inimigos na política, tenho adversários que é outra coisa. No fundo, gosto das pessoas. Adoro crianças. Passo momentos maravilhosos com o meu neto João, que vai fazer cinco anos no próximo mês, e está na idade de saber tudo. E quando a conversa não lhe convém começa a assobiar para o lado (risos).Um homem que gosta de “fazer coisas”Manuel Pereira Dias nasceu em Abrantes a 9 de Novembro de 1930. É casado há 56 anos, tem um filho e dois netos. Foi alfaiate de profissão até aos 70 anos, altura em que se tornou um pequeno empresário de tabacaria. Aos 18 anos já fazia parte da direcção do Sporting Clube de Abrantes onde era jogador de ténis de mesa. Assumiu responsabilidades directivas nos jogos juvenis de Abrantes, no Clube Amadores de Pesca de Abrantes e no Clube de Campismo de Abrantes. No campo da cultura teve responsabilidades no Cineclube de Abrantes e foi presidente da direcção do Orfeão de Abrantes. Foi ainda presidente da direcção da Associação Comercial de Abrantes, Constância, Sardoal e Mação. “O associativismo é uma escola brutal. Há indivíduos que fazem uma vida muito isolada. Têm a sua vida profissional, a sua família e ponto final. Há outros que se metem a fazer coisas. Eu meti-me a fazer os jogos da juventude porque gostava que os miúdos praticassem desporto”, refere. Paralelamente, desenvolveu uma intensa actividade política. Em 1949, com 19 anos, participa na campanha de Norton de Matos. Ficou então comprometido com a oposição ao regime do Estado Novo. Após o 25 de Abril inicia a militância no Partido Socialista e funda o partido em Abrantes. Em Julho de 1974 surge a integrar a Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Abrantes. É eleito deputado à Assembleia Constituinte em 1975. Em 1976 é eleito para a Assembleia Municipal de Abrantes onde, passados trinta e seis anos, continua a ser deputado municipal. No último 14 de Junho, Dia da Cidade, foi distinguido numa cerimónia no Parque de São Lourenço com a Medalha Municipal de Mérito Cívico e Político. A sua voz grave, muito peculiar, denuncia-lhe o vício dos cigarros - fuma há 60 anos - do qual se penaliza nunca ter conseguido largar. “O cinema é uma grande escola de vida”Manuel Pereira Dias estudou apenas até à 4.º classe, altura em que o mandaram aprender o ofício de alfaiate, “sina igual à de muitos”. Filho de um Guarda Nacional Republicano, era o segundo mais novo de cinco irmãos e nenhum foi estudar. Trabalhou 25 anos por conta de um patrão até se estabelecer por conta própria. Diz sem hesitar que tudo o que aprendeu foi nos livros, jornais e no cinema, a sua grande paixão. “Andei anos a fio a ver dois, três filmes por semana, via tudo o que aqui passava”, conta a O MIRANTE sentado numa poltrona da sala, com uma ventoinha a ajudar a combater o calor. “No cinema aprende-se que é uma coisa maluca”, atesta, contando que tem um gosto particular pelo cinema europeu, onde destaca o realizador sueco Ingmar Bergman. “A ver um filme aprende-se muito e quem se apercebeu disto foram os americanos. A América é hoje uma potência mundial porque Hollywood fabricou centenas de filmes. E a ideologia americana, de que eram os melhores e tudo o resto eram trocos, foi sendo espalhada pelo mundo inteiro através do cinema”, defende. O último filme que viu, há dois anos no EspalhaFitas, “Sangue do meu Sangue (João Canijo) marcou-o profundamente. “Aquilo incomodou-me profundamente. Quando saí da sala foi como se tivesse levado uma cacetada na cabeça pelo argumento do filme que é brutal”, confessou.
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