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Um entusiasta da matemática que até pagava para trabalhar

Um entusiasta da matemática que até pagava para trabalhar

António Ferreira dos Santos saiu de Almeirim para fazer a sua carreira académica no Instituto Superior Técnico, onde chegou a presidente da direcção

Aos 73 anos, o professor catedrático jubilado António Ferreira dos Santos continua a visitar diariamente o Instituto Superior Técnico, em Lisboa, para trabalhar em investigação científica na área da matemática. É aquilo que gosta de fazer e garante que se fosse necessário até pagava para trabalhar. Filho de uma família pobre de agricultores de Almeirim, soube aproveitar as bolsas de estudo que foi obtendo para singrar no meio académico e realizar-se profissionalmente. Apreciador das coisas boas da vida, diz não perceber a antipatia da maior parte dos estudantes pela matemática e admite que um mau professor pode ser fatal para o interesse pela disciplina.

Tem 73 anos e continua a trabalhar. A reforma não o seduz?Continuo a trabalhar naquilo que gosto, que é a investigação científica e costumo dizer que até pagava para trabalhar. Custa-lhe ver a matemática como uma disciplina mal-amada pela maioria dos estudantes?Sim, é uma coisa que não compreendo. Penso que há que fazer alguma pedagogia, que até já estará a ser feita, mas não sei em que medida se poderá ir mais longe. Não vejo que a matemática seja um bicho-de-sete-cabeças. A matemática exige um trabalho regular e se um aluno deixa de acompanhar a matéria durante algum tempo depois tem muita dificuldade em recuperar.Sendo a matemática uma linguagem universal por que razão é tão difícil de assimilar?Não sei se é assim tão difícil. A matemática é apontada como uma das disciplinas mais difíceis, a par da física e do português, mas pessoalmente nunca senti nenhuma dificuldade especial. Aqui há uns anos, era costume alguns políticos fazerem gáudio de terem tido dificuldades em matemática. Penso que isso é uma pedagogia negativa.Como um antigo primeiro-ministro (António Guterres) que não conseguiu fazer as contas do PIB…Mas esse até era bom a matemática. Não chegou a ser meu aluno, mas integrei o júri do último exame que ele fez aqui no Técnico. Foi o melhor aluno do curso dele e não teria de certeza dificuldades na matemática, mas realmente essa imagem ficou e ainda há poucos os dias voltei a vê-la na televisão.Um mau professor de matemática pode ser fatal para o interesse pela disciplina?Penso que sim. Aliás tive essa experiência. No sexto ano do liceu tive um professor de matemática muito bom e depois ele aposentou-se no final desse ano e no sétimo ano tive um novo professor, que era muito menos motivante. Exactamente porque era um professor que não puxava suficientemente pelos melhores alunos. Centrava o seu ensino muito nos problemas e descurava um bocadinho a teoria. Para mim foi desmotivante, mas admito que para alunos mais fracos não fosse.É atribuída a Napoleão Bonaparte a seguinte frase: “O progresso e o aperfeiçoamento das matemáticas estão intimamente ligados à prosperidade do Estado”. Concorda?Concordo porque hoje nota-se que para modernizar a nossa economia precisamos de quadros altamente qualificados. E quer seja na economia quer seja noutras áreas como engenharia ou informática nós necessitamos de técnicos que tenham uma boa formação matemática. A matemática está na base da preparação dos técnicos que hoje são fundamentais para o progresso de uma boa parte da nossa economia.Devia haver mais técnicos, mais pessoas ligadas a essa área das ciências, na política e na governação, onde predominam os juristas e profissionais das ciências sociais e humanas?Talvez, mas mesmo assim ainda há bastantes economistas e engenheiros na política.Pelos vistos o forte da nossa classe política não é fazer contas.Aí é diferente. Não é uma questão de saber fazer contas, é sobretudo uma questão de manter as contas equilibradas. Porque temos bons técnicos no Ministério das Finanças e no Banco de Portugal, disso não tenham dúvidas.Nunca pensou em envolver-se na política?Senti alguma atracção pelo meio político na área da educação logo a seguir ao 25 de Abril. Fiz parte de um grupo próximo da área socialista, entre os quais estava o professor Marçal Grilo que mais tarde foi director geral do Ensino Superior e depois ministro. Na altura publicámos uma série de artigos no jornal “A Luta” sobre a gestão das universidades, que estavam numa perturbação enorme em termos de gestão. Esses artigos tiveram alguma influência sobre o ministro da Educação Sottomayor Cardia que convidou o professor Marçal Grilo para director geral e eu estive dois anos no seu gabinete como assessor. Foi essa a minha passagem pela política, embora fosse mais um técnico do que um político.A banalização da máquina de calcular no ensino é prejudicial ao desenvolvimento do raciocínio e do cálculo mental?Penso que sim. No caso dos meus alunos, rapidamente se mentalizavam que aquilo que nós ensinamos não se aprende com máquina de calcular. Vão saindo notícias de que cada vez há mais alunos com dificuldades em pagar as propinas. Acha que pode haver um retrocesso e o ensino superior público tornar-se mais elitista?É um facto que há cada vez mais alunos com dificuldades de suportar os custos de um curso superior, mas por outro lado hoje há mais iniciativas de apoio a esses alunos, embora admita que não sejam suficientes. Hoje há muitas bolsas de apoio e não acredito que caminhemos para um ensino mais elitista. A acção social escolar tem hoje uma dimensão que não tinha por exemplo quando tirei o curso. Hoje o ensino superior está espalhado por todo o país e no distrito de Santarém há mesmo dois politécnicos, na capital de distrito e em Tomar. Acha que há dimensão e massa crítica nessa região para existirem duas instituições de ensino superior público?Não estou habilitado para responder a isso. Mas o ensino politécnico é fundamental no país. Precisamos de mais quadros com uma formação mais vocacional, com uma componente profissional prática diferente das universidades, que forma outro tipo de quadros. A disseminação de politécnicos talvez tenha ido longe de mais, não faço ideia, mas a verdade é que contribuíram para a elevação da qualidade da formação relativamente aquilo que havia antes do 25 de Abril.De menino pobre a professor jubilado Na então vila de Almeirim dos anos 40 um menino filho de pequenos agricultores pobres destacava-se na escola primária. A terra profundamente rural é hoje uma cidade e o menino que foi o melhor aluno da quarta classe é hoje um professor jubilado, investigador, na área da matemática, conhecido a nível internacional. António Francisco Ferreira dos Santos, 73 anos, não esquece as raízes e as memórias dos tempos de um ensino elitista em que os pobres tinham poucas possibilidades de chegarem ao liceu e praticamente só quem tinha posses conseguia entrar no ensino superior.Foi o professor da quarta classe que lhe mudou o mais que provável destino que o esperava, talvez a trabalhar na agricultura ou a aprender um ofício. Na altura era preciso os alunos fazerem um exame de admissão ao liceu. A preparação para esse exame era feita através de explicações que eram pagas e que os pais não podiam pagar. O professor da quarta classe que também era director da escola, António da Costa Cruz, ofereceu-se para o ajudar dando-lhe explicações gratuitamente. Conseguiu entrar no liceu de Santarém e ganhou uma bolsa de estudo.Ia para o liceu de bicicleta e não fazia grande vida em Santarém, não ia aos cafés como outros colegas. Confessa que não era grande estudante mas tinha alguma facilidade na aprendizagem das disciplinas relacionadas com a ciência. “Não sentia nenhuma necessidade em estudar muito para além do que a maioria dos meus colegas fazia”, recorda. Nunca teve uma nota negativa no seu percurso escolar. Nos primeiros dois anos do liceu não tinha livros e apenas se podia socorrer dos apontamentos que tomava nas aulas. No último ano conquistou um prémio nacional para os melhores alunos, com uma média de 19 valores.Conseguiu fazer o curso superior em engenharia electrotécnica com uma bolsa de estudo da Gulbenkian. Na altura nem conhecia a fundação e foi o presidente da câmara da altura que lhe falou em candidatar-se a uma bolsa da instituição. A mulher com quem casou, natural de Coruche, conheceu-a no liceu em Santarém no sétimo ano, o primeiro em que houve turmas mistas. Foram nesse ano os que tiveram as melhores notas em físico-química e estudaram juntos no Instituto Superior Técnico.Para fazer o doutoramento conseguiu mais uma vez uma bolsa de estudo da Gulbenkian e foi para Londres (Inglaterra), onde durante quatro anos, diz, esteve numa “janela aberta para o mundo” muito diferente de um país dominado pela ditadura. Recorda-se de ver os noticiários da BBC em Londres e perceber que afinal o mundo era diferente daquele que se queria fazer crer ao povo em Portugal. Fez uma investigação para melhorar a recepção de ondas curtas e o Banco de Inglaterra chegou a estar interessado no projecto, mas acabou por abandoná-lo porque entretanto já se falava nos sistemas de satélite. Acabou por se dedicar à matemática e deixou as engenharias electrotécnicas.No 25 de Abril era professor no Técnico e um dos contestatários ao modo como funcionava o instituto e as universidades nacionais que na altura eram dirigidas por pessoas nomeadas pelo Governo. Defendia que existisse um conselho escolar em que estivessem representados os professores, os funcionários e os alunos. Por causa disso esteve numa lista de professores a despedir mas foi salvo pela revolução. Fez o seu percurso de professor catedrático e investigador no Técnico onde hoje é professor jubilado trabalhando num gabinete perto de um dos três filhos que também é professor no instituto na área da matemática.Há muitos anos que não vai a Almeirim, porque, confessa, praticamente já não tem família na terra. Existem ainda alguns primos e gostava um dia destes de voltar à terra onde nasceu para se encontrar com estes e para recordar a sua infância.Um grande currículoAntónio Francisco Ferreira dos Santos nasceu em 23 de Junho de 1939. Licenciou-se em engenharia electrotécnica em 1963. Foi assistente no Instituto Superior Técnico e em 1971 foi contratado como professor auxiliar das disciplinas de matemática aplicada à electrotecnia. Passou a professor catedrático em 1989 e foi jubilado em 2009. Em 1996 dinamizou a criação do centro de matemática aplicada e em 2006 criou o centro de análise funcional e aplicações.Até agora publicou 34 artigos em revistas internacionais. Orientou o doutoramento de vários alunos, um deles que obteve o prémio José Anastácio da Cunha atribuído à melhor dissertação de doutoramento em matemática nas universidades portuguesas entre 1993 e 1996. Chegou a ser presidente do conselho directivo do Instituto Superior Técnico (IST) em 1978 e no ano seguinte. Também presidiu ao conselho pedagógico no ano seguinte. E foi presidente do departamento de matemática por duas vezes. De 2001 a 2004 exerceu o cargo de presidente adjunto do IST para os assuntos científicos. Em 1995 foi designado membro do conselho de avaliação das universidades públicas onde esteve durante nove anos.
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