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Histórias e memórias de um “mercenário industrial”

Histórias e memórias de um “mercenário industrial”

Conversa com Albertino Pisca Eugénio, fundador da primeira fábrica de cerveja de Santarém e figura carismática da cidade nas últimas décadas

Voz incómoda e pouco dada à arte do politicamente correcto, Albertino Pisca Eugénio marcou uma era em Santarém, desde que ali se estabeleceu na década de 70 para instalar a primeira fábrica de cerveja da cidade. Desiludido com alguma classe política, diz que Santarém “está pior do que nunca” e que falta veia empresarial e um plano de desenvolvimento para a cidade.

É com algum desalento que Albertino Pisca Eugénio, 78 anos, vê, do remanso da casa de repouso onde vive, a evolução de Santarém. O engenheiro químico que ajudou a fundar em 1975 a primeira fábrica de cerveja da cidade, hoje propriedade da Unicer, diz que “o problema está nas pessoas”, que “não têm iniciativa empresarial”, e na classe política que não soube criar um plano de desenvolvimento integrado para a cidade e para a região.Em 1973, quando se radicou no Ribatejo, “Santarém era uma cidade com condições natas para se desenvolver, faltava era capacidade de realização das pessoas”. E entretanto, diz, o panorama piorou. “Isto está pior do que nunca. É o nacional porreirismo, como dizia o Salgueiro Maia. Está tudo encantado da vida”. “Santarém é uma capital de distrito com todas as condições para se desenvolver, mas há um problema de pessoas, com todo o respeito. Vê algum investimento capaz em Santarém a não ser lojas e outras coisas quejandas?”, questiona, ressalvando que há algumas excepções, “como o José Manuel Roque ou o Joaquim Louro, que são bons empresários”.Quando lhe perguntamos se Santarém hoje não está mais desenvolvida, responde com veemência apontando o dedo ao ex-presidente da câmara Moita Flores: “Desenvolvida em quê? É uma cidade sem qualquer plano de desenvolvimento adequado. Destruiu-se uma grande avenida que era magnífica; puseram-se pórticos como já se usavam na União Soviética, a dizer Santarém capital da liberdade; criou-se uma mistificação que se ia fazer um grande museu da liberdade e depois o gajo deu ao slide em três penadas”.Recorda uma conversa com Moita Flores, ainda antes de este ser eleito presidente da câmara, onde lhe transmitiu a necessidade de fazer um cemitério, um crematório e uma casa mortuária na cidade. “As barreiras junto ao cemitério estão em deslizamento continuado e algum dia vai tudo lá parar abaixo. E o que é que ele fez?”.Pisca Eugénio diz que acredita muito no sucessor de Moita Flores, Ricardo Gonçalves. “É muito simpático, sempre me dei bem com ele e foi preciso ter coragem naquela altura para se sentar ao meu lado na assembleia municipal. Eu era uma espécie de alma danada no meio daquilo tudo”, diz, recordando os tempos em que foi eleito do PSD na assembleia, em parte do mandato 2002-2005.“Sou um gajo muito complicado”Albertino Pisca Eugénio reconhece que tem um feitio difícil, que é “um gajo muito complicado e com grande potencial de ataque” e tem a noção de que há muita gente que não gosta dele. “Até fico satisfeito que alguns digam mal de mim”, diz com ironia sentando na sua poltrona, aludindo aos tempos em que toda a gente se calava quando entrava no Café Central. “Tinham medo de mim, medo ou respeito, como queiram chamar”. Eanista convicto é também um admirador do capitão de Abril Salgueiro Maia, como se pode constatar pelas várias fotografias que tem no apartamento onde vive. Teve duas passagens pela política autárquica como eleito da Assembleia Municipal de Santarém, primeiro nas listas do PS e depois nas listas do PSD, “sempre como independente e com uma perspectiva de dever cívico”. Quando se chateou abandonou as funções, não levando nenhum dos mandatos até ao fim. “Não me queiram pôr a canga dos partidos que eu nisso não alinho. Nunca aceitaria a disciplina de voto, sou uma alma danada”.Conhecido como uma voz incómoda, na sua última passagem pela assembleia municipal, na primeira metade da década passada, criticou diversas vezes o negócio que levou à construção da fábrica de cervejas Cintra na quinta da Mafarra. Diz que o projecto de criação de uma zona de actividades económicas para essa área foi um “filme miserável”, criticando a actuação do município, então liderado pelo socialista José Miguel Noras, que vendeu os terrenos a um escudo (hoje meio cêntimo) o metro quadrado e construiu infraestruturas para o empreendimento de Sousa Cintra. Figura carismática da cidade durante as últimas quatro décadas, foi condecorado comendador da Ordem do Mérito Industrial pelo Presidente da República Jorge Sampaio, distinguido como Scalabitano Ilustre pela Câmara de Santarém em 1983 e vai ter o nome numa rua da zona industrial, junto à fábrica que ajudou a criar e que a Unicer quer fechar. A zona industrial de Santarém começou a definir-se a partir da criação da fábrica da Copeja. “Quando viram que alguém lançou a semente à terra foi sempre a andar”. Diz que Ladislau Botas foi o melhor presidente da Câmara de Santarém que conheceu, mas elogia a visão de João Noronha de Azevedo (presidente entre 1969 e 1975), que conseguiu cativar os investidores a optarem por Santarém para localizar a sua fábrica de cerveja. “É uma figura completamente esquecida, a maior parte das pessoas não sabe quem foi”. Do novo presidente da autarquia, Ricardo Gonçalves, diz-se amigo e aguarda com expectativa o seu desempenho.“Não acredito que fechem a fábrica de Santarém”“Não falo de ouvir dizer, mas sim por experiência própria”, adverte quando desfia a história da instalação da fábrica da Copeja em Santarém. O recurso a nomes, datas e números revelam uma “memória de elefante” ainda em boa forma, que não desmerece a atenção que dedica à actualidade, sobretudo quando toca à “sua” fábrica de cerveja, que tem encerramento marcado para o próximo ano, embora o seu fundador não acredite nesse desfecho. “Não acredito, pelos conhecimentos que tenho, que seja desprezado um património daqueles. Acho que a fábrica não vai fechar. Só um país de loucos o faria. O que é preciso é diversificar o investimento noutras áreas”, diz acerca da fábrica de Santarém e da decisão anunciada pela Unicer de concentrar a produção para a sua unidade de Leça do Balio.Um engenheiro químico dedicado à cervejaNascido no bairro de Alcântara, em Lisboa, Albertino Pisca Eugénio formou-se em Engenharia Química e, na sua carreira, passou por diversos pontos do globo como profissional ligado à indústria da cerveja. Define-se como um “mercenário industrial”. Holanda (onde tirou um curso cervejeiro), França, Espanha, Angola, Zaire (hoje República Democrática do Congo) foram países onde trabalhou e apurou as suas competências antes de se dedicar de alma e coração à fábrica de cerveja que a Copeja decidiu instalar em Santarém em meados dos anos 70 do século XX. “Percorri os caminhos todos até me tornar um gestor e não um sugestor”, diz, brincando com as palavras, como gosta de fazer.A localização inicial para a fábrica prevista pelos investidores, que tinham o grupo holandês Heineken por trás, era a zona de Setúbal, mas o Governo impediu a sua construção a menos de 70 quilómetros de Lisboa. É quando entra em cena o então presidente da Câmara de Santarém, João Noronha de Azevedo, que garante os terrenos nos arredores da cidade e apresenta como trunfo a quantidade de água na zona, devidamente comprovada por um levantamento exaustivo do sistema aquífero mandado realizar por um autarca seu antecessor, Luís Demony. “Noronha de Azevedo foi um homem chave em todo o processo e sem nos dar presentes envenenados”, realça Pisca Eugénio. O terreno na freguesia da Várzea, adquirido pela câmara a um proprietário rural, foi vendido aos investidores cervejeiros a 18 escudos o metro quadrado. Dezoito vezes mais do que o valor pedido, quase três décadas mais tarde, pela mesma autarquia ao empresário Sousa Cintra pelos terrenos da Quinta da Mafarra onde foi construída a fábrica de cervejas Cintra.A Copeja acabou por ser nacionalizada em 1975, poucos meses depois da inauguração, era primeiro-ministro Vasco Gonçalves. Pisca Eugénio manteve-se como administrador e prosseguiu o seu rumo, não deixando de pagar aos fornecedores. Em 1978 foi constituída uma empresa pública do sector cervejeiro, a Unicer, firma que dura até hoje. O engenheiro químico foi “engatado” para o conselho de gerência do grupo mas manteve-se como director da fábrica de Santarém. Produtividade máxima era o seu lema. “Não se passava nada na fábrica que eu não soubesse”. Considera-se um homem disciplinado e disciplinador, que alguns viam como autoritário ou quase militarista. Mesmo nos anos quentes pós-revolução nunca deixou que a política entrasse no local de trabalho.A empresa onde inicialmente se produzia a cerveja Clok foi sempre uma porta aberta para apoiar o movimento associativo da região, sendo marcante, por exemplo, o patrocínio à equipa profissional de ciclismo Águias/Clok na segunda metade da década de 70.Pisca Eugénio aposentou-se em 1994, com quarenta anos de serviço. Antes, em 1986, fez o que considera ter sido o negócio da sua vida: a compra da Rical para a Unicer.“Estourei como um gasómetro”Em 1989, Albertino Pisca Eugénio teve um grave problema cardíaco devido ao excesso de trabalho. “Estive praticamente clinicamente morto, com as funções vitais sem funcionar. Estourei como um gasómetro”. Já refeito do susto, os médicos recomendaram-lhe que a partir daí andasse muito a pé e ele assim o fez. “Percorri 60 mil quilómetros a andar a pé. Ganhei o coração mas dei cabo dos joelhos de tanto andar”, diz este antigo praticante de remo e de râguebi no Belenenses, hoje a contas com reumatismo degenerativo grave, que lhe afecta a locomoção. Viúvo, sem filhos, vive sozinho no seu apartamento da casa de repouso da Póvoa de Santarém, onde o visitamos. Vai recebendo a visita frequente de uma ex-colaboradora dos tempos da Unicer a quem chama a sua secretária no exílio. Almoça fora frequentemente, para conviver com os amigos e pôr a conversa em dia. E quando Pisca Eugénio começa a falar nunca se sabe onde é que a conversa vai parar tantas são as histórias e as memórias.
Histórias e memórias de um “mercenário industrial”

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