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“Casei quatro vezes com a mesma mulher”

“Casei quatro vezes com a mesma mulher”

Carlos Marçal, 69 anos, presidente da Junta de Freguesia de Marvila, Santarém

Carlos Marçal, presidente da Junta de Freguesia de Marvila, é beirão mas já adoptou Santarém, a cidade onde nasceram os seus dois filhos, como a sua terra. Regressa à Várzea dos Cavaleiros, Sertã, aos fins de semana para apanhar azeitona ou vindimar. Não se vê num banco de jardim e por isso continua a trabalhar intensamente como autarca, depois de ter feito carreira como responsável da contabilidade da ARS. Diz com um sorriso que casou quatro vezes. Mas sempre com a mesma mulher.

Cresci numa família de 10 irmãos e éramos felizes com aquilo que tínhamos. Os meu pais eram agricultores. Todos trabalhavam para a casa. Ninguém tinha vencimentos. Quem precisava de dinheiro pedia ao pai e o pai dava. As coisas geriam-se bem. Vivíamos sem aquela necessidade de bens materiais. Fazíamos os nossos brinquedos. As rodas de carros eram feitas com toros de pinhos. Sou beirão. Pertenço à freguesia de Várzea dos Cavaleiros, concelho de Sertã, que faz fronteira com o concelho de Proença a Nova, e que não vai ser extinta (risos). Estive lá até aos 12 anos. Depois fui estudar para Castelo Branco. Regressava a casa nas férias do Natal, Páscoa e Verão. A separação foi complicada porque a ligação à família era muito forte. Foi uma luta convencer a família de que iria para a política. Se não ganhasse as eleições continuaria a trabalhar. Se ganhasse pediria a reforma. Foi o que aconteceu. Depois de ter trabalhado 26 anos como responsável da contabilidade na Administração Regional de Saúde. Desde de 1985 que estou ligado à política. Primeiro na Anafre e depois na assembleia de freguesia e junta. Não me vejo num banco de jardim. Não suporto a ideia de estar parado. Fui para Moçambique para fugir à guerra de Angola e Guiné mas acabei por ser apanhado. Quando temos o destino marcado não vale a pena fintá-lo. Assentei praça a 29 de Agosto de 1964 e a 25 de Setembro de 1964, um mês depois, rebentou a guerra em Moçambique. Estive junto ao lago Niassa, o maior de África, onde pescávamos com granadas. Foi uma experiência forte mas acho que já resolvi tudo interiormente. Cumpri uma missão que nos diziam que era a nossa. A verdade é que não gosto muito de falar do tema. Estive em Moçambique 16 anos. Primeiro a trabalhar nos correios e depois na linha de caminho de ferro. Só regressei em 1977.Sinto-me de Santarém porque nasceram cá as duas coisas mais preciosas da minha vida: os meus dois filhos. Um é farmacêutico, o outro médico. Sempre fui um pai muito próximo. Fiz questão de estar presente. Sem autoritarismos. Também dizia que não quando era preciso e eles aceitavam. Fazia questão de que os meus filhos almoçassem comigo. A minha mulher, que era professora, tinha horários mais complicados e eu ia comprar o almoço para nós. Enquanto estavam a comer comigo sabia onde estavam. É nestes momentos que se cria a grande amizade entre a família. Aos fins de semana dedico-me à agricultura lá na terra. Apanho azeitona, levo-a ao lagar, vindimo e faço vinho. Os produtos são para consumo da casa e ainda ofereço aos amigos. Tenho a ajuda dos filhos, da esposa e da nora. É uma terapia. Gosto de fazer comida, só não gosto de lavar loiça e fazer a cama (risos). Aprendi com a minha mãe. Em Moçambique às vezes ia à praça e as vizinhas da minha irmã perguntavam: “o teu irmão não tem vergonha”?Deixei de ver jogos do Sporting porque sofro muito e o coração não aguenta. Desde que tive o enfarte, em 2004, que não oiço, não vejo nem pergunto pelo resultado. Só depois é que sei se perdeu. Nem foi preciso o médico aconselhar. Simplesmente não consigo. Quando os meus filhos vêem que o clube está a ganhar com uma margem confortável é que mandam uma mensagem a dizer que posso ver o jogo. Fumava há 40 anos mas deixei os cigarros depois do enfarte. Estive agarrado às máquinas mas com a certeza de que ainda não era daquela que me ia embora. Pensava assim: “Isto não é comigo”.Ser presidente da junta é ajudar as pessoas mais do que arranjar estradas. Essas competências não estão previstas na lei. São coisas que nos aparecem e mexem connosco. Acho que é assim com todos os autarcas. Ainda há dias ajudei um casal de imigrantes que trabalha no campo a conseguir arranjar um infantário para o filho e médico de família. Também já fui emigrante em África. Vivo os problemas dos outros. Custa-me ficar parado. Quando ganhei as eleições em 2005 descobri que uma idosa vivia sem condições. A senhora tinha 78 anos e morava no centro de Marvila sem casa de banho nem cozinha. Lembro-me que no dia seguinte voltei lá com um construtor. Falámos com vizinhos para alargar um pouco o espaço e fazer uma casa de banho com esquentador. A senhora só chorava... Nunca pensei que no centro da freguesia existisse uma coisa daquelas. Casei quatro vezes mas com a mesma mulher. Primeiro em Moçambique na conservatória. Depois no consulado e mais tarde na igreja. Quando cheguei a Portugal fui tratar dos bilhetes de identidade. Eu dizia que era casado, eles diziam que era solteiro. Trancaram o estado civil, o que originava situações caricatas. Não era casado, nem solteiro nem viúvo. Quando me perguntavam o estado civil eu dizia “escolha: casado, solteiro ou divorciado”. O consulado não passou a informação e depois tive que voltar a casar na minha conservatória na Sertã.Ana Santiago
“Casei quatro vezes com a mesma mulher”

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