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As fontes de Ortiga ficam sempre mais floridas quando chega Maio

As fontes de Ortiga ficam sempre mais floridas quando chega Maio

Tradição perde-se no tempo e foi agarrada pela comunidade que se mobiliza na véspera do 1º de Maio para enfeitar fontanários.

Chegamos a Ortiga, pequena aldeia do concelho de Mação, passam poucos minutos das nove da manhã do primeiro dia de Maio, a pretexto de visitarmos as fontes que, na noite anterior, foram enfeitadas com flores pelos habitantes. Apesar de ser cedo, já se encontram muitos populares na rua. A recepção é amistosa e experimentamos aquela deliciosa sensação de nos sentirmos em casa minutos depois de chegarmos ao centro da aldeia, onde se realça o jardim do largo com 146 vasos de flores retirados de 40 casas da aldeia, como atesta um cartaz manuscrito que ali foi afixado não se sabe por quem. A tradição de enfeitar as fontes em Ortiga perde-se no tempo. Há várias explicações que sustentam o facto de antigamente, sempre na véspera do 1.º de Maio, os rapazes da aldeia irem roubar os vasos à casa das raparigas solteiras enlouquecendo as mães das legítimas donas, que não tinham outro remédio senão voltar a carregá-los para casa à cabeça. “Era uma forma dos rapazes observarem, divertidos e em grupo, as raparigas que, no dia seguinte, não tinham outro remédio senão ir buscá-los. Esse rapazes também costumavam deixar na porta um raminho de flor com uma quadra”, conta Cristina Consolado, que gere o café “O Pescador” junto à Fonte do Centro. Mas não eram só as mais esbeltas e puras moças que eram as contempladas. Em tempos idos, um habitante de Ortiga foi passar uma noite à esquadra por ter utilizado uma linguagem atrevida. Cristina Consolado sabe o verso de cor: “Neste cabeço há três ramos iguais e as p... cada vez são mais”.Na véspera, tal como os vizinhos, esteve a enfeitar a Fonte do Centro até às duas da madrugada e às seis e meia já estava a abrir o estabelecimento. Joaquim Santos foi o fotógrafo de serviço nessa noite, com o intuito de mostrar às gerações futuras quem trabalhava no duro para manter a tradição. Devido à despovoação de Ortiga, a tradição esfriou e acabou por ter que ser agarrada por toda a povoação que se mobiliza, desde há dois anos, de forma espontânea para enfeitar a fonte mais próxima de suas casas. A Liga de Melhoramentos de Ortiga ajudou, espalhando apelos. E a medida resultou porque as pessoas aderiram de forma muito desinteressada, conta Cláudia Cordeiro, 32 anos, presidente da associação. “É uma iniciativa que enobrece as terras e move as pessoas de forma única em torno do mesmo objectivo simples, enfeitar uma fonte”, atesta. Actualmente contam-se pelos dedos de uma mão os jovens que ainda habitam em Ortiga. Mas os poucos que restam fazem questão de respeitar a tradição e foram “roubar os vasos” às senhoras. No ano passado, um vaso com uma roseira desapareceu no meio da confusão, o que causou grande pesar à sua proprietária, uma vez que tinha sido uma prenda da filha. Por isso, este ano os rapazes numeram os vasos e deixaram colado um papel, em forma de coração, na porta da casa de onde o vaso foi levado com o número correspondente. Só da casa de uma habitante, junto à Fonte do Porto, foram levados 13 vasos. “Deixaram-me um papel em cima da caixa do correio com o número 38 e assim já sei que o vaso número 38 me pertence. Nos outros anos havia sempre confusão porque havia sempre vasos que desapareciam e outros que ficavam porque ninguém os levava”, refere Cristina Libânio que também ajudou a adornar a Fonte do Centro. Antes de ser enfeitada, a fonte - mandada construir por João de Oliveira Casquilho, que tem o busto a poucos metros - foi lavada com lixívia pelas duas vizinhas. Coroa de flores para João de Oliveira Casquilho O busto de João de Oliveira Casquilho - que promoveu a independência de Ortiga, que teve início em 1890, e foi concretizada a 21 de Março de 1928, dia em que se tornou freguesia - apesar de não ter nenhuma fonte também não foi esquecido pela população. Durante muitos anos, esta tarefa era desempenhada “religiosamente” por Manuel José, ortiguense falecido há três anos e que se preocupava em fazer uma coroa de flores para colocar junto ao busto. Este ano, um primo escreveu-lhe uns versos em sua homenagem que foram colocados num quadro delineado com flores, como se fosse o próprio a ter vindo ali neste dia colocar a coroa de flores ao benemérito de Ortiga.“A Ortiga são as pessoas” A Fonte do Centro também é chamada de “fonte-mãe” uma vez que era a única da aldeia até aos anos 60, ocasião em que foram construídas as restantes. Foi aí que a tradição deu um salto. Todos os fontanários, que ainda jorram água embora poucos a aproveitem, começaram a ser enfeitados. João de Matos Filipe, filho da terra e um apaixonado pelas suas tradições, acompanha-nos na visita guiada que fizemos pelas seis fontes da aldeia: a Fonte do Centro, do Monte Novo, a Fonte Velha, Fonte do Porto, o fontenariozinho ao fundo da rua e a Fonte da Estação. Fomos ainda descobrir a original fonte velha, de “chafurdo”, localizada numa espécie de gruta e que está registada pelo IGESPAR. “Há cinquenta ou sessenta anos ou setenta isto regurgitava de senhoras que vinham ao pão e aproveitavam para vir buscar a água à fonte do centro só para verem como é que isto estava”, refere João de Matos Filipe. Os moradores nas imediações da Fonte do Monte Novo, por exemplo, estiveram a trabalhar na decoração entre as 21h00 e as duas da madrugada, a partir de um desenho que realça o brasão da freguesia de Ortiga.“Não andamos a competir com ninguém. O que fazemos é com gosto”, refere Zulmira Pires, 62 anos, que vai a casa buscar uma fotografia que tirou junto à fonte quando tinha 18 anos. No final da jornada de trabalho, comeram uns bolinhos acompanhados por um licor. Na Fonte Velha, foram colocados dois bonecos de trapos de armação em canas e forrados a esponja, costurados por Conceição Parente, 67 anos, e há versos populares afixados por todo o lado. Já a Fonte da Estação “está bonita como tudo” devido ao trabalho das irmãs Celeste Rito, 75 anos, e Maria Hermínia, 86 anos, que a estiveram a enfeitar até às onze da noite e até perderam a novela por causa da tradição. João de Matos Filipe dá uma explicação mais sustentada para a origem desta tradição que reside no louvor à natureza. “Desde 1920 até aos anos 60, a única fonte que existia era a Fonte do Centro na qual abríamos um buraco onde espetávamos um enorme pinheiro que era transportado por 40 ou 50 moços”, recorda. Só depois, é que os rapazes iam de casa em casa pegar os vasos, uma tradição que toda a população aceitava com os pais dos rapazes a pagarem os estragos que alguns faziam sem queixume. “Penso que estamos na presença de um hino à Primavera, um culto que se assemelha ao que era feito nas Florálias Romanas, numa perspectiva mais espiritual” atesta, acrescentando que, mesmo antes de ser feriado no calendário, o primeiro de Maio em Ortiga sempre teve um significado especial. Para João Matos Filipe, o essencial desta tradição reside no facto de unir toda a comunidade. “A Ortiga são as pessoas. Se há coisa que me dá prazer é que eu tenho uma aldeia”, atesta com uma pontinha de orgulho.
As fontes de Ortiga ficam sempre mais floridas quando chega Maio

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