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Uma escalabitana adoptiva que se apaixonou pela cidade

Uma escalabitana adoptiva que se apaixonou pela cidade

Maria Emília Daniel Leitão vive em Santarém há quase trinta anos, foi silvicultora de profissão, dirigente associativa e militante cultural

Depois de viver três décadas em Moçambique, Maria Emília Daniel Leitão regressou a Portugal obrigada, devido à revolução do 25 de Abril e à independência do país. Em 1985 assentou arraiais em Santarém e nunca mais deixou a cidade. Licenciada em Silvicultura é uma mulher das artes que gosta de pintar e escrever. Há uns anos lançou um livro de poesia e publicou agora um livro de contos. “Como Folhas ao Vento” é uma obra quase toda autobiográfica que retrata algumas das suas memórias. O MIRANTE aproveitou o lançamento do seu livro para falar com uma mulher que adora viajar e não abdica da liberdade que conquistou.

Maria Emília Daniel Leitão vive em Santarém há quase trinta anos e já adoptou a cidade como sua. A antiga chefe de divisão da Conservação da Direcção Regional de Serviços Florestais tem o hábito de participar na comunidade em que está inserida e lamenta que a cidade onde assentou arraiais em 1985 não esteja tão desenvolvida como seria de esperar. O rio Tejo e os campos da lezíria ribatejana que se avistam das Portas do Sol constituem a paisagem de eleição de Santarém para Maria Emília Daniel Leitão. Sempre que familiares e amigos vêm à cidade leva-os àquele que considera o melhor cartão-de-visita.É com tristeza que constata que, ao contrário de outras cidades ribeirinhas, Santarém não está voltada para o rio. “Quando construíram a praia no Tejo adorei a ideia e achei que ia fazer com que as pessoas se virassem para o rio. Infelizmente, o projecto durou apenas um mês. Foi inglório o dinheiro que ali se gastou num projecto que não teve continuidade. Nunca houve interesse para tirar as ideias do papel”, critica.Milocas, como é conhecida entre familiares e amigos, lamenta que os escalabitanos sejam amantes do copo e pouco dados às actividades culturais e recreativas, não generalizando como é evidente. “Sempre que há uma iniciativa cultural são sempre as mesmas pessoas que lá estão. As pessoas não aderem aos espectáculos mais culturais, preferem as festas populares, o que é uma pena”, afirma.Dói-lhe a alma sempre que passa pelas ruínas do Teatro Rosa Damasceno e pelos prédios abandonados que serviram de casa aos oficiais da antiga Escola Prática de Cavalaria de Santarém. “Aqueles prédios podiam ser aproveitados para habitação social. É um mau espelho da nossa governação. Devia haver movimentos cívicos a denunciarem esta incapacidade de governar o bem público”, afirma. Defende que os problemas da comunidade têm que ser resolvidos pela própria comunidade.Esse sentido de participação cívica e de ser útil levou-a a aceitar integrar a lista do actual presidente da Câmara Municipal de Santarém, Ricardo Gonçalves (PSD), às próximas eleições autárquicas de 29 de Setembro. “Gosto muito do Ricardo [Gonçalves] e acho que ele tem boa vontade para resolver os problemas e gosta de fazer. Não se limita a dizer que faz, faz mesmo”, justifica.Além de escrever também pinta. Há uns anos fez uma exposição de lenços e está a pensar fazer outra em breve. Se tivesse que pintar o retrato de uma personalidade importante de Santarém escolhia o Professor Joaquim Veríssimo Serrão. Maria Emília confessa que há outras personalidades importantes na cidade mas recusou-se a revelar nomes porque nunca aceitaria pintar os seus retratos.Foi vice-presidente durante seis anos no Lar de Santo António e esteve o mesmo tempo na mesa administrativa da Santa Casa da Misericórdia. “O trabalho social da Misericórdia de Santarém é um grande exemplo de apoio aos mais desfavorecidos. Ali é que nós percebemos o trabalho social e humanitário que é feito para proteger os doentes e os mais carenciados. O meu coração divide-se entre estas duas instituições. O Lar de Santo António é uma instituição que dá muito trabalho. Chegaram a ligar-me a meio da noite para resolver situações dramáticas que ninguém imagina”, confessa.As diferenças culturais entre Moçambique e PortugalEmília Daniel Leitão sofreu o primeiro choque cultural entre Moçambique e Portugal quando veio estudar para a Universidade de Coimbra. Em África o colégio e universidade onde estudou eram mistos e era normal rapazes e raparigas misturarem-se. “Se queríamos levar um amigo para as férias não havia qualquer problema”, conta.Quando viajou para Portugal a mãe de um amigo seu, que jogava futebol na Académica de Coimbra e tinha crescido com Milocas, pediu-lhe para levar uma encomenda para o filho. Em Portugal descobriu que na escola, além de terem que usar bata de manga comprida e meias altas para esconder as pernas, rapazes e raparigas não se podiam juntar.Assim que chegou ligou para o amigo e combinaram encontrar-se junto ao estádio, que era perto da universidade. Abraçaram-se efusivamente porque já não se viam há muito tempo. “Foi um escândalo e fui chamada à reitoria e tudo porque não podíamos estar a 200 metros dos rapazes. Em África era tudo muito mais natural”, recorda bem-disposta.Dois anos a ajudar a independência de MoçambiqueEmília Leitão viveu dois anos em Moçambique depois da revolução do 25 de Abril. Perguntamos-lhe como foi viver em África no meio do mato com as pessoas mais próximas agora com o estatuto dado pela independência. Emília Leitão explicou que não foi difícil no início. “O ministro da Agricultura era meu conhecido. Isso ajudou. Fiquei no meu trabalho a dar formação. Com o passar do tempo queriam que eu começasse a participar nas reuniões que serviam para gritar palavras de ordem e passar a mensagem de obediência à revolução. No princípio ainda assistia. Depois deixei de comparecer. Comecei a ser questionada. Queriam saber se eu estava ou não estava do lado do povo. Comecei a defender-me dizendo que era estrangeira e só estava lá para fazer o meu trabalho. A certa altura percebi que o mundo tinha mudado e que eu também tinha que mudar. O meu pai ainda lá ficou mais sete anos a trabalhar. Para ele foi muito mais duro o regresso. Ele era uma pessoa a quem ninguém podia apontar uma ‘sacanice’. Mas a pressão psicológica sobre ele foi muito forte e acabou também por desistir. A nossa propriedade foi entregue a um movimento de libertação”, recorda.Levantar de madrugada para ir caçar com o paiQuem visita a casa de Maria Emília Daniel Leitão pela primeira vez não sai sem trazer uma prenda retirada dos móveis da sua sala. Os jornalistas de O MIRANTE não foram excepção. A maioria dos quadros que está pendurado na parede da sala foi pintada pela própria nos tempos da aprendizagem em Inhambane, Moçambique. Assim como o enorme tapete de Arraiolos que embeleza o chão daquela divisão. Na aparelhagem toca, em fundo, música clássica.Maria Emília Daniel Leitão nasceu em Arcozelo (distrito da Guarda), em Julho de 1946. Emigrou para Inhambane quando tinha um ano de idade. Regressou a Portugal 30 anos depois, dois anos após o 25 de Abril. Os tempos vividos em África foram os mais importantes da sua vida. Viviam numa machamba (fazenda) que o pai comprou no meio do mato.Estudou num colégio de freiras até ao antigo 5º ano. Tanto Emília como os irmãos estavam internos no colégio devido à longa distância que separava a escola de sua casa. Com pouca coisa para fazer no meio do mato, Milocas dedicava-se à leitura, à pintura e à escrita.‘Devorou’ livros na biblioteca do patrão do seu pai. Mais tarde, já com o pai [José Daniel] a trabalhar por conta própria, era habitual levantar-se às três da manhã para ir com ele à caça. Emília adorava. “Houve uma altura em que o meu pai tinha 60 funcionários a trabalhar para ele e tinha que lhes dar de comer. Havia necessidade de, às vezes, ir caçar um búfalo, por exemplo”, recorda.A ligação ao seu pai era muito próxima. Emília era a filha mais nova e aquela que gostava de o acompanhar. Durante a entrevista nota-se a admiração e amor incondicional pelo pai. Homem do campo que, apesar de ter apenas a 4ª classe, percebeu que, por estar longe da civilização tinha de dar mundo aos filhos. Todos os meses recebiam várias revistas de diferentes áreas para todos estarem a par das novidades. Também era o pai que levava e acompanhava os quatro filhos às festas que se realizavam aos fins-de-semana. Tinha ainda o dom de ajudar como “enfermeiro” quando aparecia alguém com problemas de saúde.Milocas dá vários exemplos de como o tempo corria devagar em Moçambique. Saíam de casa às 8h00 num carro conduzido por uma junta de bois para estarem na missa ao meio-dia. “Os bois paravam de vez em quando para beber água e descansarem”, conta. A mãe era a costureira de serviço. Teve que aprender tudo sozinha. Para aprender a fazer calções para o marido desmanchou uns, que tinha comprado já feitos, para perceber como se fazia, lembra.Chegou a corresponder-se por carta com 17 pessoas de várias nacionalidades. Fazia-o através de revistas juvenis onde os mais novos davam a sua morada com o intuito de se corresponderem. Entre eles havia soldados que estavam na guerra. Quando veio para Portugal chegou a conhecer uma dessas jovens, espanhola, com quem se correspondia. Ainda hoje são amigas e sempre que vai a Barcelona faz-lhe uma visita.“Se voltasse atrás talvez fizesse coisas que não fiz”Licenciou-se em Silvicultura, tendo estudado na Universidade de Lourenço Marques e dois anos na Universidade de Coimbra. Casou em Moçambique, com um colega universitário, também ele português. Os dois filhos mais velhos nasceram em África. Quando chegou ao nosso país, em 1976, foi para Angra do Heroísmo, nos Açores, onde deu aulas durante três anos. Regressou a Lisboa onde trabalhou no Fundo de Fomento Florestal durante dois anos. Seguiu-se França onde viveu quatro anos e fez um estágio no Instituto Nacional de Investigação Agronómica. A filha mais nova nasceu em França.Foi aí que surgiu o convite para vir trabalhar para a Fonte Boa, em Santarém, em 1985, onde ficou dez anos. Não gostou dos últimos anos na Fonte Boa porque, diz, tinha pouco trabalho. Decidiu mudar para a Direcção Regional de Serviços Florestais, onde foi chefe da Divisão de Conservação. “Foi a época em que me senti mais realizada profissionalmente e trabalhava muito”, confessa. Nesta altura reunia com direcções de bombeiros e tinha que dar formação e coordenação numa sala cheia onde era a única mulher.Reformou-se há 12 anos. Dois anos depois separou-se do marido com quem esteve casada durante mais de 35 anos. Milocas diz que não abdica da liberdade que conquistou depois da separação. Garante que não se sente sozinha e quer viver a vida sem ter que dar satisfações a ninguém.Se pudesse voltar atrás talvez fizesse alguma coisa que não fez. “Só a partir dos 40 anos é que comecei a pensar em mim. A felicidade somos nós que a construímos e eu sou feliz”, confessa. Avó de quatro netos assume-se como noctívaga. Quando começa a criar perde a noção do tempo. Só se apercebe que está a amanhecer quando vê o sol entrar pelas janelas de casa.Histórias de vidaA literatura é a prova de que a vida não chega. A frase, célebre, de Fernando Pessoa serve às mil maravilhas para falar de Maria Emília Leitão uma escalabitana de há três dezenas de anos que foi viver para Moçambique com um ano e regressou a Portugal 30 primaveras depois.Das lembranças que conta ouvimos aquilo que estamos habituados só a ver e ouvir em romances e filmes. Antes desta conversa com Emília Leitão lemos o seu livro de fio a pavio. Quando a ouvimos contar que era a preferida do seu pai para ir à caça dos búfalos; que uma deslocação da sua casa à cidade era feita de carroça e demorava um dia para lá e para cá, não foi difícil associar muitas coisas do que disse às personagens do seu livro de contos “Como Folhas ao Vento”.Mas nem só de cajueiros, culinária africana, caminhos do mato, matapa, missangas e floresta vivem os contos de Maria Emília Leitão. Os mais conseguidos retratam relações familiares e episódios de grandes viagens que a autora fez e de situações que, a terem acontecido, só poderiam dar boa literatura.“Como Folhas ao Vento” é um livro que devia circular nas livrarias portuguesas. É bem escrito, surpreende o leitor e prende o seu interesse do princípio ao fim de cada conto. Sabendo-se que uma parte destas histórias são autobiográficas aumenta ainda mais o interesse pelo talento da autora e pela história das personagens.
Uma escalabitana adoptiva que se apaixonou pela cidade

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