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“Um povo não cresce sem cultura”

“Um povo não cresce sem cultura”

Beatriz Martinho tem sido nas duas últimas décadas o principal rosto do Conservatório de Música de Santarém, uma instituição com 39 anos que ganhou novo fôlego após mudar para novas e mais adequadas instalações. Essa foi uma das muitas lutas travadas pela presidente da cooperativa, que já foi também aluna da casa e actualmente integra o seu coro. “Não me imagino a viver sem música”, diz esta escalabitana de adopção, mulher de cultura, antiga professora e sindicalista, que assume a paixão intensa por aquilo que faz.

Está há muitos anos à frente do Conservatório de Música de Santarém. Muita da sua energia está aqui investida. Este é o projecto de uma vida?É a minha segunda família. Tem sido o projecto das últimas décadas da minha vida. Sempre fui educada num ambiente de cultura e de música. Os meus pais tocavam piano, habituei-me a ir à ópera com quatro ou cinco anos, com os meus avós. Sempre me fizeram sentir que a música faz parte integrante da formação do ser humano. Consegue imaginar-se a viver sem a rotina diária ligada à instituição?Não. Estou aqui porque me candidatei e fui eleita, mas tenho tanto amor por aquilo que se tem conseguido fazer por este Conservatório - que penso ser uma das obras mais importantes que existem em Santarém - que não consigo pensar em desligar-me. Sinto que ainda tenho muito para dar e que o meu dinamismo ainda é necessário. Tenho uma paixão enorme por aquilo que faço.As coisas nem sempre correram bem ao longo dos anos. Nunca lhe apeteceu desligar?Não, pelo contrário. As contrariedades que aconteceram, nomeadamente por subsídios que não vinham atempadamente, davam-me mais força para lutar. Só depois de esgotar todas as possibilidades é que fecharia o Conservatório.É uma pessoa de antes quebrar do que torcer?Não sou teimosa no mau sentido. Mas quando sinto que tenho razão não desisto.Tanto lutou por novas instalações para o Conservatório que a Câmara de Santarém fez-lhe a vontade. É difícil haver projectos culturais de qualidade sem apoios públicos?É praticamente impossível sem apoios, sejam públicos ou privados. No nosso caso, foi realmente a Câmara de Santarém que deu uma importante ajuda. Quem diria, há três anos, que iríamos ter um espaço destes?A educação musical tem sido devidamente valorizada no ensino público?Sinto que não. Um povo não cresce sem cultura. E retirarem-lhe a cultura é um crime. Devemos oferecê-la, sempre que possível, à comunidade. No nosso caso, embora sejamos uma cooperativa, temos facilitado o ensino a alguns alunos que têm um grande desejo de aprender música. Cultura não é só música, mas para mim a música é a arte suprema, a linguagem universal.Enquanto dirigente do Conservatório de Música de Santarém como vê o panorama cultural do concelho?Não acho que esteja mau. Já se viveram momentos piores. Há uma preocupação com a qualidade e também com a quantidade. Aliás, por vezes no mesmo dia há várias actividades que se sobrepõem. Deveria haver alguma coordenação a esse nível. O que noto é uma certa escassez de espaços para espectáculos, embora já tenhamos feito concertos na rua, ou em espaços como o convento de São Francisco ou o museu de São João do Alporão, um espaço lindíssimo que é uma pena estar fechado. E vamos actuar daqui a dias com o coro e a orquestra na Feira Nacional de Agricultura. Mas, voltando atrás, o que queria dizer é que devia haver outro teatro em Santarém. Porque quando fazemos concertos no Teatro Sá da Bandeira com orquestra e coro, só os pais dos alunos ocupam a sala na totalidade.É aficionada da festa brava ou esse tipo de valores ribatejanos não lhe dizem muito?Vivo cá há muitos anos e esses valores dizem-me alguma coisa. Não vou muito a corridas de touros, mas também não sou contra as touradas. Gosto de ver de vez em quando. E se eu vivo numa zona onde isso faz parte da cultural local, penso que não seria muito apropriado ser contra. O meu pai, que era médico veterinário, é que não gostava muito desse espectáculo.“Quim Barreiros e outros artistas também têm direito ao seu espaço”Como é que viu aquela proliferação de festas e romarias no tempo de Moita Flores como presidente da Câmara de Santarém? Soube a pouco? Foi um exagero?A pouco não soube, obviamente. Mas deu para agitar a comunidade e começar a habituá-la a ter muita oferta e a saber aproveitá-la. O Quim Barreiros e outros artistas também têm direito ao seu espaço. Apesar de estar envolvida no meu dia a dia sobretudo por música erudita, não sou contra os outros músicos e estilos de música. Cada qual tem o seu espaço e o direito de enveredar pelo que deseja ou lhe agrada mais. Até porque aceito que há muita gente que gosta desse tipo de música. Mas nós também estamos cá para levar a nossa música e temos muitas pessoas que a apreciam. Lidou de perto, enquanto dirigente associativa, com o ex-presidente da câmara Moita Flores. Com que imagem ficou da pessoa e do autarca?Só me quero referir ao dr. Moita Flores enquanto entidade que se relacionou com o Conservatório. A construção destas novas instalações consumou-se no seu tempo, embora o processo já viesse muito detrás. A nossa autorização de funcionamento era provisória e corria-se o risco de o Conservatório fechar por falta de condições. Ele disse-me que não deixaria esta cidade sem o novo Conservatório estar feito. Eu disse-lhe que acreditava nele e felizmente o novo Conservatório foi uma realidade em 6 de Outubro de 2011.Foi dos dias mais felizes da sua vida?Em termos profissionais sim. Foi o culminar de um grande sonho que tinha para Santarém, para a região e até para o país.Moita Flores deixou-lhe saudades?Saudades não diria. Mas o novo Conservatório é uma boa memória que tenho do dr. Moita Flores.Estamos à porta de mais uma Feira Nacional da Agricultura/Feira do Ribatejo. É uma visitante assídua?Sim. Aliás, este ano até lá vou cantar com o coro do Conservatório. Vivi muito a feira cá em cima, na cidade, quando era aluna do liceu. Era um espaço intimista que faz parte da memória cultural da cidade. Mas a dimensão que a feira tomou exigia um novo espaço. Há mais expositores e os próprios espectáculos musicais levam muita gente. Temos de compreender isso. O antigo campo da feira devia ser requalificado ou reestruturado e dar-lhe uma certa dignidade na sua nova utilização. Como seria a sua vida sem música?É difícil imaginar a minha vida sem música. Seria uma vida muito feliz a nível familiar, como é. Tenho um grande suporte no marido, filhos e netos que tenho, que nunca me exigiram nada. Mas a seguir ao meu núcleo familiar vem a música e o Conservatório.Qual é a música da sua vida?Não tenho propriamente uma música da minha vida. Mas gosto muito da Ave Maria, de Schubert, pela carga mística.É uma consumidora heterogénea de música ou prefere determinados estilos?Ouço geralmente o que mais gosto. Mas também ouço o que os meus netos me chamam para ouvir. Gosto também de música francesa, como a da Juliette Greco, dos The Beatles e de muitos outros.Que música dedicaria ao presidente da Câmara de Santarém, Ricardo Gonçalves?Talvez a Ave Maria de Schubert, sobretudo para os momentos mais stressantes.Uma mulher dos sete instrumentosMaria Beatriz Bueri Alves Antero dos Santos Martinho formou-se como educadora de infância com o Curso Superior Especializado em Educação Especial. Nasceu em Lisboa no dia 24 de Julho. Foi professora de Educação Especial em Santarém, cidade onde viveu grande parte da sua infância e juventude e onde reside há 43 anos, após ter vivido alguns anos na zona de Lisboa, onde se formou e casou com um antigo colega do liceu de Santarém.“Bem casada”, mãe de três filhos e avó de nove netos, é presidente da direcção do Conservatório de Música de Santarém há mais de 15 anos, mas não se fica por aí na ligação à instituição que ajudou a fundar e onde nunca ganhou um tostão. Foi aluna do Conservatório de Música de Santarém, tendo frequentado cursos de Canto, Guitarra Portuguesa e Piano, que deixou há cerca de um ano por dificuldades em conciliar tantas actividades. “Tenho um lamiré de várias coisas, mas sei pouco. Sabem mais os meus netos do que eu”. Foi corista do Coro do Circulo Cultural Scalabitano durante 23 anos, até ao ano passado, e actualmente canta no Coro de Câmara do Conservatório. “Era uma sobrecarga de dias ocupados e tenho cada vez mais coisas para fazer aqui”, justifica.Para além da ligação à música e ao meio associativo, Beatriz Martinho foi também membro do Conselho Municipal de Cultura, integrou a Direcção Central do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa, tendo sido responsável pela criação da delegação de Santarém em 1974, e foi conselheira nacional da FENPROF.“Tenho tido, graças a Deus, uma vida muito preenchida e sou uma pessoa muito activa que gosta de fazer sempre mais e mais. Não gosto de me acomodar a nada. Gosto muito de fazer e de saber. Tenho de estar preocupada com muita coisa ao mesmo tempo, mas isso é tão bom”, diz esta católica praticante, amante das artes.Chegou a ser autarca na Assembleia Municipal de Santarém na década de 1980, eleita pelo PS, partido de que era militante e de que entretanto se desfiliou. Antes do 25 de Abril era militante do MDP/CDE. “As minhas ideias não mudaram um milímetro”, diz esta antiga sindicalista que sempre respeitou toda a gente, independentemente dos seus quadrantes políticos e partidários. “Tudo o que assenta numa pirâmide de afectos brota com muito mais facilidade”, sentencia esta mulher de bem com a vida e com os seus semelhantes, exemplo de dinamismo e de entrega a uma causa.Quase 40 anos ao serviço da cultura O Conservatório de Música de Santarém é uma cooperativa sem fins lucrativos que foi fundada em Maio de 1985 por um grupo de doze pessoas que entre si tinham o gosto pela música. Actualmente tem cerca de 400 alunos e 40 professores. Desde a sua fundação que o Conservatório de Música de Santarém, com paralelismo pedagógico, desenhado oficialmente pelo Ministério da Educação, lecciona em regime articulado e supletivo os cursos básicos (do 1º ao 5º graus) e secundários (do 6º ao 8º graus) de música nos seguintes instrumentos: Piano, Órgão de Tubos, Viola Dedilhada, Violino, Violeta, Violoncelo, Guitarra Portuguesa, Contrabaixo, Flauta Transversal, Canto, Oboé, Clarinete, Saxofone, Trompete, Tuba, Trombone de Varas, Acordeão, Bateria, Percussão e Dança Contemporânea e Ballet. “É fascinante trabalhar no Conservatório de Música de Santarém. Vive-se aqui uma qualidade pedagógica que nos tem conduzido a muitos êxitos. Somos uma instituição com um projecto imparável. A nossa história vai continuar a fazer-se cada vez com mais interligação com a comunidade e numa dádiva constante feita de cultura e afecto”, garante Beatriz Martinho.
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