
O homem de causas dedicou-se ao passado
Joaquim Martinho da Silva é uma referência cívica em Santarém, onde durante muitos anos exerceu advocacia e teve participação activa no combate político e no movimento associativo, ajudando a fundar várias colectividades. “Vivi sempre contra a situação”, confessa. Retirado da profissão há dez anos, diz que abandonou a luta por causas e hoje, aos 83 anos, dedica-se ao estudo do passado de Santarém e da região. Lamenta o abandono do centro histórico da cidade e a inactividade da associação de defesa do património, explica porque se desligou do PS e diz que a única coisa boa que Moita Flores fez em Santarém foi dar visibilidade à vida e obra de Bernardo Santareno.
Sempre foi um homem empenhado civicamente. Quais são hoje as suas causas? Hoje já não luto por nenhuma causa. Dedico-me a coleccionar coisas relacionadas com a história de Santarém e da região. Mas já procuro menos... Da sua vida de intervenção cívica qual foi o episódio ou situação que mais o marcou? As que mais me marcaram foram sempre no campo político. A primeira situação terá sido durante a candidatura do general Humberto Delgado às eleições presidenciais de 1958. Era muito novo, tinha acabado de me formar e acompanhei isso muito de perto.O que o levou a meter-se numa aventura dessas? Porque na família já era assim. O meu primo e padrinho, Joaquim dos Santos Martinho, também foi sempre da oposição. O meu tio, pai de Bernardo Santareno, entrou em revoluções, era conhecido como “Joaquim das bombas” e estava no grupo que foi cortar a azinheira onde se diz que apareceu a Nossa Senhora de Fátima. Vivi sempre contra a situação. Foi Humberto Delgado que o escolheu para mandatário em Santarém? Não. Fui eleito por um grupo. Eu estava no escritório do meu patrono, primo e padrinho onde os papéis todos apareciam. Estava ali, vivia aquilo. Por exemplo, fui eu quem foi ao Governo Civil copiar os cadernos eleitorais. E a PIDE anotou.Teve problemas com a polícia política do regime de Salazar? Não tive, mas isso ficou tudo apontado. A verdade é que o general Humberto Delgado acabou por ganhar as eleições no distrito de Santarém, mesmo a nível oficial.Foi fundador do PS em Santarém. Ainda acompanha a actividade do partido? Continua militante? Já não sou militante, só simpatizante. Saí porque uma das coisas que não queria era que os indivíduos de Lisboa viessem para aqui dirigir o partido. Isso acontecia e mesmo agora ainda acontece um bocado. Em 1975 ou 1976 andei a negociar a venda do colégio Andaluz para o Estado. Conhecia as freiras e achei que estava em melhores condições para evitar assaltos ou ocupações selvagens daquele património. O governador civil Sacramento Marques disse-me para tratar disso. No âmbito desse processo fui a Lisboa para falar com um senhor deputado por Santarém. Ele estava numa reunião e disse-me que era só um momento. Fez-me estar uma hora à espera. Entendi isso como uma falta de consideração e vim-me embora. Deixei de ser militante do PS nessa altura.Quem era esse deputado? Era o senhor doutor António Reis.Como vê o PS hoje em Santarém? Acho que o PS perdeu muita força, mas estou afastado e já não conheço bem as pessoas. Mas continuo simpatizante e ainda há pouco tempo lá fui votar no António Costa. Voto sempre no PS.Quer dizer que não embarcou na onda que levou Moita Flores a presidente da Câmara de Santarém durante dois mandatos? Não. Nunca gostei dele. Envolvi-me muito na luta pelo Teatro Rosa Damasceno e tive brigas com Moita Flores por causa disso. Costumo dizer que ele só fez uma ou duas coisas boas cá em Santarém. Uma foi em relação ao Bernardo Santareno, meu primo, apoiando a divulgação da sua vida e obra e criando aqueles prémios e aquelas coisas todas. Manteve o Santareno vivo, embora se tenha esquecido de pagar os prémios literários. E a outra coisa, que digo em registo de laracha, é a de ter ido ao Brasil buscar cavalos para fazer concorrência à Golegã. Quanto ao Santareno, sim senhor, fez mais por ele do que qualquer outro presidente da câmara.Foi também um dos fundadores da Associação de Estudo e Defesa do Património Histórico-Cultural de Santarém, que hoje praticamente não dá sinais de vida. Exactamente. Aliás, quando para lá foram estes indivíduos deixei de ser sócio. Tal como deixei de ser sócio do Clube de Santarém quando pretenderam vender o Rosa Damasceno. Deixei de ser sócio da Associação de Estudo e Defesa do Património porque estão a destruí-la por inacção. Não fazem reuniões, não fazem nada, nada, nada… A associação era uma coisa viva. Aquelas pessoas que a fundaram e ali estiveram anos e anos fizeram grandes manifestações culturais em Santarém. Agora está tudo morto.Foi também um dos líderes do movimento que reclamou a reabilitação e devolução do Teatro Rosa Damasceno à cidade. Acredita que aquele imóvel, hoje em ruínas, ainda vai ser novamente uma casa de cultura? É difícil. Como disse, saí do Clube de Santarém por causa disso. Era presidente da assembleia-geral e não quis assinar a convocatória da assembleia para vender o Rosa Damasceno. Expliquei as razões e vim-me embora. Houve uma altura em que a câmara e o Clube de Santarém não se quiseram entender. Foi pena. Mas o Clube nem sequer vendeu aquilo, trocou-o por terrenos em Almeirim… O centro histórico da cidade tem vindo a definhar gradualmente com o passar dos anos. Ainda há salvação possível para essa zona? É um bocado difícil. Há muitas coisas que levaram a esse resultado, como o desinteresse das pessoas, da câmara, do Estado. Antes havia vida naquela zona, as pessoas juntavam-se nos clubes, jogavam às cartas, jogavam pingue-pongue, etc… Hoje as pessoas juntam-se no shopping, o comércio faz-se lá também. Mas há sempre salvação.Este ano já foi homenageado pelo Agrupamento de Delegações de Santarém da Ordem dos Advogados e pela Associação Forense de Santarém, bem como pelo Politécnico de Santarém, e o presidente da câmara anunciou que iria propor ao executivo que lhe fosse atribuída a Medalha de Ouro da Cidade. Como lida com tanta distinção? Sinto-me vaidoso. Quem não se sentiria? Aquilo que tenho feito é mais uma satisfação pessoal do que outra coisa. As pessoas no geral não beneficiam muito com essa minha actividade. Enfim, estou satisfeito com isso, pois é um reconhecimento, mas acho que há pessoas que têm feito muito mais do que eu e estão esquecidas. É muito importante reconhecer as pessoas que fazem qualquer coisa pela sua terra. Sente saudades da barra dos tribunais?Sinto. Arranjei muitos amigos, mesmo entre os magistrados. Tive muitos estagiários. Um deles foi director geral da Polícia Judiciária, o dr. Lourenço Martins. E tenho pena de já não me lembrar do nome de alguns. No escritório o estagiário sentava-se comigo e assistia a tudo. Como é que as coisas funcionavam no Tribunal de Santarém quando começou a exercer advocacia? Comecei já neste tribunal. A nossa relação com os magistrados era com uma certa distância, havia aquele respeitinho. Mas era uma pessoa que me relacionava bem e tive aqui grandes amigos.Nome numa rua que não existe e as medalhas de cortiçaHá uma dúzia de anos os nomes de Joaquim Martinho da Silva e de Leonardo Ribeiro de Almeida (personalidade ligada ao PSD, já falecida), foram propostos para receberem a medalha de ouro da cidade de Santarém. Numa época de profunda clivagem política entre esquerda e direita, o executivo camarário dividiu-se e nenhum dos nomeados obteve a unanimidade imprescindível para ser concedida a distinção. O episódio foi muito badalado à época na cidade e ainda hoje Martinho da Silva o recorda com humor. “Na altura chamaram-lhe medalhas de cortiça e penduricalhos”, brinca. Ribeiro de Almeida acabou por receber a medalha a título póstumo. E Martinho da Silva aguarda os desenvolvimentos da promessa do presidente da Câmara de Santarém em propor novamente o seu nome ao executivo para outorga da mais alta distinção do município. “Se a medalha me for concedida, recebo-a com muito gosto. Não nasci cá, mas gosto desta cidade como se cá tivesse nascido”.Na mesma altura, o nome de Martinho da Silva foi também proposto para dar nome a uma rua na urbanização de São Domingos, por proposta da então Junta de Freguesia de São Nicolau, que o havia distinguido como Personalidade do Ano 2001. O processo nunca andou porque a artéria em causa entroncava no prolongamento da Avenida Nossa Senhora de Fátima, em terrenos que não chegaram a ser urbanizados devido à crise na construção. “Deixou de se construir e como não há construção não há ruas. Mas se não há uma rua para São Frei Gil de Santarém por que há-de haver para o Joaquim Martinho da Silva?”, diz com humor.Para ser eficaz a justiça não pode estar afastada das pessoasEm meio século de actividade como advogado Joaquim Martinho da Silva tem imensas histórias passadas na barra do tribunal ou no escritório. Como a de um julgamento de um caso que se passou num café em Fazendas de Almeirim, em que uma mulher e um homem se desentenderam. As testemunhas eram um idoso, uma mulher e um jovem. O idoso, com muito respeito ao tribunal, disse que a mulher no meio da discussão tinha lançado a mão aos “tubos do homem”. O jovem referiu-se à situação com todas as letras dizendo um palavrão em tribunal. O advogado nota o respeito que os mais velhos têm para com a justiça contando também o episódio em que um idoso que estava a assistir a um julgamento se urinou pelas pernas abaixo porque teve vergonha de pedir ao juiz para ir à casa de banho. Hoje, considera, o respeito pelo tribunal já é diferente e o acesso à justiça também não é igual. Lembra-se também de um cliente que ligava às seis da manhã para a sua casa porque queria garantir que era atendido nesse dia. Nesse tempo, há muitos anos, as pessoas saíam de madrugada das aldeias para estarem cedo em Santarém à porta do escritório do advogado. Às oito da manhã já tinha pessoas à espera que chegasse. Referindo-se à reforma da justiça diz que a criação de tribunais especializados em Santarém, como o do Comércio, vai obrigar muitas pessoas a terem que andar distâncias muito grandes para resolverem os seus problemas. Entende que antigamente a justiça estava mais próxima das pessoas. E ilustra o facto com uma lenda de Santarém, a do Cristo da pastorinha numa capela que havia na zona do liceu. Um fidalgo andava atrás de uma pastorinha que o obrigou a ir à capela jurar perante a imagem de Cristo que casava com ela, mas o casamento não aconteceu. A pastorinha queixou-se ao juiz e disse que a testemunha estava na capela. O juiz deslocou-se ao local para fazer o julgamento. Com o povo todo a assistir o juiz perguntou-lhe na capela quem era afinal a testemunha, e a pastorinha apontou para a imagem de Cristo. Reza a lenda que ela perguntou à imagem se era verdade que o fidalgo, para conseguir os seus intentos, tinha prometido casar com ela, e o Cristo baixou o braço apontando para o réu. “Se o juiz não fosse ao local não se teria feito justiça”, realça, acrescentando que a justiça para ser eficaz não se pode afastar das pessoas. As recordações do Espinheiro natalNasceu no Espinheiro e guarda gratas recordações da infância, quando andava aos ninhos, apanhava a azeitona e jogava à bola nessa aldeia do concelho de Alcanena onde viveu até aos 11 anos. Ainda lá vai de vez em quando e tem pena que o poder local não tenha ainda homenageado convenientemente duas actividades que deram fama à terra há algumas décadas e ajudaram a pôr pão na mesa em muita casa de família: a venda ambulante de peixe, feita numa vasta zona em redor, e a resinagem. Martinho da Silva acha que já era tempo de ser reconhecido o trabalho dessa gente, peixeiros e resineiros, por exemplo na toponímia local.Fundador do PS em SantarémJoaquim Martinho da Silva foi fundador do PS em Santarém mas desvinculou-se do partido, sem traumas, pouco tempo depois. Garante que continua simpatizante e que habitualmente vota nos socialistas. Chegou a ser dirigente concelhio nos primórdios do PS escalabitano com nomes como José Faustino, Alves Castela ou Jaime Figueiredo. Diz que foi convidado para o cargo de governador civil e para candidato a deputado mas entendeu que na política nunca ganharia dinheiro suficiente para sustentar a família nem teria tempo para atender os clientes no seu escritório. O esquecimento de SantarenoO advogado aposentado tem centenas de cartas de Bernardo Santareno e outra documentação. Comprou o manuscrito da peça “O Judeu” em leilão e ofereceu-o à biblioteca municipal. Lamenta que no Instituto Bernardo Santareno não houvesse livros de poesia do escritor escalabitano falecido em 1980, tendo oferecido um exemplar a essa entidade que actualmente se encontra praticamente desactivada. Se esse instituto funcionasse, seria o pouso natural do seu espólio relacionado com o dramaturgo. Assim, Joaquim Martinho da Silva ainda não sabe que destino lhe dar.
