Vive em Vila Franca de Xira a primeira candidata cega às legislativas
Ana Sofia Antunes, presidente da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal, é candidata do PS por Lisboa
Ana Sofia Antunes, residente em Vila Franca de Xira, está a um passo de se tornar a primeira pessoa com deficiência a ocupar o lugar de deputada na Assembleia da República. Ana, que é presidente da Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO), diz que isso “já acontece tarde” porque o país tem dificuldade em quebrar as barreiras da diferença. Garante que não vai deixar de ser uma voz politicamente incorrecta só porque vai ocupar esse cargo e que sairá desiludida se a burocracia a impedir de fazer mais. A O MIRANTE confessa que espera abrir os olhos aos políticos de carreira para fazê-los ver que há necessidades que precisam de ser resolvidas no imediato.A candidata às legislativas pelo PS, pelo círculo de Lisboa, em lugar elegível, vive em Vila Franca de Xira há seis anos. É uma pessoa sem problema em dizer o que pensa. É cega de nascença - não gosta que lhe chamem invisual - e vive completamente o seu dia-a-dia de forma autónoma, com o companheiro, também invisual, que é natural da cidade. Integra como independente a lista do Partido Socialista em 19º lugar. Foi convidada pessoalmente pelo líder do partido, António Costa, com quem trabalhou na Câmara de Lisboa. A O MIRANTE Ana Sofia Antunes diz não se considerar uma representante das minorias mas sim de todos os portugueses. Se puder quer estar na linha da frente da criação de uma lei de bases da vida independente, conseguir uma reversão profunda dos mecanismos compensatórios dos custos acrescidos que as pessoas com deficiência enfrentam e dinamizar uma revisão da legislação de atribuição de produtos de apoio. “Espero que o tempo seja suficiente e que os melindres burocráticos permitam fazer isso. Conheço teoricamente o processo legislativo da assembleia e estou preparada para ter algumas desilusões”, refere.Conta que já vem tarde a possibilidade de uma pessoa com deficiência ocupar um cargo na assembleia. “Não sei se chame estigma ou possível discriminação, pode ser um bocadinho de ambas as coisas. O ser humano é avesso à novidade, à mudança e a lidar com realidades com as quais até ao momento não lidou. Ultrapassar a barreira é muito complicado e isso pode ter consequências nefastas na vida de muita gente”, conta.Ana não é estranha à política. No passado já integrou a Assembleia Municipal de Lisboa e a lista de candidatos independentes à câmara da capital em 2007, com Helena Roseta. No PS, ao ficar em lugar elegível, desafiou os barões da política que a viram como adversária. “Esse processo passou-me completamente ao lado. Não lido nem deixo de lidar com essa gente, não tem a ver com a minha realidade”, remata.A jurista de profissão lamenta que o Parlamento não seja ainda uma casa mais aberta à população. “Tenho pena que não haja mais formas de interagir com o público e os cidadãos eleitores”, regista. Diz que para um cego andar na assembleia não é complicado mas alerta que para um cidadão em cadeira de rodas isso se torna “um problema” porque o edifício é pouco acessível. O acesso à informação escrita é o seu maior problema.Abrir os olhos aos políticosAna Antunes quer abrir os olhos a alguns políticos de carreira e fazê-los ver que é urgente olhar para os problemas dos cidadãos com deficiência. “Se conseguir ser eleita isso representará para mim um grande orgulho e um reconhecimento pelo meu trabalho. Mas isso de nada servirá se ao fim dos quatro anos vier embora sem ter conseguido fazer a diferença. Se não cumprir metade do que me proponho fazer saio desiludida comigo mesma”, assume.Diz que “seria bom” ver mais pessoas com deficiência concorrer para outros cargos públicos. “É importante ver essas barreiras mentais e sociais a caírem. Derrubamos essas barreiras mostrando aos outros do que somos capazes, desconstruindo mitos que foram surgindo e mostrar à sociedade em geral que as pessoas com deficiência têm capacidades e incapacidades como todos os outros”, reflecte.É uma mulher habituada a dizer o que pensa mesmo que as suas palavras possam cair mal em quem a ouve. É uma activista que não gosta do politicamente correcto e diz que não está “nem um bocadinho preocupada” com isso se chegar ao Parlamento. “Vou continuar a ser o que sempre fui. Por muitos sítios por onde passei disseram-me que o politicamente correcto é que valia, que teria de me adaptar e pensar bem no que digo. Mas isso não sou eu e espero ser uma voz diferente”, garante. Diz que se não conseguir ser eleita pelo menos já chamou a atenção para a causa das pessoas com deficiência.Maria da Luz Rosinha é “uma pessoa dinâmica”Ana Sofia Antunes só conhecia a ex-presidente da Câmara de Vila Franca de Xira, Maria da Luz Rosinha, também candidata do PS por Lisboa, enquanto munícipe. “Fez um bom trabalho. Na via pública foram feitas algumas melhorias e isso vejo sempre com agrado. É uma pessoa dinâmica que admiro e me identifico. É daquelas pessoas que agarram e não largam até conseguir algo e isso para mim é importante”, refere. “Haver três pessoas do concelho nas listas do PS por Lisboa [Maria da Luz Rosinha, Ana Sofia Antunes e João Pedro Baião] acho que deve deixar as pessoas orgulhosas, que sintam essa proximidade e saibam que poderemos ser a voz delas no Parlamento”, diz. A jurista elege Vila Franca de Xira como uma cidade “simpática” onde gosta de morar. “Não me arrependo de vir para cá, tem uma mescla interessante de urbanismo e ruralidade. Gosto muito das pessoas, é um local tranquilo”, conta.Ana Sofia Antunes é presidente da ACAPO - Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal desde Janeiro de 2014. Sobre a acessibilidade das pessoas com deficiência na cidade diz que muito já foi feito mas que há um grande caminho a percorrer. “Deixa um bocadinho a desejar, para quem como eu vive no alto da cidade não é fácil. O que faz mais falta é um sistema de transportes públicos que funcione. Muitas vezes tenho de ir de táxi para casa”, lamenta.Diz que a ACAPO tem feito um percurso grande mas que os políticos ainda não a escutam como deve ser. “Temos uma série de pessoas que são bem intencionadas mas de alguma forma se consideram iluminadas. Acham que têm nas suas mãos todos os conhecimentos e instrumentos para decidir pelos outros, quando na realidade não fazem a mais pálida ideia sobre o que é a vida das pessoas com deficiência. Em Portugal o fenómeno da participação não está enraizado”, lamenta.Diz que o país anda a “empurrar com a barriga” as leis que obrigam a criar mecanismos de acessibilidade para todos e que o Estado não é o primeiro a dar o exemplo.Uma vida a pulso contra as dificuldadesAna Sofia Antunes nasceu em Lisboa a 11 de Agosto de 1981, filha de um cabo da Guarda Nacional Republicana e de uma operadora da Portugal Telecom. Cega congénita, nunca precisou que lhe dissessem que não conseguia ver. “Foi a minha realidade desde sempre”, explica. Detesta pessoas derrotistas e nunca virou a cara à luta. Licenciou-se em direito e hoje é jurista e provedora do cliente da EMEL. Esteve na Câmara de Lisboa desde 2007. Diz que não teve uma infância rica nem oportunidades diferentes dos demais. A diferença está no empenho com que se dedicou a vencer os obstáculos.Já teve momentos em que pensou desistir e deixar-se levar pela indiferença do mundo. “Mas sou uma pessoa intrinsecamente positiva por natureza, acho sempre que os obstáculos vão ser superados e que as coisas vão correr bem. Na ACAPO dizem-me que sou demasiado optimista. É a única forma de se conseguir fazer coisas e fazer as coisas acontecerem. Não consigo lidar com pessoas pessimistas e derrotistas, isso dá-me cabo dos nervos. Quando temos força de vontade e queremos que as coisas aconteçam elas acontecem”, conta. Não tem tempos livres mas aproveita as viagens de comboio para ler. Acabou há pouco tempo “O Labirinto” de Kate Mosse. Gosta de sair com os amigos - onde tem de todos, desde os visuais aos invisuais - ir a esplanadas e adora viajar. Gosta de conhecer novas realidades, novos locais, as sensações e os cheiros e guardar uma imagem mental dos locais.Diz que os pais de crianças deficientes devem lidar com eles com a maior naturalidade possível. “Não os prendam, não os limitem nem os impeçam de fazer coisas, não se tentem substituir a eles em cada passo, isso só os vai retrair, deixem-nos viver, dar cabeçadas, cair. Fiz tudo isso desde pequena. Aprendi a andar de bicicleta, esfolei-me, tudo o que as outras crianças fazem, saía à noite, divertia-me, isso faz parte de um crescimento e interacção natural que todas as pessoas com deficiência têm de ter para ganharem mundo”, explica.
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