Fogo, pior que dantes
Em agosto de 2016 andei nas florestas de Pedrogão Grande e Figueiró dos Vinhos e neste mesmo jornal escrevi: “Andei, passo a passo, algumas dezenas de quilómetros na floresta do centro do país e a pergunta que constantemente me assolava era só uma: ‘como é possível isto não arder?’ No estado em que se encontra a floresta vai arder de certeza.”
Li o que escrevi em anos idos sobre fogos e torna-se incontornável voltar ao tema. Setembro de 2013: “o que se passou no Caramulo é demasiado grave para ficarmos pelo habitual (...) Num contexto só comparável a uma situação de guerra a exigência técnica e o risco são demasiado elevados para bombeiros voluntários amadores. Neste combate, nesta frente, só podem estar profissionais altamente qualificados, preparados e equipados.” Há menos de um ano, em agosto de 2016, andei nas florestas de Pedrogão Grande e Figueiró dos Vinhos e neste mesmo jornal escrevi: “Andei, passo a passo, algumas dezenas de quilómetros na floresta do centro do país e a pergunta que constantemente me assolava era só uma: ‘como é possível isto não arder?’ No estado em que se encontra a floresta vai arder de certeza.” Ainda a este propósito escrevi, em setembro de 2016, que a área ardida em Portugal é maior que a de toda a Europa: “Por cá o ‘negócio do fogo’ está mal equacionado, pois a grande fatia do investimento é feita num segmento da fileira não rentável, o apagar fogo. Imagine-se o resultado diferente se os mesmos recursos fossem investidos em limpeza, conservação e valorização da floresta.” Chegamos a 2017 e tudo pior que dantes. Um ano e uma comissão interministerial de sete ministros depois, o que mudou? Nada. Somos um país do terceiro mundo (bombeiros voluntários, gente que descansa a consciência com paletes de leite para os bombeiros e roupas para os desalojados…), com riscos, sistemas (comunicações, centro de comando…) e equipamentos (jipes, carros de combate, fardas…) do primeiro mundo.
A tragédia, naturalmente (como poderia ter sido diferente?), abateu-se sobre o nosso campo. Como avaliar, mais uma vez, o que aconteceu? O mais provável é que a principal causa esteja num computador central, algures em Lisboa, sem o qual a decisão não é tomada... Isto é, quem vive o local e chama os bois pelos nomes, a GNR ou bombeiros locais, provavelmente teriam tomado a decisão certa, pois o posto de comando de Lisboa nunca ouviu falar na EN 236-1. Cito a Rádio Renascença (21 de Junho, 8h20): “Uns metros à frente, no café-restaurante Gil, Lurdes Henriques descreve o mesmo filme. ‘Muitos turistas até jantaram cá mas depois entraram em pânico. Queriam ir para Lisboa, só falavam em Lisboa. A uns ainda lhes disse para irem para o lado da Lousã [local contrário à direção das chamas], a outros, um casal com duas crianças, tanto lhes pedi para não irem. Ainda levaram uma garrafa de água’, lembra.” Se a dona do café sabia, a GNR e os bombeiros locais, não?
No fim os cães ladram e o cortejo de vaidades com bonitas fardas e bons jipes com pirilampos estridentes vai passar e continuar intocável até à próxima. João Miguel Tavares escreveu no Público (20 de junho): “Apaziguamos a alma com donativos. Vemos o Presidente da República desculpar toda a gente ainda antes de saber o que aconteceu.” Fica uma certeza e algumas incertezas, vai voltar a acontecer, só não sabemos quando e onde; tudo o resto é outra conversa. Triste tempo este em que mais recursos, mais meios, mais quase tudo, significam menos, muito menos do essencial. Esta é, na verdade, a maior e mais grave das pobrezas, a incapacidade de fazer o que se deve. Perante tudo isto só podemos mesmo ser pobres.
Carlos Cupeto – Universidade de Évora