Marialvas de escritório dizem que as mulheres ficam lindas em cima de um cavalo
O amor pelas tradições e pela arte de cavalgar em público com traje a preceito
Nas festas do Ribatejo, em desfiles de cavalos ou entradas de toiros e outros eventos, há sempre cavaleiros e amazonas vestidos a rigor com fatos tradicionais de equitação que derivam, na vertente masculina, do traje de lavrador ribatejano.
“Se não fossem os cavaleiros amadores, os marialvas com vontade, a festa não tinha futuro. Participo em desfiles e se puder não falho um. Faço-o por amor à tradição que já nasceu comigo. Sem vaidade, só com o puro sentimento de quem vive as festas”, diz Nuno Correia, de 34 anos, natural de Vila Franca de Xira, apaixonado por cavalos e toiros a O MIRANTE, depois de ter descido da sua montada no final do desfile etnográfico das Festas de Samora Correia, no Sábado, 18 de Agosto.
O termo Marialva tanto pode designar alguém que sabe montar bem e tem um cavalo de boa raça, como, em termos mais ou menos depreciativos, um sedutor, mulherengo e alguém de boas famílias que leva uma vida com gente de comportamento socialmente criticável. No caso de Nuno Correia, a designação é usada para nomear alguém que sabe cavalgar.
Trajado à portuguesa, com modelo encomendado à medida numa casa de alfaiate em Évora, diz que o orgulho de se vestir à antiga ultrapassa qualquer desconforto que aquelas roupas lhe possam causar.
O traje masculino de equitação português é composto por uma jaqueta, que mais não é que um casaco curto aflorando a linha da cintura e terminando um pouco abaixo desta, normalmente adornada com botões ou alamares. A calça, de cós alto e cintado ajustando nas costas com atilho, é justa até ao joelho, seguindo com a mesma largura até aos pés de modo a permitir o uso de botas de prateleira.
Engloba ainda um colete de decote em V prenunciado, de forma a mostrar a camisa, com quatro bolsos formando um acentuado bico na frente, o qual ultrapassa a linha da jaqueta. A camisa é branca e comprida, de tecido fino. A indumentária é acompanhada por um chapéu de aba larga, à portuguesa, com virola e copa redonda convexa.
Bombeiro de profissão, não tem qualquer ligação ao campo mas diz que isso não lhe tira o direito de participar nas festas, “fantasiado”, em cima da sua montada. “O que importa é o espírito com que se vem para uma festa. Muitos marialvas que vêm às festas trajados ainda trabalham no campo, outros, como eu, não, mas hoje nenhum o faz por obrigação”, diz.
E justifica a sua presença. “Venho acompanhado por um grupo de amigos. Gostamos de mostrar os cavalos a trabalharem na rua e de fazermos ver a nossa paixão por eles. Só critico aqueles que não sabem montar e que não têm postura de cavaleiro, nem respeito pelo cavalo e não cumprem as regras base”.
Enquanto refrescava a Ximena, uma égua luso-árabe, com 14 anos, conta que a ligação entre os dois “é única” e de “extrema confiança um no outro”. “Confio mais nela do que numa mulher, pelo menos a Ximena nunca me trai”, diz com humor.
E no que toca a mulheres? “A mulher é um ser extraordinário mas infelizmente o machismo ainda não permite às mulheres desfrutarem tanto como nós. Temos que as incentivar a participar mais activamente nas festas. Elas também têm paixão pelos cavalos e ligam-se a eles de uma forma como poucos homens conseguem fazer. Isto já não é só para os homens”, afirma.
“As mulheres ficam lindas em cima de um cavalo”
Nas cocheiras, O MIRANTE encontrou Eduardo Couto, a desaparelhar a sua égua Carlette, de meio sangue lusitano, “uma pêra doce, super tranquila”, diz o cavaleiro amador. É com ela que percorre as festas porque nasceu no campo e no Ribatejo e diz que o cavalo e os toiros são do melhor que há para juntar os amigos.
Escriturário, de 44 anos de idade, mora num apartamento em Vila Franca de Xira e já pouco contacto tem com a vida rural. “A Carlette tem uma boa vida no campo e sempre que posso vou ter com ela. Tento ir umas três vezes por semana”, afirma.
Nota-se-lhe algum desconforto no uso do traje. “São vinte botões só nas calças”, diz com o suor a escorrer-lhe pela cara. Mais tarde, já vestido como no dia a dia já está mais confortável e com um ar mais alegre. “Agora já não sou um marialva”, diz com vivacidade.
Antes de se separar de O MIRANTE volta a fazer uma referência às amazonas. “Elas ficam lindas em cima de um cavalo. Gostava que daqui a uns anos pudéssemos assistir a um cortejo repleto de mulheres. Há que puxar pela festa” e segue em direcção à Praça 25 de Abril, ansioso para ver o toiro que por lá anda.
Não receio marialvas machistas e sei impôr respeito
Amiga de campinos e apaixonada pela liberdade do campo desde que se lembra de ser gente, Rita Ferreira, 36 anos, natural de Riachos, Torres Novas, foi das poucas mulheres amazonas a participar no desfile etnográfico das Festas de Samora Correia. Com traje de equitação feminino, brincos de ouro e colarinho da jaqueta dourado diz não recear marialvas machistas.
“Ser mulher no meio de tanto homem não é fácil mas se soubermos estar e impôr respeito, torna-se mais fácil”, afirma.
Cavaleira amadora nas horas vagas, Rita é subchefe de secção num supermercado, mas sempre que pode escapa-se para ir à festa brava. “Mudam-se as folgas se for preciso. Faço quilómetros a seguir ao trabalho para poder estar nas festas. Não é por vaidade que o faço, apesar de envergar um traje de fazer inveja a muita gente. Faço-o por gostar das tradições e porque isto me está no sangue”, sublinha.