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Francisca Laia: uma campeã dentro e fora de água
O MIRANTE conversou com a canoísta na Aldeia do Mato, na albufeira de Castelo de Bode, onde Francisca Laia treina frequentemente

Francisca Laia: uma campeã dentro e fora de água

Francisca Laia, 26 anos, iniciou o seu percurso na canoagem aos seis anos, por influência do pai, João Laia, no Clube Desportivo Os Patos, em Abrantes. Ao longo dos anos tem vindo a coleccionar medalhas, nacionais e internacionais, e já foi eleita várias vezes atleta feminina do ano. O ponto mais alto na sua carreira desportiva atingiu-o com a participação nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. Em 2012 ingressou na Universidade de Coimbra para estudar medicina. Em entrevista a O MIRANTE, realizada minutos antes de um treino na Aldeia do Mato, na albufeira de Castelo do Bode, a atleta falou da infância, da maternidade, e do seu futuro como médica.

Tens orgulho nas tuas origens?

Não podia ter mais orgulho. Nasci e fiz-me mulher em Abrantes. A primeira vez que saí foi para participar num estágio da selecção nacional de canoagem. Penso que estava no 9º ano. De resto sempre fiz a minha vida aqui, sou abrantina de gema. Os meus pais trabalham na área da saúde, no Hospital de Abrantes. Sempre disse que não queria seguir as suas pisadas, mas a vida é imprevisível e aqui estou eu, perto de me tornar médica.

O que melhor recordas da infância?

Das férias de Verão dedicadas à canoagem. O meu pai faz canoagem desde os 10 anos. Foi ele que me pegou o bichinho quando tinha seis anos. Adorava ir com os meus colegas de escola primária descobrir a barragem de Castelo do Bode. Íamos para a praia Fernandaires, Penedo Furado, Cabeça Gorda e Aldeia do Mato, onde estamos agora a conversar.

Gostas de treinar aqui?

É o meu sítio preferido no mundo, mas só entre Novembro e Maio. Tenho uma barragem só para mim, como podes ver. No Verão nem meto cá os pés (risos).

Quando é que o desporto aparece na tua vida?

Sempre fui maria-rapaz. Comecei por participar nos programas de férias desportivas que a Câmara de Abrantes organizava. Dedicava-me muito à corrida, onde cheguei a ser campeã distrital de velocidade. Na escola também dava uns toques na bola com os meus amigos, sobretudo rapazes. Tudo isto antes dos meus seis anos.

Depois apareceu a canoagem?

Sim. O meu pai foi um dos principais impulsionadores da canoagem no Clube Desportivo Os Patos, em Abrantes. Estive na associação entre 2003 e 2015, é a minha casa. Lembro-me muito bem do meu primeiro treino na Aldeia do Mato: meti-me dentro de um barco instável, com ondas e vento a soprar de um lado. Inicialmente tive medo, mas quando consegui superar o desafio, de passar de uma margem para a outra, senti uma sensação incrível. Nos Patos tinha como tarefa conseguir convencer os meus colegas de escola a virem experimentar a modalidade.

O desporto de formação é levado demasiado a sério?

Sem dúvida. Querem profissionalizar as crianças demasiado cedo, quando o mais importante é garantir que se divirtam. A formação é um período muito importante para adquirir princípios e valores e não para ganhar provas. O facto de ter estado 13 anos a treinar com os meus amigos foi muito importante para atingir o patamar onde estou actualmente.

É difícil aprender a técnica da canoagem?

Muito! E é a parte mais aborrecida desta modalidade. Temos de progredir de barcos com mais estabilidade para os mais instáveis e isso implica ir à água muitas vezes. Durante o Inverno é uma tortura por causa do frio.

Qual é a tua especialidade na canoagem?

Faço provas em K1, K2 e K4, dependendo se compito individualmente ou por equipa. Gosto mais de provas de velocidade, embora chegue a fazer treinos com mais de duas horas dentro de água. Recentemente fiz mais de 100 quilómetros numa semana. O meu dia é uma rotina, porque a perfeição vem com a repetição. Chego a treinar mais de cinco horas num dia.

O alto rendimento exige muitos sacrifícios. No teu caso, como se materializam?

É preciso muita força de vontade e resiliência. Há dias em que chove e faz vento, que me apetece muito mais ficar em casa. Também não é fácil ter de aceitar que a minha vida é fora de casa, e longe das pessoas que mais amo, cerca de 200 dias por ano. Apesar de tudo, acho que aprendi a gerir bem o meu tempo e consigo chegar a muito lado.

Não sentes que perdeste uma boa parte da juventude?

Não, principalmente por causa dos meus amigos. Acompanharam sempre o meu percurso e sabem da importância que dou à canoagem. Podiam ter cobrado as minhas ausências mas, pelo contrário, eram eles que, muitas vezes, vinham ao meu encontro. Gosto de cumprir com a máxima do ‘diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”. Se puder, gostava que deixasses escrito o nome de uma das minhas melhores amigas, a Alexandra Simão.

Dás muitas facadinhas na dieta?

Nunca precisei de fazer uma dieta rigorosa. Normalmente as pessoas fazem dieta para perder peso, eu tive de fazer para ganhar peso em massa muscular. Gosto de comer pizza, lasanha e massas, excepto nas alturas de prova, em que me obrigo a fechar mais a boca.

Quer dizer que não ligas à aparência física?

Claro que gosto de me ver ao espelho e de me sentir bem comigo própria, mas não é uma coisa que me tire o sono. Vou dar um exemplo: a canoagem é um desporto que alarga muito os ombros e isso dá ao meu corpo características mais masculinas, mas não é por isso que me sinto menos feminina.

“NO DESPORTO
AS MULHERES NÃO
SÃO PIORES QUE OS HOMENS”

Tens uma carreira desportiva com mais de 20 anos. Qual foi o momento mais alto?

Sem dúvida a participação nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, mas espero não ficar por aqui. A minha primeira medalha internacional, em 2011, também foi marcante porque foi quando percebi que podia ir longe nesta modalidade.

Como foi a preparação para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro?

Foi muito longa, porque durou a minha vida toda. O caminho para um objectivo não é a direito e num estalar de dedos, exige tempo, paciência e esforço. O que eu fiz quando tinha 6 anos contribuiu para a minha ida aos jogos olímpicos.

Há tempo para festejar conquistas?

Tem de haver. É fundamental saborear as vitórias para que todos os treinos ao frio, chuva e vento valham a pena. Não menos importante é treinar para lidar com as derrotas. Um atleta tem de primeiro aprender a perder, para depois saber ganhar.

Como se gerem as expectativas?

As que tenho sobre mim são fáceis de gerir. Controlo bem esse aspecto, porque tem tudo a ver com a parte emocional. As que os outros têm em mim, não perco muito tempo a pensar nisso porque já sou demasiado perfeccionista.

Como se mantém a fome de ganhar?

Tem a ver com a personalidade de cada pessoa. No meu ponto de vista, o segredo é nunca nos darmos por satisfeitos. Por exemplo, o meu sonho era ir aos jogos olímpicos. Depois de o ter concretizado tive de criar outro sonho, que é mais fácil de conseguir: ganhar uma medalha olímpica (risos).

Não é demasiada pressão sobre os ombros?

Eu lido bem com a pressão. Simplesmente sei que as minhas capacidades ainda não chegaram ao limite. O meu pico de forma, teoricamente, vou atingi-lo aos 30 anos. Até lá vou trabalhar para ser melhor de dia para dia.

A visibilidade da canoagem em Portugal está à altura dos resultados que se têm conseguido?

Claramente que não. Somos um dos parentes pobres do desporto, em Portugal e no mundo. Não há praticantes suficientes, em comparação com o futebol, basquetebol ou atletismo. Não há muito a fazer, a não ser continuar a lutar para mudar a realidade.

As mulheres deviam ter mais direitos no desporto?

No desporto e na sociedade em geral. Infelizmente, ainda existe o estigma de que o desporto é maioritariamente para homens. As mulheres têm capacidades diferentes mas isso não significa que sejam piores. Temos de continuar a lutar pelo nosso espaço, sabendo que temos uma tarefa árdua pela frente.

A maternidade está nos planos?

Ainda não penso no assunto, mas tenho a certeza de que não quero ser canoísta e mãe ao mesmo tempo. Apesar de ter uma estrutura familiar muito boa, ia ser difícil conciliar as duas vertentes. Mas quero muito ser mãe, até porque acredito que só descobrimos o verdadeiro amor quando somos pais.

“Os atletas passam de bestiais a bestas num instante”

Francisca Laia terminou recentemente o vínculo com o Sporting Clube de Portugal, ao fim de cinco anos com o emblema de Alvalade ao peito. O clube decidiu acabar com a modalidade por falta de verbas e, a cerca de meio ano dos Jogos Olímpicos de Tóquio, a atleta ficou sem clube. Francisca não quer comentar os contornos da actual situação, mas ainda assim lamenta que os atletas de alto rendimento sejam vistos como máquinas que vivem de resultados. “Para os clubes e dirigentes não somos seres humanos. Vamos de bestiais a bestas num instante e isso reflecte-se numa pressão psicológica enorme. É o lado negro do desporto de alta competição”, reforça.
A atleta de Abrantes que, enquanto representou o emblema verde e branco, conquistou 23 medalhas, nacionais e internacionais, e conseguiu a primeira participação olímpica, no Rio de Janeiro 2016, afirma que não se deve confundir a grandeza e o nome das grandes instituições desportivas com as pessoas que estão por trás da sua gestão.

Estudar para médica enquanto luta por medalhas

Francisca Laia ingressou no curso de Medicina, na Universidade de Coimbra, em 2012. Apesar de o pai, técnico de radiologia, e a mãe, fisioterapeuta, estarem ligados à área da saúde, nunca lhes quis seguir as pisadas, mas o destino traçou-lhe outros planos. Para se tornar oficialmente médica só lhe falta fazer o ano comum e escolher a especialidade. “Não devia dizer isto, mas só fui para medicina porque consegui o estatuto de atleta de alta competição. Ninguém, aos 18 anos, sabe o que quer para a vida, mas como tinha uma boa média arrisquei”, confidencia.
Hoje não se arrepende da escolha e admite que se imagina, quando “arrumar o barco”, a exercer na área da obstetrícia e ginecologia. Francisca Laia não sabe se podia ter sido melhor atleta se não se tivesse dedicado aos estudos, mas tem a certeza de que a sua condição formou-lhe melhor o carácter e deu-lhe muito mais do que aquilo que tirou. “Tem sido um ritmo alucinante. Ainda hoje não sei como tenho aguentado. Dizer isto é clichê, mas sem dúvida que querer é poder. E a partir do momento em que acreditamos em algo ninguém nos consegue parar”, conclui.

Francisca Laia: uma campeã dentro e fora de água

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