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A lentidão do sistema informático é um problema complicado para os médicos de familia
João Pita Soares - Personalidade do Ano Vida

A lentidão do sistema informático é um problema complicado para os médicos de familia

João Pita Soares - Personalidade do Ano Vida

A medicina surgiu como uma sugestão da família. A vocação foi sendo descoberta ao longo dos anos de carreira e João Pita Soares não se imagina a fazer outra coisa. Médico de família, dirige actualmente a Unidade de Saúde Familiar que formou com outros colegas. Quando se reformar e tiver mais tempo livre quer voltar a pintar.

Disse numa entrevista a O MIRANTE que o médico de família é o verdadeiro porto de abrigo do doente, mas alguns doentes sentem-se desamparados. Porque é que faltam médicos?

No concelho de Santarém não estamos muito mal, felizmente. Há Unidade Saúde Familiar (USF) em quase todos os lugares e são poucos os utentes sem médico. Talvez uns dois mil no máximo, que são atendidos por outros médicos nas USF. De um modo geral há falta de médicos especialistas. As USF foram criadas há dez anos com um determinado número de profissionais e não lhes é permitido crescer. Seria uma solução admitir mais médicos. Um médico pode ter até 1.900 utentes, o que é muito. O número ideal seria 1.500.

Ser médico de família em 2020 é muito diferente dos anos 80? Onde nota maiores alterações?

Tudo está diferente, a consulta, o seguimento dos utentes. Há quarenta anos não havia o conceito de lista de utentes nem o de médico de família. Éramos médicos para toda a obra, fazíamos até autópsias, sem formação para isso. Hoje em dia o médico de família continua a ser médico para toda a obra, mas há o conceito da continuidade dos cuidados. Não se esgota numa consulta. O médico de família acompanha cada um dos elementos da família e vai-se apercebendo dos problemas que ali existem. É uma relação mais próxima e de maior confiança.

Com o acesso à informação proporcionado pela Internet todos somos um bocadinho médicos?

A Internet trouxe a liberalização do conhecimento médico. Hoje qualquer pessoa pode pesquisar sobre qualquer maleita. Mas é um acto que acarreta riscos porque a medicina não é uma ciência exacta. Há pacientes que moldam os sintomas à medida da doença que pensam ter. Isso pode prejudicar a identificação do problema, mas, felizmente, hoje também existe maior acesso aos exames complementares de diagnóstico.

A introdução do computador no gabinete médico foi um benefício ou um estorvo à relação com o paciente?

Inicialmente era um bicho que ali estava, depois tornou-se num instrumento de trabalho essencial. Hoje em dia quando falha o sistema informático quase já não sabemos trabalhar à mão.

Há tempo para ouvir verdadeiramente o doente, para conversar com ele?

O problema do sistema informático são as quebras, a lentidão, o tempo que esperamos para passar uma receita ou um exame é por vezes maior do que o tempo em que estamos efectivamente a falar com o utente. E isso cria muitas barreiras no atendimento. Até porque temos tempo limitado para cada utente. Somos avaliados pelo tempo de espera. Tem que haver uma boa gestão em termos do tempo de consulta para cumprir objectivos e ao mesmo tempo satisfazer o doente.

A violência contra profissionais de saúde vai ser considerada um crime de investigação prioritária. Parece-lhe a medida correcta?

Tem que haver investigação aos criminosos, quem faz isso é um criminoso. É preciso criar condições efectivas de segurança para médicos, enfermeiros e todo o pessoal. As situações de violência são frequentes e estamos completamente desprotegidos.

Já sofreu alguma agressão no trabalho?

Ao longo dos anos tive vários episódios de violência, não física, mas verbal. Faço parte das juntas médicas para verificação de incapacidades, como perito, e nessa circunstância de vez em quando ‘o caldo entorna’. Normalmente são as pessoas menos doentes que mais reclamam. Com a experiência já sei lidar com a situação e manter a calma.

Numa carreira de décadas qual ou quais os momentos que mais o marcaram?

Tenho dois episódios, ambos em Coruche. O primeiro aconteceu numa noite em que fazia banco (trabalho 24 horas). Devia ser perto de meia-noite quando bateram à porta com muita força. Era uma grávida já em fase de expulsão. O centro não estava minimamente preparado para receber uma situação destas. De início entrámos em pânico, mas depois, com calma, resolveu-se a situação. Foi o meu primeiro e único parto.

Ajudar a nascer é um bom momento.

Outro acontecimento, esse dramático, foi numa noite de trovoada e chuva torrencial. Um acidente no cruzamento do Monte da Barca provocou dez sinistrados, vários em estado muito grave. Foram evacuados para o Centro de Saúde de Coruche que, com a trovoada, tinha ficado sem electricidade. A auxiliar andava com um petromax a petróleo para eu conseguir distinguir os pacientes em pior estado e fazer-lhes os tratamentos básicos para poderem ser enviados para Santarém.

Sempre quis ser médico?

Mais ou menos. Quando concorri para Medicina, em 1976, fui incentivado pelos meus irmãos mais velhos. Era bom aluno e a entrada no curso de medicina era praticamente garantida. Contudo, nesse ano, implementaram o “numerus clausus” (limite máximo de vagas) para o curso e houve muita gente que queria entrar e não conseguiu. Tinha colocado como segunda opção Arquitectura, mas acabei por entrar em Medicina, na Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa - que naquele tempo se chamava Instituto Biomédico de Lisboa - segui a carreira médica e não estou arrependido.

Onde começou a trabalhar?

Acabei o curso em 1982 e comecei a trabalhar no Hospital de Santarém em 1983. O curso era mais prático que agora. Acabávamos a licenciatura e fazíamos o internato geral durante dois anos nos hospitais distritais. Depois íamos ficando mais anos a adquirir conhecimentos. Fazíamos de tudo enquanto aguardávamos a especialização. Optei por medicina geral e familiar e mais tarde tirei a especialidade de medicina do trabalho. Fiz também uma pós-graduação na área da medicina legal e da Segurança Social, para peritagem médica.

Houve percalços no seu percurso até chegar a coordenador da USF Almeida Garrett?

Depois de tirar a especialidade no Hospital de Santarém percorri, durante um ano, os centros de saúde de Chamusca, Almeirim, Carregueira e Fazendas de Almeirim. Nesse período conheci a minha primeira mulher e casei. Ela era de Mora, no Alentejo e não queria vir para Santarém. Eu também não queria ir para o Alentejo, e optámos por ficar a meio caminho, em Coruche. Fui colocado na extensão de São José da Lamarosa, que era no fim do mundo.

Não é assim tão longe.

Na altura era servida por uma estrada sem saída e só mais tarde passou a ter transportes públicos à porta. Fiquei ali uns 16 anos. Entretanto divorciei-me, voltei a casar e pedi transferência para o Centro de Saúde de Santarém. Foi nessa altura, por volta de 2006, que se criaram as primeiras USF. Pensei com alguns colegas criar uma USF em Santarém. Assim nasceu a USF Almeida Garrett, inicialmente dirigida por Joaquim Marques e dois anos depois por mim.

E até onde gostaria de chegar antes da reforma?

Não tenho mais ambições profissionais. O que gostaria era que a USF continuasse com a mesma dinâmica mesmo depois de eu sair. Os médicos que inicialmente a formaram são mais ou menos da minha idade, uns já se reformaram, outros hão-de reformar-se ao mesmo tempo que eu.

Actualmente tem tempo disponível para estar com a família e para passatempos?

Não prescindo do tempo com a família. Reservo os fins-de-semana para estarmos juntos. É fundamental essa convivência, e são eles próprios a reclamá-la também. Passeamos, convivemos com amigos e aproveitamos a oferta cultural da cidade. Gosto de pintar, mas já não o faço há mais de uma década. É preciso ter disposição, montar o estaminé e também não é fácil. A pintura tem ficado esquecida, mas é uma das coisas a que me quero dedicar na reforma.

Pratica desporto?

Quando era novo joguei na Académica de Santarém, andebol e futebol. Chegámos a campeões distritais no andebol. Mas a minha mãe não gostava que jogasse, os estudos eram prioritários. Não podia perder anos, as condições económicas não permitiam esses devaneios. Agora vou ao ginásio e caminho, sempre que posso.

Além da pintura, quando deixar a medicina vai dedicar-se a quê?

Sou sócio-gerente de uma empresa de prestação de serviços de medicina de trabalho, em Coruche. Dentro dessa área espero ainda ter capacidade para fazer alguma coisa. É um trabalho mais calmo.

Um médico de família que também é respeitado pelas suas qualidades humanas

O apelido Pita Soares é conhecido na cidade de Santarém, mas a origem da família remonta ao norte, à aldeia de Darque, na margem esquerda do rio Lima. O pai era funcionário público e veio descendo pelo país até assentar arraiais em Santarém como secretário do Governador Civil.

Foi nesta cidade que nasceu João Pita Soares, o mais novo de nove irmãos. Não chegou a conhecer o pai, que faleceu quando completou um mês de idade. Foi criado pela mãe, a quem apelida de mulher de armas, e incentivado por ela e pelos irmãos candidatou-se a uma vaga no curso de Medicina, em Lisboa.

Durante o seu percurso como médico passou pelos Centros de Saúde de Chamusca, Almeirim, Carregueira e Fazendas de Almeirim. Até ser colocado em Coruche, na extensão de São José da Lamarosa, onde exerceu durante 16 anos. Ao fim de década e meia regressou a Santarém, passou pelo centro de saúde da cidade e, mais tarde, com um grupo de colegas, criou a Unidade de Saúde Familiar Almeida Garrett que coordena há perto de uma década.

Para Pita Soares muito mudou desde os primeiros tempos como médico, no início dos anos 80. Mudou a própria consulta e o seguimento aos utentes. O que também mudou foi o grau de conhecimento dos pacientes devido à Internet. Uma realidade que tem aspectos positivos mas que pode gerar problemas quando os doentes pensam que podem prescindir dos médicos, dado que a medicina não é uma ciência exacta.

Aos 62 anos João Pita Soares é conhecido, estimado e respeitado por milhares de pessoas que observou e tratou. Muitas delas, por lhe reconhecerem, para além de competência médica, qualidades humanas excepcionais, confiaram-lhe histórias de vida que o enriqueceram enquanto cidadão e médico.

A lentidão do sistema informático é um problema complicado para os médicos de familia

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