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“A pobreza é uma injustiça e temos que impedir que se transmita de pais para filhos”
Isabel Jonet - Personalidade do Ano Nacional

“A pobreza é uma injustiça e temos que impedir que se transmita de pais para filhos”

Isabel Jonet - Personalidade do Ano Nacional

Isabel Jonet é uma das pessoas mais conhecidas de Portugal por ser, há mais de 25 anos, o rosto da luta contra o desperdício. Presidente do Banco Alimentar Contra a Fome e da Federação que integra os 21 bancos alimentares nacionais foi responsável por mostrar que as instituições de solidariedade social têm que ser geridas como empresas e por ter mobilizado os jovens para o voluntariado, actividade que, antes dela, era coisa de velhotes e de senhoras.

Qual a diferença entre caridade e solidariedade?

Sou mais adepta da caridade do que da solidariedade. Para mim a caridade é a solidariedade, mas com amor. A solidariedade é algo que, por exemplo, o Estado faz, e tem mesmo que fazer, que é garantir um nível de vida adequado para todos os cidadãos. Mas isso pode-se fazer transferindo apenas dinheiro para uma conta. A caridade faz com que esse tipo de transferência seja feita com amor. Encerra um potencial de mudança em quem recebe, muito superior à mera transferência solidária.

Trabalhou na área dos seguros. Como se sentiu numa área onde se olham as pessoas como meros clientes?

Gosto imenso do sector segurador. E hoje em dia há muitas seguradoras que têm projectos que têm uma iniciativa de responsabilidade social muito importante. As empresas não têm que ser caridosas. As empresas têm que gerar emprego e gerar riqueza. Para isso têm que ser bem geridas. Têm que ser muito eficientes para poderem garantir o emprego. Para poderem fazer com que os colaboradores que nelas participam estejam felizes e ganhem o seu pão em retorno do seu trabalho.

Essa é a teoria?

O que as empresas têm que ter, digo eu, é uma responsabilidade social. Muitas vezes perdeu-se o sentido da boa gestão com a ganância do lucro.

O Banco Alimentar luta contra o desperdício. O desperdício é gerado, principalmente, pelas empresas e o consumo é incentivado por elas através do marketing e da publicidade. Para reduzir o desperdício não terá que haver uma alteração do comportamento das empresas?

Pela minha formação sei que a maior parte dos problemas se resolve deixando a lei da oferta e da procura actuar, com uma regulação e um acompanhamento eficientes. Há alguns excedentes de produção inevitáveis. As empresas têm que produzir um pouco mais do que aquilo que sabem que vão vender, até para não perderem quota de mercado. Isto gera um excedente que, podemos dizer, é compreensível. Mas o consumidor é dono das suas escolhas. Pode alterar o seu comportamento.

No “Banco de Bens Doados”, que visitámos, havia um lote de artigos trazidos pelos CTT. Eram coisas que tinham sido compradas e pagas por pessoas mas que nunca foram levantadas. O vírus do consumismo é avassalador.

O que é mais escandaloso é que nós, hoje em dia, e passámos isto aos nossos filhos, achamos que os recursos são infindáveis. Os recursos, todos eles, são mais escassos do que poderíamos pensar. Temos que cuidar dos recursos, porque são escassos e porque provocam impactos que ameaçam o nosso planeta. Fui educada a saber que não podia ter tudo aquilo que queria. Não era por uma questão de debilidade económica. Era por uma questão de educação.

Quando vai às compras cumpre escrupulosamente a lista que faz antecipadamente ou leva sempre algo mais?

Se vou a um supermercado grande deixo-me tentar. Se vou aos supermercados pequenos consigo cumprir e comprar apenas aquilo de que preciso. Há muitas tentações... mas sou uma consumidora muito atípica porque compro pouco e não ligo às marcas.

Faz voluntariado desde muito nova. O que a motiva?

Na minha família o voluntariado era-nos proposto, não era imposto. Somos cinco filhos e eu e a minha irmã acima de mim (há outra mais velha) fazíamos voluntariado no Hospital Sant’ Ana, na Parede. Escolhemos passar o nosso tempo com crianças que estavam à espera de ser operadas. Na altura tinha 12 anos e desde então sempre tive uma actividade voluntária complementar à minha vida porque isso me faz mais feliz. Torna-me uma pessoa mais completa.

Quando é abordada na rua por alguém que pede esmola dá?

Depende. Não gosto de dar esmola porque a esmola não muda a vida das pessoas. Habitualmente encaminho-as para uma instituição ou procuro ajudar com algo mais que o dinheiro. Muitas vezes quem pede na rua não precisa de esmola nenhuma.

Há quem peça para comprar coisas que as instituições não dão.

Muitas pessoas pedem pelo vício de pedir. E há algumas que são profissionais da pobreza. Se eu só der na rua, não estou a ajudar essas pessoas. Pelo contrário. Estou a fazer com que ainda fiquem mais tempo numa situação muito precária.

Não desanima quando verifica que muitas pessoas, por mais ajudas que recebam, não conseguem sair da situação em que estão?

Há por vezes uma certa incompreensão, minha até, para situações de pobreza prolongada e de desorientação. É por isso que é preciso ir ao encontro de cada família, de cada pessoa. É preciso, primeiro, chegar a essa pessoa, perceber o que a colocou naquela situação e perceber como é que se pode ajudá-la ou ajudar os filhos dela a sair daquela situação. Temos uma grande transição inter-geracional de pobreza. Pessoas que nascem em famílias pobres e que vão morrer em famílias pobres, se algo não for feito. Isto exige muita educação mas exige uma educação boa e exige acompanhamento porque na pobreza há muita desorientação.

Os níveis de endividamento estão de novo a crescer. Há uma certa euforia consumista. Que avaliação faz do que se está a passar?

Infelizmente vejo, mais próximo do que as pessoas imaginam, uma situação de agravamento da carência das famílias. Nesta altura, por exemplo, há quase uma impossibilidade de se arranjar casas com rendas acessíveis aos salários mínimos. Hoje, mesmo na periferia de Lisboa, não se consegue arranjar uma casa por menos de 600, 700, 800 euros. Uma pessoa que tenha um salário mínimo já ganha menos do que uma renda de casa.

Qual é a atitude actual perante a pobreza?

Sinto que há uma maior atenção das pessoas. É algo que mexe connosco. De alguma forma há maior visibilidade de situações que são muito injustas. E a pobreza em si é uma injustiça. Haver pessoas que não têm onde morar é uma injustiça. Isto requer uma participação colectiva.

Porque é que nada do que o Banco Alimentar recolhe é entregue directamente a pessoas carenciadas?

O nosso objectivo é ir buscar onde sobra e entregar onde falta. Se entregássemos directamente a pessoas carenciadas podíamos estar a prolongar a dependência e o que queremos é promover a autonomia. Essa autonomia só pode ser promovida se houver um trabalho muito próximo, que é muito bem feito em Portugal, pelas instituições de solidariedade social. Não é só dar de comer. É ensinar as pessoas a fazer uma melhor gestão da sua vida e a serem responsáveis pelas suas escolhas que, por vezes, não são as melhores.

Quando é que o banco alimentar deixou de usar sacos de plástico? Foi por razões económicas, ambientais ou por sugestão de algum parceiro?

Foi uma ideia do Banco Alimentar e estava em linha com a campanha “Papel por Alimentos” que foi lançada em 2010, na altura da crise. Como havia menos excedentes da indústria, começámos a pensar como havíamos de completar os cabazes mas colocando ao serviço dessa angariação as instituições que vêm ao banco buscar alimentos. Elas deslocam-se diariamente aos bancos alimentares e vêm com as carrinhas vazias. Começámos a pensar que podíamos pedir que nos trouxessem papel e arranjámos um operador de resíduos que por cada tonelada de papel nos dava cem euros. Foi o aproveitamento de rede montada.

A rede é composta por quantas instituições?

Nesta última campanha os números que divulgámos foram 2.400 instituições, que chegam a 390 mil pessoas. É uma rede de combate à pobreza extraordinária. Este modelo veio provar que é possível gerir uma instituição de solidariedade social como uma empresa e isso é muito gratificante porque habitualmente as próprias instituições de solidariedade social não querem ter gestão e acham que pode haver alguma informalidade ou alguma “balda”, como se diz, que isso não faz mal. Para nós a gestão é aquilo que faz a diferença. E é a boa gestão que faz com que se possa ajudar, mais e melhor, quem precisa.

Para além da implementação de gestão que outra inovação introduziu o Banco Alimentar?

O Banco Alimentar mudou o voluntariado em Portugal. Quando vou hoje a uma escola ou universidade e pergunto quem é que conhece o Banco Alimentar, três quartos da sala diz que conhece. E se pergunto quem já foi voluntário do Banco Alimentar, metade dos jovens responde afirmativamente. Antes não havia voluntariado jovem. O voluntariado era coisa para velhos e senhoras. Visitavam os presos, os doentes, faziam parte das conferências de S. Vicente de Paulo e colaboravam na paróquia. O Banco Alimentar traz uma proposta completamente inovadora no que se refere ao voluntariado. Todos podemos participar. Não é ser bonzinho. É participar.

O nosso Presidente da República, falando de voluntariado, diria, provavelmente, que os voluntários portugueses são os melhores voluntários do mundo. Também diz o mesmo?

Os voluntários portugueses são espectaculares, assim como o povo português é espectacular quando acredita e quando vê que pode gerar mudança. Em todos os países vemos portugueses mobilizados por causas e os portugueses têm esta capacidade de sair deles para se dar aos outros, até às vezes de uma forma que é fora do comum.

O principal apoio é dado pela família onde todos são voluntários

Voluntária não remunerada e a tempo inteiro, Isabel Jonet lidera o Banco Alimentar Contra a Fome há vinte e cinco anos e a Federação que engloba os vinte e um bancos alimentares de Portugal.

O Banco Alimentar é, em primeiro lugar, uma organização de luta contra o desperdício. As campanhas de recolha de alimentos, não perecíveis, nos supermercados são a face mais visível da organização mas representam uma pequena parte do trabalho desenvolvido.

No dia-a-dia o Banco Alimentar recebe contribuições de dadores, empresas e particulares e fornece alimentos a mais de duas mil e quatrocentas instituições, que os fazem chegar a cerca de quatrocentas mil pessoas necessitadas. Para além do trabalho em rede, o Banco Alimentar é responsável pelo surgimento do voluntariado jovem em todo o país.

Com formação em economia Isabel Jonet implementou no Banco Alimentar um modelo de gestão rigoroso, de tipo empresarial, que tem sido replicado a nível internacional. Criou também o Entreajudas, que apoia as instituições em termos de conhecimento e um Banco de Bens Doados para onde são canalizados bens não alimentares.

Em nome da transparência nos processos e na gestão o Banco Alimentar envia anualmente o seu relatório de actividades a todas as empresas e pessoas que fazem doações, seja em dinheiro ou em géneros, para dar conta do que foi feito com o que lhe foi confiado.

O maior e primeiro suporte da actividade de Isabel Jonet é a sua família. Numa lista de parceiros do Banco Alimentar a mesma teria sempre de figurar. É graças a esse apoio que consegue desenvolver a sua actividade sem qualquer remuneração. E todos os elementos da família praticam o voluntariado.

Isabel Jonet nasceu em Lisboa a 16 de Fevereiro de 1960, é casada e tem cinco filhos. Licenciou-se em Economia na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa. Antes de se ter dedicado a tempo inteiro ao voluntariado, trabalhou no sector dos seguros e no Comité Económico e Social das Comunidades Europeias em Bruxelas.

“A pobreza é uma injustiça e temos que impedir que se transmita de pais para filhos”

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