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“Cumpro o dever do cidadão que tem gosto na sua terra e na preservação do rio”
Arlindo Consolado Marques - Personalidade do Ano Cidadania

“Cumpro o dever do cidadão que tem gosto na sua terra e na preservação do rio”

Arlindo Consolado Marques - Personalidade do Ano Cidadania.

O correr da água no rio serve de banda sonora a dois dedos de conversa com o “Guardião do Tejo” na sua terra natal, Ortiga. De quando em vez há um peixe que salta e a expressão no seu rosto aligeira-se. É um sinal de que a poluição está a perder terreno e ajuda a apagar da memória o manto de espuma que tapou o rio há exactamente dois anos. É também sinal de que Espanha permitiu a passagem de mais água para Portugal. É um dia bom, mas outros maus virão, por isso Arlindo Consolado Marques não baixa a guarda e permanece vigilante.

A contratação de Guarda-Rios pelo Ministério do Ambiente vai diminuir o seu trabalho como ambientalista?

De modo algum. O meu trabalho é diferente. Cumpro o dever do cidadão que tem gosto na sua terra e na preservação do rio, mas não consigo estar em todo o lado. Quantos mais houver nesta luta melhor.

Já algum lhe pediu conselhos?

Ainda não, mas gostava que viessem ter comigo. No dia em que iniciaram funções cruzei-me com eles em Abrantes. Tentei meter conversa mas reparei que não havia grande receptividade. Não tinham tempo ou tinham ordens para não falar comigo. Faço questão de falar com eles e gostava de os levar ao sítio onde a poluição se torna mais visível. É um dos sítios vitais para monitorizar a poluição no rio quando o leito baixa.

Há quanto tempo denuncia casos de poluição no rio?

Comecei em finais de 2014 início de 2015. Criámos uma associação chamada SOS Tejo da qual fui presidente. A associação acabou porque alguns elementos tinham interesses próprios e não um verdadeiro interesse pela defesa do rio. Foi dissolvida cerca de um ano depois de ser criada. Depois integrei o movimento ProTejo do qual sou secretário.

Como é que tudo começou?

Andava pelo terreno e fazia filmes. Estava bem localizado. Morando no Entroncamento tinha Abrantes perto, onde o açude é um ponto de referência, e tinha mais acima Ortiga, que é a minha terra. Para baixo de Santarém a poluição não é tão visível. Eu estava num sítio estratégico. Consegui montar uma rede de informadores, pessoas que trabalham nas zonas das barragens, outras que trabalham nas fábricas, cidadãos que andam a pé e que me enviam muitas imagens, pescadores... estamos todos envolvidos na mesma causa.

O papel das redes sociais e da televisão foi decisivo?

Os filmes ajudaram a levar a luta mais longe. Começou pela imprensa local, como O MIRANTE, até conseguirmos saltar para os grandes meios de comunicação, nacionais e internacionais. Chegaram a ligar-me da EuroNews, em Paris. Tive jornalistas espanhóis no terreno a falar comigo, afinal estamos a falar de um rio ibérico.

Lê todos os comentários aos seus posts no Facebook?

Na altura não conseguia, chegava a ter 500 pedidos de amizade por dia. Mas agora já está mais calmo, embora os seguidores continuem e os pedidos de amizade também. As pessoas estão mais sensibilizadas para a questão do ambiente. Fruto também da minha luta. Quando comecei não fazia ideia que teria esta repercussão.

Confessou a O MIRANTE que não lidou muito bem com o mediatismo. Já está mais habituado à ribalta?

Tenho que dizer que ando melhor aqui sentado, sossegado. A atenção da comunicação social foi difícil de gerir, mas consegui aceitar praticamente todos os convites. Houve dias em que nem comi devido aos nervos e à falta de tempo. Foi complicado. Lidar com directos e televisões é difícil para uma pessoa simples como eu. Mas foi uma forma de chegarmos à casa das leis, à Assembleia da República.

Ainda o contactam?

No auge do problema fui chamado para ir falar em universidades e escolas. Há poucos dias participei numa sessão numa escola de Abrantes com um pequeno vídeo que fiz para miúdos do 5º e 6º ano. Todos ficam impressionados quando passo imagens dos peixes mortos ou da espuma na água. São a face visível da poluição e o que mexe mais com as pessoas.

Como gere o seu tempo, trabalhando como guarda prisional em Torres Novas, vivendo no Entroncamento e deslocando-se com frequência a Ortiga…

Gosto de andar pela minha terra. É também uma forma de me abstrair da minha profissão onde passo o dia fechado. Em contacto com o rio e o campo liberto muito do meu stress. Sou um amante da natureza e sempre tive um papel interventivo. Gosto de denunciar o que está mal, seja relacionado com o rio ou não. Ainda há pouco alertei a protecção civil para um pinheiro em risco de cair, resultado da passagem da tempestade Elsa aqui pela região.

Tem noção de quantos quilómetros faz por semana?

Do Entroncamento a Ortiga são cerca de 50 km, ida e volta são 100 km. Mas nem sempre vou e volto no mesmo dia. Por vezes fico em Ortiga onde tenho casa e uma pequena horta e onde ainda vive a minha mãe.

Ainda há tempo para conviver com os amigos?

Tenho tempo para tudo. Apesar de o meu trabalho ser complicado tenho uma escala que me permite ter várias folgas. Por vezes saía do trabalho de noite e seguia as informações que me davam. Em vez de ir descansar vinha a correr para ver se conseguia apanhar a descarga. Tornou-se quase um vício. Queria mostrar o que se passava porque via o ministro do Ambiente a dizer que estava tudo resolvido e eu sabia que não estava. Era também movido pela indignação que sentia ao ouvir essas mentiras.

Já sentiu a sua integridade física ameaçada?

Já senti na pele algumas ameaças, a mais grave foi quando um industrial da região de Torres Novas me tentou abalroar o carro, com o meu filho lá dentro. Por vezes também me coloco a mim próprio em risco. Num dia em que fazia filmagens com um drone, na zona de confluência do Zêzere com o Tejo, não o operei correctamente e ele ficou preso num salgueiro na margem esquerda do Tejo. Passei a ponte de Constância e fui à procura dele, guiado pelas luzes que ainda emitia. Subi a árvore com cerca de 10 metros de altura. Quando cheguei lá acima para agarrar o drone partiu-se o ramo onde apoiava os pés e caí. Nunca me vou esquecer. Senti o vento como se estivesse a saltar de um avião. Caí dentro de água e o drone caiu ao meu lado. Em casa ainda tentei secá-lo com o secador. No voo experimental para ver se o tinha salvo perdi-o de vez, num telhado do Entroncamento.

Tem patrocinadores? O material que usa para as filmagens foi todo adquirido por si?

A única coisa que fizeram por mim, e agradeço muito, foi o “crowdfunding” para me ajudar quando me puseram o processo em que pediam uma indemnização de 250 mil euros. Foi uma altura difícil. Não merecia aquilo, não fiz mal a ninguém. Não fiquei feliz quando soube da desistência, gostava de ter ido a tribunal. Seria um circo mediático e isso assustou a empresa. Um realizador abordou-me e tem acompanhado algumas das minhas acções. Um dia com o patrocínio certo pode haver um documentário.

Quanto já investiu em equipamento?

Por alto, entre máquinas fotográficas, tripé, microfone e drones, à volta de uns cinco mil euros.

Como aprendeu a manobrar um drone?

É fácil, vou lendo as instruções e aprendendo com a experiência. Já deixei cair dois. Houve um que tentei enviar para a Holanda para ser arranjado, mas pediram-me mais dinheiro do que por um novo. Comprei outro. Posso dar-me a este luxo, sou orientado e não tenho vícios, não bebo nem fumo.

Tentativa de silenciamento através de pedido de indemnização milionário

Arlindo Consolado Marques colocou o rio Tejo na agenda de políticos e jornalistas através da denúncia sistemática de descargas poluentes. Cidadão comum preocupado com as questões ambientais, activista ambiental corajoso, nem uma acção em tribunal de uma grande empresa que lhe exigia um quarto de milhão de euros por pretensos danos atentatórios do seu nome o travou.

Ganhou o nome de “Guardião do Tejo” e a solidariedade de milhares de cidadãos que em pouco tempo reuniram dinheiro para ajudar ae para custear a sua defesa, o que acabou por não ser necessário porque quem o tentava calar através do recurso aos tribunais desistiu da acção ao perceber que não lutava contra um homem só.

Arlindo Consolado Marques nasceu em Ortiga, concelho de Mação, a 10 de Outubro de 1965, numa casa com vista para o Tejo. Foi no rio que aprendeu a nadar e a pescar. Conhece a importância que o rio tem e, quando fala dele, faz as palavras de certos ambientalistas de ocasião parecerem ocas.

Arlindo diz que nunca pensou que o que começou como uma revolta pessoal contra a forma como estava a ser tratado o Tejo tomasse as proporções que tomou. E muito menos lhe passou pela cabeça ter, na altura de maior atenção mediática, o adjunto do ministro do Ambiente a telefonar-lhe para saber como estava a poluição no Tejo.

Além dos focos de poluição, Arlindo tem-se batido por outra causa em prol do rio: a necessidade de manter os caudais estáveis para não prejudicar a desova dos peixes. Nesta altura os peixes como a saboga, a lampreia ou o sável começam a subir o rio para desovar, sobretudo na zona acima de Tancos, e se os caudais não são contínuos e a água não é suficiente, não se conseguem reproduzir.

O “Guardião do Tejo” faz questão de denunciar o que vai mal na página de Facebook, onde tem mais de 27 mil seguidores, e no canal do Youtube, onde ultrapassa os 35 mil subscritores e onde já publicou mais de um milhar de vídeos.

“Cumpro o dever do cidadão que tem gosto na sua terra e na preservação do rio”

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