“Se o Tejo continuar como está vai tornar-se uma ribeira malcheirosa”
Manuel Campilho e Miguel Campilho - Personalidade do Ano Excelência
Na sua juventude tomaram banho no Tejo e brincaram com os filhos dos pescadores. Hoje continuam a viver uma relação profunda com o rio que corre junto às terras que cultivam. Manuel e Miguel Campilho são irmãos e administradores da Sociedade Agrícola da Quinta da Lagoalva de Cima. Desde há dois anos estão também unidos num projecto que visa o aproveitamento do Tejo em várias frentes e que já foi apresentado ao poder político.
São promotores do “Projeto Tejo – Aproveitamento Hidráulico de Fins Múltiplos do Tejo e Oeste” apresentado em 2018 e que aponta uma série de soluções para potenciar o rio. Foi um imperativo de consciência face ao estado em que se encontra o rio?
Naturalmente. Começámos a ter problemas de água e resolvemos fazer um estudo que pudesse resolver o problema localmente e, porque não, regionalmente e até alargá-lo a outras regiões, como o Oeste e a Península de Setúbal. É um projecto com valências variadíssimas. A base é o regadio mas subjacente está a preocupação com um rio completamente abandonado.
O projecto nasceu basicamente da necessidade em garantir água para a actividade agrícola.
Uma das questões que importa realçar é que a superfície agrícola útil reduziu-se em 25% e a área regada reduziu-se em 10% nos últimos dez anos. Isto quando nos passa à porta um rio que tem água, embora por vezes pouca. Se nada for feito vai ser cada vez pior. O que pretendemos foi pôr o país a pensar. É uma solução, mas não quer dizer que seja a única.
Acreditam que este projecto vai algum dia sair do papel tendo em conta os valores astronómicos que envolve?
Os valores não nos assustam muito, até porque é um plano “a la longue”, para concretizar em décadas. Somos do tempo das aldeias de pescadores, aqui ao lado, com quem a gente brincava e onde a gente ia pescar. A ideia surge dessa necessidade de garantir água sem recurso a captações subterrâneas. Neste processo há o papel muito importante do engenheiro Jorge Froes, que desenhou o plano que foi apresentado.
Têm encontrado receptividade por parte do Governo?
O Ministério da Agricultura vai lançar agora o concurso público para os primeiros estudos de viabilidade deste projecto. Estamos convencidos que alguma coisa tem que ser feita.
Têm esperança de ainda ver alguma coisa concretizada?
Depende da nossa longevidade (risos)... Mas esperamos pelo menos vê-lo começar.
E por onde é que gostavam que o projecto começasse?
Naturalmente, deverá começar de jusante para montante. Um dos problemas graves que há em Vila Franca de Xira é a intrusão da cunha salina. E o combate a essa situação é uma das valências do projecto. É um assunto sério que deve ser resolvido, mas compete ao Governo decidir. A construção de um primeiro dique rebatível na zona de Azambuja permitiria logo instalar a primeira área de rega. É importante realçar que este projecto não vai inundar área nenhuma, vai é manter o caudal do rio constante durante todo o ano.
A poluição tem sido outro problema no rio.
Gostamos muito do rio Tejo e a preservação da sua biodiversidade é fundamental. Um dos problemas do rio é que deixou de ser vigiado, com a extinção dos guarda-rios, e passou a ser conspurcado com tudo e mais alguma coisa. O que defendemos é um rio tratado, de que as populações possam usufruir. O Tejo não pode continuar como está senão daqui a 40 ou 50 anos vai tornar-se uma ribeira malcheirosa que não serve nada nem ninguém. Este projecto é uma ideia e tudo o que o enriqueça é bem-vindo. Porque sem água não há vida.
O facto de termos actualmente uma ministra da Agricultura, Maria do Céu Albuquerque, oriunda desta região pode facilitar o diálogo?
Ela conhece o projecto bem e mostrou-se entusiasmada com ele.
As grandes cadeias de distribuição são acusadas de esmagar os preços pagos ao produtor. É uma realidade com que se confrontam na vossa sociedade agrícola?
Claro. Um dos problemas que se está a passar em Espanha é esse: os agricultores acusam as grandes superfícies de esmagar preços, não permitindo rendimento aos produtores. Do nosso ponto de vista tem que haver maior abertura das grandes superfícies para uma negociação mais fácil com a produção agrícola.
O associativismo agrícola vive um bom momento?
Achamos que sim. O associativismo agrícola teve mais força a seguir ao 25 de Abril, mas hoje continua a ter um papel importantíssimo em termos de apoio aos pequenos e médios agricultores e tem crescido substancialmente.
Há alguns projectos de emparcelamento agrícola na região. É fundamental ganhar escala para se ser mais competitivo?
Sem dúvida, nomeadamente na zona da Golegã, onde o projecto da Agromais tem tido um papel importante. Somos agricultores também na Golegã e temos beneficiado dessa estratégia.
Demorou muito tempo a concretizar?
Veio no tempo que foi possível. Era pior se não tivesse vindo. Achamos que este projecto para o Tejo e Oeste vai permitir também que o emparcelamento se faça com mais naturalidade.
Os espanhóis têm apostado em força na produção agrícola no nosso país, nomeadamente no olival. É um dado que parece revelador da nossa incapacidade para aproveitar os recursos endógenos.
É uma questão importantíssima e é o que distingue o Projeto Tejo do de Alqueva. O projecto Alqueva transformou uma zona de sequeiro em regadio e os agricultores daquela zona tinham pouco treino na agricultura de regadio. Os espanhóis aproveitaram-se disso e estabeleceram-se ali. O Projeto Tejo é diferente, porque esta é uma zona de regadio e da nossa parte a resposta será imediata. Quando passarmos a superfície regada de 100 mil hectares para 300 mil hectares, que é o que se pretende, não temos dúvidas que a resposta será imediata por parte dos agricultores.
São cada vez mais os trabalhadores estrangeiros nos campos ribatejanos. Como vêem essa realidade?
Não havendo mão-de-obra disponível, as empresas precisam de requisitar mão-de-obra estrangeira.
Já foram denunciadas algumas situações de trabalhadores imigrantes a viverem em condições desumanas.
Obviamente somos críticos dessas situações. Mas essa é uma questão que não se deve colocar só aos empresários agrícolas mas a toda a população portuguesa. As pessoas têm que ser tratadas com dignidade e essas situações devem ser fortemente penalizadas. E há aqui também a questão do controlo por parte das autoridades, que devia ser maior.
É difícil encontrar jovens para trabalhar na agricultura?
É quase impossível encontrar mão-de-obra não especializada. O que arranjamos, embora com alguma dificuldade, são técnicos agrícolas. Temos uma boa ligação com as instituições de ensino superior.
Há uma tendência, sobretudo entre as gerações mais novas e urbanas, para a redução do consumo de carne, nomeadamente de vaca. Como produtores de bovinos estão preocupados com isso?
Não estamos nada preocupados. Portugal é produtor de carne e tem que utilizar os recursos naturais da forma mais inteligente possível. Parece-me que faz parte da alimentação humana comer carne; se os vegans não comem é uma opção deles e nós não temos nada com isso. Vou continuar a comer carne, naturalmente.
Têm também um projecto de turismo rural nesta quinta. Há muita procura?
A nossa experiência nessa área começou com o enoturismo e tem sido um sucesso. Tem crescido todos os anos. Começámos com clientes portugueses e hoje temos muitos clientes estrangeiros. Abarca um conjunto de serviços que vai desde a prova de vinhos a passeios na propriedade. E temos agora um estudo para alargar um pouco mais a oferta, com a hipótese de fazer umas residências.
São também produtores vinícolas. Os vinhos do Tejo têm ganho mercado e prestígio?
Sem dúvida. Os vinhos do Tejo foram os que no último ano mais cresceram em termos de vendas. É uma zona em franco crescimento. E porquê? O Tejo, antes da adesão à União Europeia, produzia uvas para todas as regiões. Depois disso, e com a criação das diferentes regiões, o Tejo ficou circunscrito à sua zona e teve que investir na qualidade, com substituição das castas, modernização das adegas, novos enólogos, nova tecnologia. Os resultados estão a aparecer agora.
Irmanados num projecto visionário para o Tejo
Manuel Campilho e o irmão Miguel Campilho são administradores da Sociedade Agrícola da Quinta da Lagoalva de Cima, uma das mais antigas e emblemáticas do Ribatejo que, graças à sua capacidade de aliar a tradição à inovação tecnológica, está na primeira linha das empresas agrícolas nacionais.
A Quinta da Lagoalva de Cima produz cereais, vinhos e azeites de alta qualidade, tem um sector de serviços, uma coudelaria de onde saem cavalos para lazer, ensino, tauromaquia e atrelagem de competição e desenvolve actividades ligadas ao turismo rural. A pecuária, a floresta e a exploração de cortiça, são outras áreas abrangidas.
Devido às suas preocupações ambientais, os gestores da Lagoalva de Cima, envolveram-se na concretização do Projecto Tejo, que aponta para o restabelecimento da navegabilidade numa grande extensão do rio, o controlo da intrusão salina, o abandono das águas subterrâneas para fins agrícolas, o desenvolvimento do turismo, a recuperação da piscicultura e a produção hidroeléctrica através de mini centrais hídricas.
Manuel e Miguel nasceram em Lisboa mas têm ligações profundas à Quinta da Lagoalva de Cima, situada a cerca de dois quilómetros da vila de Alpiarça, propriedade da família há quase dois séculos, quando passou para a posse do segundo conde de Palmela. Na sua infância e juventude pescaram no Tejo e brincaram com os filhos dos pescadores, ganhando profunda afeição ao rio.
Os dois irmãos vivem na Quinta da Lagoalva de Cima há mais de três décadas, embrenhados na gestão de uma casa agrícola que tem raízes nos alvores da nacionalidade. Manuel Campilho é o presidente da Sociedade Agrícola da Quinta da Lagoalva de Cima, que tem ainda como administradores Miguel Campilho, João Campilho e Manuel de Oliveira.
A gestão dessa casa agrícola tem passado de geração em geração da família e, actualmente, filhos e sobrinhos dos actuais administradores também já trabalham na quinta e são o garante da continuidade de uma história com quase dois séculos.