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Gracinda Varela é um exemplo a cozer pão e a cuidar da horta na aldeia do Semideiro
Gracinda Varela é uma mulher dos sete ofícios que não gosta de estar parada

Gracinda Varela é um exemplo a cozer pão e a cuidar da horta na aldeia do Semideiro

Gracinda Varela, natural do Semideiro, Chamusca, trabalhou quase 30 anos como auxiliar de educação no jardim-de-infância da aldeia onde nasceu. Agora, aos 71 anos, o seu tempo é dedicado a cuidar da horta e a cozer pão que distribui por uma lista particular de amigos. O MIRANTE fez-lhe uma visita numa tarde de sol que anunciava a Primavera.


Gracinda Varela, 71 anos, padeira e agricultora, estava de chapéu na cabeça e enxada na mão quando recebeu o repórter de O MIRANTE ao portão da sua casa no Semideiro, Chamusca. “Ainda bem que apareceu, já merecia uma pausa”, disse, acrescentando que esteve “a plantar batatas desde as oito horas da manhã e são quase horas de almoço”. Sem razões para desconfiar da visita surpresa do jornalista de O MIRANTE, Gracinda Varela convidou-nos a entrar com um alegre “seja bem-vindo”. Daí a pouco estávamos sentados a conversar no chão à sombra de uma parede. A temperatura nessa subio marcava 25 graus e o Semideiro era uma aldeia onde as notícias sobre a pandemia do coronavírus ainda não faziam qualquer mossa na relação entre as pessoas.
Gracinda Varela aposentou-se há cerca de um ano, depois de passar 27 anos a trabalhar no jardim-de-infância do Semideiro, que poderá encerrar brevemente por ter apenas cinco crianças e dar muita despesa à autarquia da Chamusca que tem outras prioridades para o dinheiro dos contribuintes. “Sou do tempo em que cuidávamos de 18 crianças, o que para uma aldeia tão pequena era obra”, afirma, lamentando o destino de um estabelecimento que tem condições como poucos no concelho da Chamusca.
A vida de Gracinda Varela foi quase sempre a trabalhar. Aos nove anos já tinha feito o exame da antiga quarta classe, o que representava para muitos o início de uma vida adulta. Aos 12 anos começou a trabalhar no campo na apanha da fruta e do tomate. “Sempre que havia trabalho, e nesses anos havia muito, lá ia eu contribuir para o sustento da família”, recorda.
Enquanto conversava ia ficando mais à vontade: descalçou-se, tirou a bata e o chapéu e começou a falar dos seus tempos de costureira, já lá vão mais de 40 anos. Como foi sempre uma mulher de decisões abriu na sua própria casa uma oficina de costura. Os clientes compravam os tecidos e Gracinda tentava criar as peças ao gosto de cada um.

Fazer pão é uma obra de arte
A costura deixou de ser o seu ganha-pão a partir do momento em que foi trabalhar para o jardim-de-infância do Semideiro. Como se considera uma mulher dos sete ofícios, e não gosta de estar parada, há cerca de quatro anos decidiu construir no quintal um forno a lenha.
Começou por cozer o pão que levava diariamente para o trabalho. “Só sabia que para cinco quilos de farinha eram precisas duas mãos de sal”, explica. Entretanto as colegas, que lhe “roubavam” pão todos os dias, gostaram tanto que começaram a fazer encomendas.
Quatro anos depois Gracinda Varela soma uma lista de amigos que não lhe dá descanso. Pelo menos duas vezes por semana acorda de madrugada, equipa-se a rigor, e inicia a labuta. O forno leva 20 pães de cada vez, que demoram cerca de 40 minutos a cozer. Para além do pão tradicional ainda se aventura no pão com chouriço, farinheira e alguns bolos.
A satisfação que sente, quando o pão sai do forno, é a mesma que um pintor deve ter depois de terminar um quadro. É assim que se explica depois de lhe perguntarmos se gosta do ofício de padeira. “Cada fornada de pão que sai para o tabuleiro é a minha forma de fazer arte sem sequer me sentir uma artista. Já quanto à horta, onde cuido das árvores de fruto, e vou semeando ervilhas, favas, couves e batatas, não encontro melhor forma de lhe explicar que faço tudo como se esta fosse a minha terapia diária. A melhor forma que sei para matar o tempo que ainda tenho para viver e receber o amor dos meus filhos”, explica, depois de lamentar a morte tão prematura do marido, com apenas 39 anos .
O MIRANTE foi visitar Gracinda Varela para aprender o segredo da massa do seu pão tão elogiado entre vizinhos mas, depois de sabermos, achamos por bem não revelar aqui. Mas deixamos um conselho ao leitor: vá à Internet e aprenda o essencial sobre como preparar a farinha. Depois faça como Gracinda Varela: misture um pouco de inspiração, com o dobro dos condimentos que mais aprecia, e certamente ficará um chefe com as três estrelas Michelin.
Falta contar que depois desta conversa com Gracinda Varela fomos presenteados com um saco de laranjas, apanhadas ali mesmo, à frente do jornalista. De nada valeu protestar por causa do incómodo, nem as desculpas de que o chefe não deixa receber prendas, nem papar almoços, entre outras vantagens gastronómicas. Gracinda Varela foi peremptória na sua decisão: “Meu filho, quanto mais dou aos outros mais tenho para mim. Aceite que é dado de boa vontade”.
Depois de um último adeus, já a entrar no carro, ainda se ouve Gracinda: “adeus, até à próxima, e não se esqueça da nossa terra. Vou voltar para a enxada e acabar o trabalho que deixei a meio”.

Comentário

Semideiro: uma terra de ninguém mas ainda com cinco crianças em idade escolar

Esta reportagem com Gracinda Varela decorreu um dia antes do mundo se virar do avesso, mas já em tempo de coronavírus, embora sem restrições sociais e estado de emergência. Quem for ao Semideiro, e observar a vida de cada um dos seus habitantes, vai perceber que quando o mundo acabar, ali ainda existirá vida; quase todos os habitantes têm formas de sobrevivência que já não se conhecem nas cidades nem em algumas vilas; só quem visita as aldeias do interior da charneca ribatejana, e interage com a população, percebe a riqueza dos costumes e da hospitalidade.
A notícia do fecho das escolas em aldeias como o Semideiro, só porque o número de alunos vai diminuindo, é uma má notícia para as populações e para quem resiste e dá o exemplo de amor à terra.
Os políticos do Governo central e das autarquias deviam ser os primeiros a ficar do lado das suas populações. Enquanto houver no Semideiro uma criança em idade de frequentar o ensino básico a escola deveria ficar aberta. O repórter de O MIRANTE ouviu na aldeia este grito de revolta de quem diz que “não sabe escrever o nome de um carapau” porque no seu tempo não havia vagar para ir à escola; era a trabalhar que se formavam os homens dessa altura”.
Se não investirem nas crianças da aldeia, para que tenham escola à porta de casa, e assim se inverta o ciclo negativo, vão investir em quê? em computadores para os gabinetes dos políticos? pergunta e responde logo de seguida um dos muitos habitantes do Semideiro com quem partilhamos a viagem pela aldeia antes de entrarmos ao portão de Gracinda Varela, por sinal uma resistente e, certamente uma mulher que em nome de muitas crianças que ajudou a educar assinaria por baixo o que ouvimos a outros dos seus conterrâneos.
JAE.

Gracinda Varela é um exemplo a cozer pão e a cuidar da horta na aldeia do Semideiro

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