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Histórias de gente idosa que recebe apoio em casa mas vive feliz
José Cardina com Paula Calafate, Mónica Silva e Susana Duarte, técnicas da Santa Casa da Misericórdia da Golegã

Histórias de gente idosa que recebe apoio em casa mas vive feliz

O apoio domiciliário continua no terreno e as cuidadoras são, em muitos casos, a única companhia diária de alguns que perderam a família ou são mais esquecidos do que deviam. O MIRANTE acompanhou, ao longo de um dia, as equipas de apoio domiciliário a casa de alguns utentes na hora de receberem o café da manhã. Contamos seis pequenas histórias exemplares.

Joaquim Lino e Glória Lino, José Rafael e Vitorino Palhais

“Vale mais não ter pão do que não ter liberdade”

O MIRANTE foi à Chamusca para acompanhar duas funcionárias do Lar da Misericórdia que fazem apoio domiciliário. Luísa Lino e Mila Botas passaram parte da manhã a servir o pequeno-almoço em casa dos utentes e o repórter de O MIRANTE fez-lhes companhia para roubar conversa a alguns dos utentes e perceber como estão a lidar com o isolamento social.


A primeira paragem da manhã foi em casa de José Rafael, 84 anos, que esperava à janela. A presença do jornalista foi um bom pretexto para adiar a primeira refeição por alguns minutos enquanto contou entusiasmado um pouco da sua história. “Vivi sempre uma vida de paixões: pela minha mulher, que morreu há 10 anos, mas também pelo trabalho”. José Rafael foi fotógrafo profissional durante 30 anos na Força Aérea Portuguesa (FAP). “A fotografia era sempre uma forma de comunicar aos mais jovens o gosto por servir na FAP” diz, dando conta da alegria que percebia em alguns soldados quando exibiam a farda.


Apesar de se sentir realizado e feliz com o que a vida lhe proporcionou, recorda com mágoa que antes do 25 de Abril a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) deu-lhe algum trabalho durante uns dias em que o detiveram para interrogatórios. Ainda hoje não sabe do que era acusado.


Depois da reforma dedicou-se à agricultura para cuidar do físico e da mente. Para ele o isolamento social não é um bicho de sete cabeças: divide o tempo entre a leitura e alguns programas de televisão gosta de pensar na vida e tirar conclusões sobre o que fez e o que também poderia ter feito. A velhice não o assusta e considera que o mundo vai ficar melhor depois da pandemia.


Da Rua Mouzinho de Albuquerque, a carrinha da Misericórdia seguiu até à Rua da Fontinha onde moram Glória Lino e Joaquim Lino. Quando abriu a porta contou que estava sentada no quintal a reler o livro que escreveu sobre a sua vida, a que deu o título de ‘Histórias Arrebatadoras’. Questionada sobre a matéria da autobiografia disse ser “a história de uma mulher que trabalhou mais de 40 anos como camponesa e que não guarda uma única boa recordação desses tempos. “Por isso é que resolvi escrever o livro. Para deixar testemunho das minhas raízes aos meus 15 netos e para eles saberem de onde vieram e, quem sabe, para os ajudar a orientarem-se nos caminhos do futuro”, explicou.


O marido é bom cozinheiro mas Glória Lino diz que já não tem estômago para as caldeiradas que ele prepara. Optou pela comida da cozinha da Santa Casa porque assim cuida mais da saúde. Glória Lino sempre foi comunista e, nos tempos da revolução, era conhecida como a Catarina Eufémia da Chamusca, tempos que recorda com saudade. Não tem medo da velhice e muito menos de morrer. Para mostrar que estava em forma mandou um recado aos mais jovens. “Escreve no jornal que penso todos os dias que o valor mais alto da Humanidade é a liberdade e que vale mais não ter pão do que não ter liberdade”, conclui.


Na Rua Dr. Joaquim Duarte Imaginário mora Vitorino Palhais, um homem na casa dos oitenta anos com quem a conversa foi mais curta mas não menos emotiva. No dia da visita sentia-se frágil e com pouca vontade de conversar. Ainda assim houve tempo para recordar os longos anos em que liderou centenas de tipógrafos em “A Persistente”, na Chamusca; ou os tempos de militância no MDP/CDE, uma das mais importantes organizações políticas do período antes do 25 de Abril. “O preço duma vida dedicada ao trabalho e ao activismo político já o paguei: não vi crescer os meus filhos como gostava”, desabafou sem evitar as lágrimas e a voz embargada.


Não houve tempo para falarmos de pandemia nem sequer de isolamento social porque era a conversa mais dispensável na altura. Mas o jornalista levou para a redacção o recado mais importante desta visita: “Diga lá aos seus colegas que também faço parte da história de O MIRANTE. Estive presente e ajudei na impressão da primeira edição de O MIRANTE no dia 16 de Novembro de 1987”, ainda em lágrimas mas aparentemente com mais energia do que no início da conversa.

Mila Botas e Luísa Lino trabalham na Misericórdia da Chamusca há mais de 30 anos

Cuidadoras profissionais e “familiares” por empréstimo

Mila Botas e Luísa Lino trabalham no lar da Misericórdia da Chamusca há mais de 30 anos. Contam a O MIRANTE que quando foram trabalhar para a instituição as pessoas acharam estranho pelo facto de serem tão jovens e quererem “cuidar de velhos”. Apesar dos receios iniciais adaptaram-se ao trabalho e reconhecem que todos os dias vão criando uma relação especial com os utentes ao ponto de ouvirem confissões como se fossem da família. “E é assim que nos sentimos”, desabafam em conversa com O MIRANTE entre visitas numa manhã de quinta-feira.


Andar no terreno em tempo de pandemia e contactar com um grupo de risco é um acto de coragem. “Não podemos abandoná-los, agora mais do que nunca”, explicam. Trabalhar com idosos aviva ainda mais a nossa realidade; um dia vamos todos envelhecer e ficar descartáveis como está a acontecer infelizmente por esse mundo fora”, desabafam mas sem tristeza e conscientes de que cumprem a sua missão.


Na Santa Casa da Misericórdia da Golegã os idosos estão entregues a Paula Calafate, Susana Duarte e Mónica Silva. O dia é passado entre fazer higienes, entregar roupa, refeições e limpezas. Apesar da dureza do trabalho não viram a cara às dificuldades nem às exigências de uma profissão que pede meças fisica e espiritualmente.


A morte de um idoso é sempre muito sentida e obriga a fazer um luto às vezes muito prolongado. Mónica Silva lembra-se todos os dias de uma senhora que a marcou de uma maneira muito especial. “A D. Maria transmitia-me paz e ensinava-me a lidar com os meus problemas. É um caso de uma pessoa que recebia mas também sabia dar porque tinha uma boa formação humana”, afirma com saudade.

Maria Irene e Joaquim Clara

Na Golegã a solidão combate-se com boa disposição

O lar da Misericórdia da Golegã tem cerca de 300 utentes. Em regime de apoio domiciliário são perto de meia centena apoiados por duas equipas de três funcionárias. Maria Irene e Joaquim Clara, 74 e 76 anos, respectivamente, estão casados há mais de 50 anos e aceitaram falar com o repórter de O MIRANTE à janela de sua casa na “Travessa Sem Gente”. Este tempo de pandemia tornou os dias ainda mais solitários. Para além das caminhadas diárias para “mexerem o esqueleto”, Maria Irene entretém-se a fazer rendas e bordados enquanto Joaquim Clara enfeita a tertúlia com peças em madeira feitas à mão.


O casal, natural da Golegã, foi ainda jovem para Lisboa à procura de uma vida melhor. Joaquim Clara fez parte da corporação dos Bombeiros Sapadores de Lisboa e Maria Irene trabalhou como auxiliar de cozinha na Emissora Nacional (EN). No dia 25 de Abril de 1974 estava a preparar um cozido à portuguesa que ainda é um dos seus pratos favoritos porque a faz recordar o dia em que começou a viver sem medo. O segredo para estarem casados há tanto tempo resulta de muito amor e de uma grande dose de paciência, afirmam em jeito de brincadeira.


O dia de trabalho estava perto do fim quando fomos levar o Jornal do Benfica a casa de José Cardina. Aceitou o convite para a conversa mesmo depois de saber do sportinguismo do jornalista. Tem 87 anos e um sentido de humor refinado. “Tenho o prazer de já ter vivido a tua idade e tu nem imaginas onde estarás quando tiveres a minha”, afirmou, com um sorriso. As muletas que usa são só para equilibrar as pernas já que o seu estado de espírito se mantém jovem e sem mazelas.


Foi emigrante em Angola durante 15 anos, onde trabalhou como condutor de máquinas de terraplanagem. No regresso à Golegã dedicou cerca de duas décadas a conduzir o autocarro escolar. Nunca foi um homem de sonhos e muito menos de sonhar em ficar rico, mas confessa que “o dinheiro nunca me chegou; assim que ganhava gastava”.


José Cardina diz que nunca tem dias tristes e só fica mais em baixo quando está muito tempo sem ver os filhos. Nem a morte recente da mulher lhe rouba a alegria de viver. Os dias são passados entre o desfiar das memórias e algumas conversas; reconhece que teve uma vida preenchida, que cometeu muitos erros mas que não está arrependido de nada. “Sei que sempre fui um homem e nunca tive pretensões de chegar a santo”, concluiu com o mesmo espírito brincalhão com que iniciou a conversa.

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