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Manta de Minde está a regressar após anos de abandono
Roberto Ferreira e Eulália Leitão são dois dos três actuais tecedores de mantas. Manuel Micaelo e Cândido Simões recordam os tempos em que vendiam de feira em feira

Manta de Minde está a regressar após anos de abandono

A manta de Minde reergueu-se pelas mãos do Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro, onde existem três teares. Do ateliê de tecelagem saem mantas como as de antigamente: de lã portuguesa, tingida com as receitas originais e mantendo os padrões de outrora.

Forte, bela e garrida. Há quem lhe chame uma aguarela em lã e, curiosamente, a manta de Minde está intrinsecamente ligada ao aguarelista Alfredo Roque Gameiro. Não que haja conhecimento que o artista tenha alguma vez tecido uma, mas porque o CAORG - Centro de Artes e Ofícios Roque Gameiro é o grande responsável pela dinamização deste património.
A tentativa de recuperação das mantas de Minde remonta aos anos 80 do século passado, mas só em 2008 o ateliê de tecelagem conseguiu colocar o tear a funcionar. “Começámos com o tear sob críticas dos mindericos. Não se metam nisso, isso não dá nada. As mantas ficam muito caras. Hoje é o orgulho de Minde”, conta Maria Alzira Roque Gameiro, museóloga e presidente do conselho director do CAORG. Apesar de ser o rosto conhecido deste centro de artes, Maria Alzira não gosta de dar a cara e fugiu a qualquer tentativa de fotografia de O MIRANTE no encontro de fim de tarde no ateliê de tecelagem.
Roberto Ferreira e Eulália Leitão são dois dos três tecedores actuais de mantas de Minde. Roberto é motorista, transporta as crianças para as actividades do CAORG. Nas horas que não tem crianças, tece. Eulália também dedicou à tecelagem as horas vagas. Eulália, 34 anos, faz manta há cerca de cinco meses. Roberto, 37 anos, já tece desde 2013. Topógrafo de profissão fez várias obras em Portugal desde estradas a barragens, mas a crise de 2008 deixou-o sem trabalho. Foi então que surgiu a oportunidade do tear. Aprendeu o ofício com o sogro e já ensinou às duas colegas do “atazanar das menízias”, ateliê de tecelagem em minderico. O movimento coordenado de pés e mãos já é automático e raramente há enganos. Mas quando os há fazem parte do carácter da manta de Minde, da sua autenticidade.
Uma manta de Minde conhece-se pela textura, pelo toque e pelo cheiro. O desenho é fácil de imitar, mas o toque é sempre diferente, adianta Alzira acrescentando que os padrões são os de sempre. Aqueles que foram premiados na Exposição Universal de Bruxelas, em 1958. O seu tio, responsável pela ida à exposição, guardou todas as amostras de desenho, que estão agora expostas no ateliê de tecelagem. Guardou também receitas da tinturaria e muitas peças relacionadas com o fabrico e outras já feitas como a saia e o colete que representou Portugal na Bélgica.
As mantas que saem dos teares do ateliê de tecelagem são feitas com lã que vem da Guarda e é tingida em Minde com as receitas ancestrais. O intuito não é comercial mas manter a tradição. “No mundo em que vivemos em que tudo é igual, aquilo que marca é o que é diferente, o que nos identifica. A manta é uma moeda de Minde, é o que está cunhado nessa moeda, o que é nosso, como a nossa língua”, adianta Alzira acrescentando ainda que este ofício é também um dever de gratidão para com aqueles que sofreram, que passaram uma vida de quase miséria a trabalhar nas feiras de fardos de lã ou de mantas às costas. “Se hoje temos aqui uma coisa tão bonita a eles o devemos”, remata. A manta é hoje um produto de luxo que tem forçosamente que ficar caro. Uma janota custa à volta de 300 euros. Por isso o ateliê apostou também em peças mais pequenas como individuais e carteiras.
Alzira está confiante que a manta de Minde não é uma arte condenada a desaparecer. Vai passar, assim as pessoas queiram afirmar a sua identidade. “Seremos burros se não a continuarmos”.

Vidas inteiras de mantas às costas
Manuel Micaelo e Cândido Simões, de 95 e 90 anos, respectivamente, juntaram-se à conversa e dizem-se os homens mais velhos de Minde. As suas histórias de vida confundem-se com a história da própria manta, no início do século XX. Cândido começou a fazer canelas com 10 anos. Andava na escola e depois ajudava os pais. Aos 12 saiu da escola e começou a trabalhar nas mantas “a sério”. Fazia canelas, dobava a lã, cardava as mantas. Trabalhava para o pai que tinha teares. Mais tarde teve uma fábrica de malhas. “Adoeci dos pulmões e foi a minha sorte, tive que deixar as mantas para ir para as malhas. Cheguei a ter uma fábrica com 115 trabalhadores e mais 20 colaboradores externos. A Jobasil (João Batista Simões e Filhos, Lda.).
Do tempo das mantas não guarda saudades. Era uma vida pobre. Seguia para as feiras à boleia de Roque Gameiro, um dos poucos com carro, e pagava o frete. “Lembro-me bem do primeiro carro que tive, em 1952. Mas já andava nas malhas, já tinha deixado as mantas”, lembra. Antes disso fez mercados de burro, no Entroncamento. Para feiras mais longínquas como a de Moura, no Alentejo, seguia de comboio ou de camioneta. “Cheguei a fazer venda em Moura com mais 100 homens. Iam todos de Minde, só uns três ou quatro eram de Mira de Aire”.
Cândido lembra também os tempos em que calcorreava as ruas de Lisboa com oito mantas ao ombro, com mais de dois quilos cada. Manuel Micaelo teve um percurso semelhante. Começou com 13 anos, quando saiu da escola e foi ajudar o pai. Inicialmente compravam as mantas e iam vender, só mais tarde tiveram teares. “Ia de carroça para Torres Vedras onde tínhamos um armazém arrendado. A viagem demorava dois dias, apanhávamos frio, chuva, vento, calor, de tudo. Ficávamos por lá uma semana a fazer negócio”, conta. Quando a família adquiriu teares fez sociedade com o pai. O sogro era o dono do tear que agora está no ateliê de tecelagem. Foi Manuel que o herdou e ofereceu ao CAORG. “É um prazer vê-lo a ser usado”, confessa emocionado olhando para o fundo da sala onde a presença imponente da estrutura de madeira e ferro se faz notar.

Candidata às 7 Maravilhas da Cultura Popular

A Manta de Minde foi candidata às 7 Maravilhas da Cultura Popular, onde foi apadrinhada pelo minderico Tiago Guedes, director artístico do Teatro Municipal do Porto. Foi finalista mas perdeu para o picareto de Ortiga. O concurso televisivo trouxe visibilidade e notou-se uma maior procura no Facebook. Algumas pessoas perguntam se vendem a retalho, mas não é esse o interesse de Alzira. “Temos duas lojas de turismo que nos compram. Uma em Sesimbra, outra em Lisboa e encomendas por exemplo para fornecer hotéis, mas não podemos assumir grandes compromissos porque a produção é limitada”.

Da manta preta à janota

Até 1930 as lãs não eram tingidas, eram da cor natural da lã, castanho e branco. Em Minde essas mantas ganharam a designação de “mantas pretas”. Depois de se introduzir a tinturaria, as mantas mais coloridas dividem-se em parda, janota, mescla e sombreada. Na manta parda o fundo pardo é enriquecido com riscas coloridas; na janota há barras trabalhadas intercaladas com barras lisas; na mescla há uma mistura de cores e algumas barras trabalhadas; a sombreada é feita com duas ou três cores esbatidas em vários tons.

Como surgiram as Mantas de Minde

Minde é uma das regiões mais pobres do centro de Portugal. Onde a água, mesmo quando chove muito, se infiltra e desaparece num ápice. Não há neste maciço estremenho nenhum rio nem nenhum ribeiro que corra à superfície durante o ano inteiro. As populações estão rodeadas de pedra e habituaram-se, durante séculos, a viver do pouco que a agricultura e o pastoreio de gado miúdo, como cabras e ovelhas, lhes fornecia.
“Isto foi a vida dos mindericos durante séculos”, conta-nos Maria Alzira. Aproveitavam a lã das ovelhas que era lavada e seca de Inverno na lagoa do polje, o mar de Minde, nos dias de sol. Depois era fiada e tingida. Assim conseguiam a matéria-prima para fabricar as mantas. Quando começou a haver procura, a lã de Minde, proveniente de “meia dúzia de ovelhas”, não chegava. Os mindericos começam então a procurar lã noutras paragens. Vão-se deslocando mais para o sul até dominarem todo o Alentejo. Seguem de Minde carregados de mantas e regressam carregados de fardos de lã. A produção aumenta e chega ao século XX em força.
As mantas são a ajuda no rendimento parco das famílias e os teares são comuns em quase todas as casas. Uns vivem dos teares porque são os donos, outros porque trabalham nos teares dos outros. Assim se chega aos anos 40. Entretanto começa a guerra e têm início as restrições na importação das lãs. É um bem que começa a ser procurado fora. As restrições chegam também aos alvarás para montar teares. Em Minde começa uma outra actividade também relacionada com lãs: o fabrico de tecidos de lã para vestidos e camisolas. Segundo Maria Alzira, reza a história que foi o desmantelar de uma fábrica do Grandela Aires, em Lisboa, que trouxe para Minde essas máquinas velhas. Proliferam as malhas e as mantas ficam em segundo plano, de tal maneira que nos anos 60 já não há teares.
Nos anos 80 apenas dois indivíduos ainda teciam, com o resto dos fios que tinham em casa. Com o passar dos anos acabaram as mantas e os teares. Alguns teares carunchosos foram para o lixo, outros para lenha. Um ou outro foi vendido. Restaram três ou quatro que foram pedidos pelo CAORG e a partir dos quais se conseguiu construir um funcional. A partir desse replicaram outros dois. Actualmente há três teares a funcionar no ateliê de tecelagem do CAORG.

Manta de Minde está a regressar após anos de abandono

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