Humberto Machado: um vadio de 90 anos que é actor profissional no Fatias de Cá
Humberto Machado vai completar 91 anos no dia 28 de Dezembro. Nasceu e vive no Arripiado, concelho da Chamusca. Afirma que sempre foi vadio e que nunca gostou de estudar. Faltava às aulas para ir ler livros de escritores como Dostoiesky ou Tolstói, entre outros. Ainda assim terminou o curso profissional de desenhador, profissão que exerceu, em Lisboa, até ao 25 de Abril de 1974. Depois disso dedicou-se em exclusivo à política, tendo sido membro do Partido Revolucionário do Proletariado (PRP). Deixou de votar há alguns anos porque diz que “votar é como mijar contra o vento”. Em 1997 iniciou o seu percurso no grupo de teatro Fatias de Cá. Fez parte do elenco de mais de 30 peças, nomeadamente d’Annunzio em “T de Lempicka” ou Esgalgado em “Sonho de uma Noite de Verão”, que ainda se encontra em cena. Em entrevista a O MIRANTE, realizada no Cais do Arripiado, afirma que não tem medo da morte mas sim de se tornar descartável para a sociedade. Aquilo que mais o entristece é ver o estado a que a sua aldeia chegou.
A população do Arripiado viveu em pânico por causa de uma onda de assaltos. Como lidou com a situação?
Foi um tormento. Somos quase todos velhos e mesmo assim conseguiram tirar-nos o sono. Como é possível as autoridades e a autarquia deixarem um rapaz desassossegar uma aldeia inteira durante um ano inteiro? Há qualquer coisa que não está a funcionar bem.
Como estão as coisas agora?
Desde que ele foi preso nunca mais houve roubo nenhum. Agora até dá para deixar os vidros do carro abertos. Tinham-nos poupado muitas chatices e preocupações se as autoridades tivessem cumprido o seu papel.
Gosta de viver no Arripiado?
Gosto muito. Nasci na casa onde ainda moro. Na altura nem toda a gente podia deslocar-se aos hospitais e foi a dona Custódia, uma vizinha, que me ajudou a vir ao mundo. A vida era muito limitada aos recursos que existiam nas aldeias. Não havia dinheiro mas havia comida porque as pessoas cultivavam os seus próprios alimentos. Hoje em dia não há nem uma coisa nem outra.
É uma aldeia esquecida?
Neste momento o Arripiado é uma aldeia fora do mapa. Toda a obra que aqui foi realizada é bonita de se ver mas foi construída de forma desequilibrada. O cais ribeirinho está ao abandono. Hoje em dia não se vê um barco no cais. Construíram um jardim infantil, uma escola primária e um parque infantil, só que esqueceram-se que são precisas crianças para os frequentar. Não há incentivos para as famílias viverem no Arripiado.
Como é o dia de um homem com 90 anos?
Ando de volta da horta. Levanto-me tarde porque o corpo anda a pedir mais cama. Depois, a exemplo de todos os velhos reformados, tento ocupar o dia para não ter tempos mortos. Adorava passar às tardes a jogar as cartas com a rapaziada mas até isso acabou.
Porquê?
Zangaram-se comigo. Dei conta que andavam a fazer sinais e habilidades. Não gosto de batoteiros. Decidi não jogar mais.
Ficou mais sozinho ainda?
A solidão faz parte da velhice. Não sofro tanto porque meto-me com as pessoas e gosto de socializar. O teatro deu-me essa capacidade. Se não fosse o teatro não estava aqui. Ser actor obriga-me a procurar o contacto com outras pessoas e vivências para não me tornar um tipo pobre de espírito.
Quando surge o teatro na sua vida?
Sempre gostei muito de teatro. Na adolescência havia um senhor aqui do Arripiado, chamado Sebastião Gil, que ia buscar umas peças a Lisboa e ensaiava-as para nós representarmos. Foi o meu primeiro contacto com a representação. Depois, já adulto, fui trabalhar para Lisboa como desenhador e comecei a assistir a peças de teatro quase todas as semanas, durante 36 anos.
Sem subir ao palco?
Só comecei a aventurar-me na representação quando me reformei, aos 67 anos. O Carlos Carvalheiro, director do grupo de teatro Fatias de Cá, era meu conhecido desde há muitos anos. Um dia desafiou-me para estudar uma peça e representá-la, e eu aceitei.
Como correu?
Correu bem, mas não foi fácil. Leio muito mal. Sou melhor a conversar. Mas a minha vontade e determinação interessou ao Carlos. Acabei por assumir o papel e posso afirmar que correu melhor do que estava à espera. A mim e a todas as pessoas do grupo.
Como se chamava a peça?
Tanagashima. Há cerca de três anos voltámos a apresentá-la ao público no Arripiado e em Tancos. A peça conta a história dos portugueses que estavam espalhados por todo o Oriente no século XVI.
Foi a que mais o marcou?
A peça que mais me marcou foi o T de Lempicka. Estive mais de nove anos em cena com ela. Representava o papel de um homem, d’Annunzio, que tinha de seduzir a Tamara de Lempicka. Já estava um bocado velho para seduzir alguém, por isso foi um desafio engraçado. Mas não é só por isso que ela ficou na memória.
Conte lá.
A peça era interpretada por dez actores que tinham de estar sozinhos em palco só com o público. Como foi a segunda vez que fiz teatro, fiquei tão nervoso que quando cheguei ao fim da minha fala, eu, que nunca transpiro, tinha a roupa empapada de suor. Apanhei um susto tão grande que nem me lembro dos momentos da minha actuação.
O teatro é uma terapia?
Sem dúvida. Faz parte da minha estabilidade emocional. A vida não é só correr atrás do dinheiro. Também é correr atrás das alegrias e das tristezas, e isso só se consegue vivendo experiências.
Um actor tem duas personalidades?
Às vezes sim. É inevitável. Mas tento combater essa situação. Para desempenhar bem um papel é fundamental existir um distanciamento entre a pessoa e o actor.
Como são as relações nos camarins?
Muito boas. Há miúdos adolescentes que me tratam por tu. Há muita camaradagem e companheirismo. Não há idades nem estratos sociais. Estamos ali pela paixão de representar.
Já se apaixonou por alguém do teatro?
Ainda não mas nunca se sabe (risos). Temos muito respeito uns pelos outros. Muitas vezes ficamos nus em frente de todos e não vem mal nenhum ao mundo. Somos profissionais no que fazemos. A parte mais bonita de representar é quando perdemos a vergonha, pelo menos quando estamos a representar. Por isso é que é uma terapia.
Entende-se bem com o encenador?
Discutimos muitas vezes mas a palavra final é sempre do Carlos Carvalheiro. Digo-lhe muitas vezes que ele é igual ao Kadafi, o ditador líbio: quem manda no grupo de teatro são as pessoas mas quem manda nas pessoas é ele (risos).
O Fatias de Cá é uma segunda casa?
Somos um grupo muito homogéneo, equilibrado e diferente de muitos grupos que andam por aí. Por exemplo, oferecemos comida no final de cada espectáculo. Comer é um acto social, é uma forma de proporcionar conversa e de conhecer pessoas. Este tipo de ambiente faz-me sentir bem.
Nunca ganhou dinheiro como actor?
Nem eu nem ninguém no Fatias de Cá. Apesar de gozar do estatuto de actor profissional e de receber um subsídio por isso, todo o dinheiro que recebo é doado ao grupo. A minha reforma, apesar de ser miseravelmente baixa, chega-me para viver satisfeito e ir almoçar ao restaurante quase todos os dias.
Ainda se sente em forma apesar dos 90 anos?
Tenho as mesmas preocupações de antigamente. Agora torna-se mais difícil desempenhar algumas tarefas. Para representar um papel é preciso uma ginástica muito grande, a nível físico e mental. Temos de dormir com a personagem todos os dias e isso torna-se muito desgastante.
Está preparado para tudo?
Não penso nisso. Assim como também não penso na morte porque é a única coisa certa que eu tenho na vida. O que me preocupa e me entristece é o facto de poder vir a tornar-me descartável aos olhos da sociedade. Infelizmente quando deixamos de ser activos deixamos de ser respeitados. Por isso é que ainda faço teatro: para sentir que ainda pertenço a este mundo.