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João Lino é o último dos barbeiros tradicionais da Chamusca
Jorge Anita, coveiro do cemitério da Chamusca, é um dos clientes habituais na barbearia de João Lino

João Lino é o último dos barbeiros tradicionais da Chamusca

João Lino vai completar 80 anos em Março do próximo ano. Há 58 anos abriu uma barbearia na Chamusca que continua a receber dezenas de clientes por semana. A energia não é a mesma de outros tempos, no entanto, afirma que vai continuar a trabalhar até que a morte lhe estrague os planos. O MIRANTE foi desfazer a barba e cortar o cabelo à barbearia do senhor Lino, onde se fala muito de mulheres e quase nada de política.



O olhar desconfiado de João Lino quando O MIRANTE bateu à porta da sua barbearia, na Chamusca, antecipava as palavras que se seguiram: “Estou cheio até ao final do dia. Tem de voltar mais tarde”. Depois de perceber o motivo da inesperada visita, convidou o repórter a entrar e, em jeito de brincadeira, ofereceu-lhe duas edições de O MIRANTE para se entreter enquanto aguardava pela sua atenção.
Aos 79 anos, João Lino é o último dos antigos barbeiros da Chamusca. O Álvaro “Chané” e o Fernando “Barbeiro” já morreram mas nunca foram seus concorrentes. Cada um tinha o seu estilo e as diferenças respeitavam-se, diz. As portas da barbearia Lino, situada na Rua Direita de São Pedro, abriram há 58 anos. Começou como aprendiz de outros barbeiros tradicionais, como o senhor Cegonho e o senhor Nogueira, mas rapidamente assumiu o posto de patrão assim que reprovou na inspecção militar por ser magro demais.
A conversa com O MIRANTE decorreu enquanto cortava o cabelo a um cliente, numa quarta-feira à tarde. Na velha cadeira reclinada estava Jorge Anita, o coveiro do cemitério da Chamusca. “Nunca o deixei desfazer-me a barba. Eu é que ando há anos à espera de fazer a dele”, brinca. A morte não é um assunto tabu naquele estabelecimento. Pelo contrário, brinca-se com ela. “Quero morrer depois do almoço ou do jantar para morrer de barriga cheia”, afirma João Lino. O coveiro diz ainda que tem o posto de trabalho em risco, uma vez que agora toda a gente quer ser cremada.
A troca de ideias é interrompida pelo som alto da televisão que repetia o golo de Cristiano Ronaldo contra a Suécia, conseguido na véspera. A decoração do espaço é feita de quadros com pinturas taurinas. Numa gaiola um canário cantava. Apesar de ser mobília da casa há oito anos João Lino ainda não lhe atribui um nome oficial. No entanto, como nunca lhe arranjou uma fêmea para acasalar, apelida-o, em jeito de brincadeira, de “Semfoder”.
Com a máquina eléctrica numa das mãos e a navalha na outra, vai arrastando os pés à volta da velha cadeira. A culpa é das artroses e das dores que nos últimos anos se intensificaram. Ainda assim, e apesar de reformado, quer continuar a trabalhar até que a morte lhe estrague os planos. Começa o serviço às oito da manhã e só apaga a luz às oito da noite. Na barbearia do senhor Lino barba e cabelo são sete euros, só cabelo cinco e só barba dois euros. “Como vê não ando aqui para ganhar dinheiro mas sim para ter o espírito ocupado”, garante.
Ouve-se o som de um telemóvel. Era a mulher, Florinda Lino. Está agarrada ao sofá à espera de uma operação ao joelho há mais de um ano. Várias vezes, ao longo do dia, João Lino abandona o local de trabalho para ir ajudar a mulher. Desta vez foi para pôr uma panela ao lume. “Porra para isto”, solta no regresso.
Num estabelecimento destinado a homens de barba rija só entra uma mulher: chama-se Célia, é a senhoria da casa, e ali corta o cabelo há mais de 30 anos. É principalmente sobre mulheres que se conversa dentro da barbearia. Noutros tempos tinha disponíveis para os seus clientes revistas pornográficas e calendários com raparigas em poses provocantes, mas agora, diz, tudo isso está à distância de um toque no ecrã de um telemóvel. Há, no entanto, um tema que não merece comentários dentro daquelas quatro paredes: “Aqui não se fala de política nem de políticos. São todos tão maus que dar-lhes importância é uma perda de tempo”, afirma.
As despedidas deram-se cerca de uma hora depois das boas-vindas. Entretanto chegou mais um cliente que esperou pela desinfecção correcta da velha cadeira para se poder sentar. Não há pandemia que roube a vontade de trabalhar a João Lino. Na barbearia do senhor Lino ainda se respira muita vida e boa disposição.

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