A comunicação é o melhor instrumento para evitar o suicídio
70 a 80% da comunicação entre seres humanos é não-verbal. Com estes dados facilmente se percebe que é com uma interacção próxima e física que se pode comunicar mais eficazmente e assim ajudar a lutar contra o suicídio. Uma conversa com o psiquiatra João Protásio Fialho a propósito do Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. Uma entrevista onde se explica porque continua a ser tabu falar de suicídio e de morte e se aborda este acto que contraria um dos instintos animais mais fortes: a sobrevivência.
A pandemia tem sido muitas vezes vista como sinónimo de tristeza, isolamento, medo, angústia… Veio agravar a taxa de suicídio?
Penso que sim, é essa a impressão que se tem apesar de não estarem ainda disponíveis estatísticas deste ano. É algo que só se poderá avaliar com rigor no próximo ano. Claro que o isolamento, particularmente de idosos nos lares e outras instituições, sem visitas e sem contacto de qualidade desde há sete meses, torna um aumento dos sintomas depressivos e ansiosos quase inevitável.
É difícil combater o sentimento de desistência?
Podemos facilmente imaginar que um idoso, particularmente se estiver acamado ou com limitações grandes de movimento, que está dias, semanas, meses, sem visitas, o dia inteiro a ver noticiários sucessivos e sem expectativas de alteração da presente situação; possa assumir uma atitude de desistência e com quadros psiquiátricos mais ou menos graves. A saúde mental é muitas vezes responsável, de forma silenciosa, pelo agravamento de doenças físicas crónicas.
Se excluirmos a pandemia e os seus efeitos na saúde mental, quais os principais factores de risco desencadeadores do suicídio?
São naturalmente muitos e variados, mas o denominador comum a quase todos é o intenso sofrimento psíquico e/ou físico, para o qual se perdeu a esperança de alívio. A solidão, a maior idade, a ocorrência de quadros psiquiátricos graves, particularmente depressivos e de angústia intensa, tornam a sua ocorrência mais provável.
Há um género em que seja mais frequente?
É mais frequente entre os homens, embora as mulheres possam fazer mais tentativas. É raro na infância, embora exista e seja muitas vezes subestimado, tornando-se progressivamente mais frequente com o aumento da idade, nas mulheres por volta da sexta década de vida e nos homens continua a aumentar até à oitava e nona década. A residência em zonas rurais mais isoladas, a fragilidade socioeconómica, são ainda, sem surpresa, também factores de risco. Por último, provavelmente existe um factor genético importante em determinadas áreas geográficas.
Falar em suicídio ainda é tabu. Como se pode combater isso?
É de certa forma tabu tal como é vulgarmente tabu a morte. Na nossa sociedade, ainda com uma cultura de influência católica e que reprova fortemente o suicídio, a par de uma cultura moderna que convive muito mal e frequentemente ignora a morte, é natural que o tema do suicídio seja um assunto incómodo. A acrescer a isso, os amigos e familiares sentem frequentemente alguma culpa o que ainda torna o assunto mais incómodo.
Os homens tendencialmente suicidam-se sem ter dado qualquer sinal. As mulheres exprimem-se, muitas vezes, antes do acto. Porquê esta diferença de comportamentos?
Provavelmente porque, pelo menos no nosso ambiente cultural e social, as mulheres comunicam muito mais facilmente as suas emoções e pensamentos do que os homens, que tendem a verbalizar e a comunicar muito menos o seu sofrimento.
Os homens têm mais dificuldade em mostrar as suas fraquezas e fragilidades?
Pelas razões antes referidas é natural que sim, até mesmo porque socialmente é essa a expectativa em relação ao comportamento masculino.
As ameaças devem ser levadas a sério?
Sempre. Quer porque têm sempre um potencial de concretização, quer porque funcionam habitualmente como um pedido de ajuda.
Como se consegue identificar os sinais, por exemplo nas redes sociais?
Através da Internet é mais difícil avaliar uma alteração de comportamento ou uma comunicação de pedido de apoio mais ou menos expresso, e ainda menos se não for verbalizado. Se pensarmos que se estima que 70 a 80% da comunicação entre seres humanos é não-verbal, facilmente se percebe que é com uma interacção próxima e física que se pode comunicar mais eficazmente e assim ajudar outro ser humano.
Para uns o suicídio é sinal de cobardia, para outros de coragem. Interpretá-lo assim é ver só o preto e o branco?
O suicídio é um comportamento muito complexo, resultante de um sofrimento intenso e desesperança, para o qual, do ponto de vista da pessoa que se suicida, é absolutamente irrelevante se é um acto de cobardia ou de coragem. Acho que não é relevante pôr a questão nesses termos. A pessoa que se suicida está normalmente em sofrimento, precisa de ajuda, e esse sofrimento é tão intenso que perde a esperança de tal forma que consegue contrariar um dos instintos animais mais fortes da nossa espécie, que é o instinto de sobrevivência.
Como pode cada um de nós ajudar?
Penso que se deverá evitar uma excessiva simplificação da questão. Mas se pensarmos que a pessoa que se suicida está numa dor sem esperança de remédio, naturalmente que ajuda a presença empática e disponível de outra pessoa, que possa dar alguma esperança de que o sofrimento é atenuável e muitas vezes evitável, e que a procura de ajuda é algo possível e desejável.
“Não compete à Igreja julgar quem comete tal acto”
“A nossa natureza é lutar pela sobrevivência. Alguém que age contra a natureza é alguém que não está bem consigo próprio, alguém que está limitado, por várias razões graves, da sua vontade e da sua consciência”. Quem o afirma é Aníbal Vieira, vigário-geral da Diocese de Santarém. A ajuda da Igreja, refere, é fazer com que, a partir de si própria, a pessoa consiga encontrar ânimo para a vida. Como pároco, Aníbal Vieira já conheceu várias situações complicadas, “algumas acabaram bem, outras não”. “Nos casos em que o desfecho é o pior há uma viciação de pensamento por bloqueio, a pessoa não consegue ter outro horizonte”, revela o vigário a O MIRANTE.
Durante séculos, o suicídio foi encarado pela Igreja como pecado, como um acto livre e consciente, mas actualmente o catolicismo entende que há cada vez mais indícios de que o suicídio pode ser um acto “não tão voluntário quanto parece”. A Igreja mudou a posição que trazia até ao início do século XX de não realizar as exéquias do cristão que tivesse cometido suicídio, posição que “fazia parte da pedagogia de dissuasão”.
“Apercebemo-nos que isso aumentava o sofrimento dos familiares e a posição foi revista”, afirma Aníbal Vieira, acrescentando que não compete à Igreja julgar quem comete tal acto: “Isso está fora da nossa alçada. A Igreja não julga os mortos”. Mas a condenação legal do próprio suicídio tem longas tradições. Na lei inglesa, por exemplo, até finais do século XIX o suicídio tentado era punido com pena de morte.
Um problema de saúde pública
O Ministério da Saúde lançou a 10 de Setembro, Dia Mundial da Prevenção do Suicídio, uma campanha nacional que visa reduzir a taxa de suicídio em Portugal, onde diariamente três pessoas se suicidam e muitas outras tentam fazê-lo. “O suicídio é um problema de saúde pública que representa um grande desafio em todo o mundo”, disse a psiquiatra Sónia Farinha Silva na apresentação da campanha num webinar promovido pelo Ministério da Saúde.
É um fenómeno que “não escolhe classes, género, idade ou região geográfica”, sendo um problema particularmente importante em homens, em pessoas mais velhas e em zonas rurais. Dados revelados por Teresa Massano, enfermeira chefe do Serviço de Psiquiatria do Hospital Distrital de Santarém (HDS), durante as I Jornadas do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) Lezíria, que decorreram em Almeirim há cerca de um ano, revelam que no primeiro semestre de 2019 deram entrada no Serviço de Psiquiatria do HDS 39 homens e 27 mulheres por tentativa de suicídio.