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António Valdemar: sempre recusei apertar a mão aos fdp
António Valdemar na sua casa de Carcavelos no dia da entrevista a O MIRANTE

António Valdemar: sempre recusei apertar a mão aos fdp

António Valdemar é o jornalista português com a carteira profissional número um. Tem mais de sessenta anos de profissão, o que lhe permitiu conviver com as figuras maiores da sociedade portuguesa dos últimos cem anos. Não há no meio cultural português quem tenha uma vivência e uma memória tão rica como a dele; ainda hoje faz capas de revista e de jornal com os seus textos sobre Amália Rodrigues ou os Painéis de S. Vicente de Fora. Uma entrevista para memória futura com uma das figuras portuguesas da actualidade que não são políticas e que marcam a nossa memória colectiva.

António Valdemar, 83 anos, jornalista, é a memória viva de um Portugal que, na maioria dos casos, já só se recorda em documentos e documentários. Em Carcavelos, num andar luminoso, de onde se ouvem as ondas do mar, vive uma das figuras maiores da nossa memória colectiva, com banca de trabalho montada em casa para escrever diariamente com uma energia, entrega e exigência estética incomuns nos dias de hoje e de sempre.

A sua casa é um museu de artes plásticas com dezenas de quadros e esculturas. Todas as peças têm uma história, um valor estimativo, uma relação de apreço pela vida e obra dos autores: Almada Negreiros, Jorge Barradas, Artur Bual, Canto da Maia e tantos outros que não cabem neste texto. Roque Gameiro é o único comprado num leilão. Todos os outros foram ofertas e têm dedicatórias pessoais.

Não é olhando para as obras de arte que o jornalista António Valdemar se inspira para escrever mas é nas obras de arte, que tapam as paredes, que o jornalista dá testemunho de uma vivência que passou, em grande parte, pelas redacções de jornais, a contar histórias de sociedade, política e policiais, mas também no convívio com os grandes protagonistas da vida cultural portuguesa dos últimos 100 anos.

Os livros espalhados pela casa, que não são muitos, devolvem ao repórter conversas dos últimos anos sobre autores que o fascinam e foram grandes inspiradores para milhares de textos que escreveu sobre pintura e literatura: Joaquim Veríssimo Serrão, Paulo Mereia e Oliveira Martins, Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco, quase todos os livros sobre Amália Rodrigues, Teixeira Gomes e Aquilino Ribeiro, entre outros. Noutras estantes estão os poetas preferidos: Camões e Antero, Cesário Verde, Camilo Pessanha, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa.

Uma das suas conversas preferidas é sobre os painéis de São Vicente de Fora, a obra mais significativa da arte primitiva portuguesa cujo estudo, de Almada Negreiros, desenvolveu num «Retábulo Imaginado», para a Capela do Fundador do Mosteiro da Batalha. António Valdemar acompanhou de perto este trabalho e conseguiu fazer com Almada oito longas entrevistas, publicadas no Diário de Notícias. Estão todas no livro “Almada, os Painéis, a Geometria e Tudo”.

As entrevistas de António Valdemar revelam a importância do jornalista e a sua influência na relação com o autor do “Manifesto Anti-Dantas” e tornaram “próximo, reunido e nítido o que estava distante, disperso e desfocado”. As entrevistas recuperaram ainda o fim do percurso do homem e do artista que não deixou discípulos e, recorde-se, foi um verdadeiro autodidacta, mestre dele próprio, como se diz agora.

Curiosamente, António Valdemar também nunca se licenciou. Veio dos Açores para Lisboa para estudar no Colégio Moderno. Acabou amigo de casa e confidente de Mário Soares. Valdemar é filho de José de Medeiros Tavares, um advogado que foi tradutor de Baudelaire e Verlaine, e neto de José Tavares Raposo, funcionário de Finanças e primo do pai de Jorge de Sena, que também era açoriano, natural da ilha de São Miguel. Foi o avô, grande leitor e homem com uma boa biblioteca, que o ensinou a escrever entre os quatro e os cinco anos. Morreu quando o neto frequentava a primeira classe.

Nesta longa conversa, que durou o tempo de uma tarde de Outono, António Valdemar deixou escapar momentos de grande emoção e comoção ao falar do avô, e do quanto ele o marcou, e ainda marca, quase 80 anos depois. Aos quatro anos já sabia ler em português e em francês, mas tinha dificuldade em escrever. “Foi o avô que, com a sua mão na minha, com a ajuda de uma ardósia, me ajudou a desenhar as primeiras letras. Tenho um amor tão grande por ele que não encontro palavras para o expressar”, confessa.

O convívio com Mário Soares, Aquilino e Almada

Da comoção e emoção pela memória do avô saltamos na conversa para os tempos do Colégio Moderno quando João Lopes Soares o queria obrigar a ir à missa. António Valdemar recusou e os dissabores só não foram maiores porque teve a solidariedade do filho, Mário Soares, que, na altura, travava com o pai a mesma luta nas questões religiosas. “Veio daí a minha amizade com Mário Soares. A nossa ligação estendeu-se ao longo de sessenta e muitos anos. Durou até ao final da sua vida”, conta.

Mário Soares escreveu, a 10 de Setembro de 2010, um elogio a António Valdemar, no prefácio a um livro, onde destaca “o seu amor à República, que herdou do seu pai” e reconhece “o seu passado antifascista”, o papel do jornalista que viveu “por dentro a ditadura salazarista” e que assim pôde exercer “uma atitude crítica”.

António Valdemar nasceu no meio de livros e de grandes figuras ligadas à vida cultural e política. O seu encarregado de educação em Lisboa, enquanto aluno do Colégio, era António Sérgio. Vitorino Nemésio andou com ele ao colo. Conheceu Aquilino Ribeiro numa livraria do Chiado, confundindo-o com um empregado da livraria. Poucos dias depois, a pedido de Vitorino Nemésio, entrava em casa do autor de “Quando os Lobos Uivam” para receber explicações de Latim.

“As lições de latim ministradas por Aquilino” - que imitou algumas vezes carregando no sotaque beirão, que era uma imagem de marca do autor nascido em Tabosa do Carregal, concelho de Sernancelhe (distrito de Viseu) – “desvendaram-me a estrutura frásica dos grandes poetas, prosadores e historiadores. Lia Cícero, em latim, com a mesma facilidade com que hoje leio O MIRANTE”, confessa.

Pouco tempo depois, já no tempo em que a barba tinha crescido por toda a cara, conheceu Almada Negreiros. “Logo nos primeiros momentos fiquei magnetizado. Almada também acreditou em mim. Passei a frequentar a sua casa e o seu ateliê. Dei explicações à filha a fim de conseguir fazer o antigo quinto ano do liceu”. Apesar de ter convivido e ter feito muitas amizades com uma plêiade de jornalistas, escritores e artistas plásticos, António Valdemar considera-se hoje o último sobrevivente do restrito círculo de convívio pessoal de Almada Negreiros. Assim o refere no seu livro. Mas Almada também deixou escrito num texto encontrado no seu espólio que António Valdemar “era o único homem capaz de interpretar o seu pensamento”.

A sua entrada como jornalista no Diário de Notícias dava um romance. As peripécias da sua escolha esbarraram com a entrada de duas figuras que também ficaram na História do jornalismo: Manuela de Azevedo e João Falcato. “Ambos tinham recomendações muito poderosas. Um velho redactor, o anarquista Cristiano Lima, que já me conhecia da roda de Aquilino na livraria do Chiado disse-me no primeiro dia que entrei na redacção: ‘Não faça nada para escrever sobre arte e literatura. Vai fazer os serviços marcados na agenda. E não recuse serviço. Você vai ser posto à prova. Vão marcar-lhe casos de polícia e de hospitais; vai trabalhar nas mais diversas ocorrências. Vai fazer notícias de missas, de exéquias, de reportagens no Santuário de Fátima. Se não souber fazer vá à colecção do jornal e veja como se faz e como se escreve. Cada um destes serviços tem palavras próprias’. Era assim que se começava no jornalismo naqueles anos”, conta.

A sua iniciação no jornalismo começou no jornal República no final da década de 1950, na ressaca das eleições de Humberto Delgado como candidato à Presidência da República. Em 1960 integrou o quadro do jornal Diário de Notícias, onde permaneceu até 1968. Depois fez parte do grupo fundador do jornal A Capital, em 1967/68, e acumulou o cargo com a chefia da redacção de Lisboa de O Primeiro de Janeiro, onde colaborou assiduamente com o suplemento Letras e Artes. Foi também chefe da redacção da revista Vida Mundial. Regressou ao Diário de Notícias em Abril de 1980 como redactor editorialista e coordenador do suplemento Artes e Letras, exercendo funções até 2007. Hoje, com 83 anos, ainda escreve regularmente no Expresso, no Público e em outras publicações regionais.

“No meio da minha classe sou um tipo desagradável”

As histórias do homem que aos 17 anos já convivia com os grandes vultos da cultura portuguesa deram-lhe uma segurança à prova de bala. “Não foi por ser um indivíduo de bom feitio que cheguei a presidente da Academia Nacional de Belas Artes entre 2008 e 2014 e a sócio efectivo da Academia das Ciências. No meio da minha classe sou um tipo desagradável. Refilo sempre que existe um obstáculo para defender os meus princípios. Não tenho problemas de consciência; quando é preciso desancar nos incompetentes e medíocres não olho para trás. Herdei este feitio do meu pai e da minha mãe e disso me orgulho”, diz, com o olhar fixo nos olhos do repórter.

“No Colégio Moderno fui um mau aluno, reconhecidamente, um aluno pouco interessado no estudo. Por isso quis trabalhar bem cedo. Uma vez o Mário Soares disse-me que eu tinha sido dos alunos mais importantes do Colégio Moderno e manifestei-lhe a minha enorme surpresa pelo elogio. Ele explicou: ‘você interessava-se por grandes causas, enquanto a grande maioria dos seus colegas andava a decorar a História de Portugal do António Matoso. Por isso, você não pode ser ministro, muito menos de um Governo presidido por mim. Porque você é um homem que trata mal as pessoas quando não lhe agradam ou estão a dizer disparates. E isso seria terrível para alguém que ocupa um cargo político. Seria um desastre’”, contou, entre risos.

Não fica com remorsos quando sai do seu registo normal e é implacável com algumas pessoas que, afinal, podem ser apenas vítimas de momentos infelizes na vida, perguntamos, num dos momentos em que veio à conversa uma briga com um dos jornalistas que, ainda no activo, lhe corta o nome e omite o seu trabalho sempre que pode: “Não, meu amigo. Os gajos com quem cortei relações eram, e alguns ainda são, autênticos filhos da puta. Não preciso de me justificar. Tenho através das paredes da minha casa provas de grande estima e consideração de personalidades notáveis de todos os sectores políticos e de todas as cartilhas estéticas, que muito me honraram com a sua amizade como Raul Lino, Stuart Carvalhais, Domingos Rebelo, António Soares, Emerico Nunes, Arlindo Vicente, Barata Feio, Jorge Barradas, Canto da Maia, que me ofereceram pinturas, desenhos e esculturas acompanhadas de dedicatórias muito afectuosas. Quando entrei no jornal República, em 1959, graças à intervenção de Almada Negreiros junto do Alfredo Guisado, já era um homem feito e pronto para lutar por uma carreira jornalística. Foi sempre o que quis ser na vida. Nunca saí deste caminho de querer ser bom numa profissão em troca de ser assim-assim como escritor, como ensaísta ou em diversas outras áreas”.

E continua, em discurso directo: “Nunca esquecerei que a minha ficha na PIDE dava-me como ligado ao Partido Comunista, onde nunca militei nem estive sequer por perto. Aos 23 anos tinha o privilégio de conversar com Augusto de Castro, o director do Diário de Notícias, no seu gabinete, sobre as origens dos painéis de S. Vicente de Fora e os grandes problemas e enigmas que essa obra ainda levanta nos dias de hoje. Foi ele que me pôs a fazer grandes reportagens e entrevistas; e isso causou inveja a muita gente que achava que me podia destruir e boicotar. Mas nem tudo foram rosas. Logo na redação do República senti que fui instrumentalizado; que fui o idiota útil”.

“Matei duas vezes um sub-director da PIDE”

“Todos esses episódios eram sobre as grandes questões que dividiam a sociedade portuguesa. Um deles teve a ver com a escolha de escritores portugueses para a lista dos candidatos ao Prémio Nobel. Havia uma estratégia de colocar à frente de todos Aquilino Ribeiro, para conseguir uma amnistia de Salazar, devido ao processo-crime resultante dos insultos ao regime no romance “Quando os Lobos Uivam”. Miguel Torga e Ferreira de Castro estavam também na calha. Fiz os inquéritos, publicados diariamente, até que a Censura descobriu o objectivo e interrompeu. Mas o escândalo internacional explodiu em Paris e, pouco depois, Aquilino era amnistiado”.

“Quando trabalhava no Diário de Notícias matei duas vezes um sub-director da PIDE chamado Pessoa de Amorim. Não me deixaram ir à casa mortuária do Hospital da Estrela para certificar o óbito e recolher outros elementos. Quem tinha morrido era um primo dele com o mesmo nome, o mesmo apelido e ambos, também, coronéis. Contei esta história quando se preparava o número comemorativo do centenário do Diário de Notícias”.

João Coito, o chefe de redação, depois de ler declarou-me «quer matar o PIDE pela segunda vez. Não publico». Augusto de Castro chamou-me e pediu-me para ver o texto. Fez umas pequenas emendas e disse ao João Coito: «Mande para a tipografia. Não vai à Censura. Uma história destas nunca tinha acontecido em cem anos do Diário de Notícias»”.

Outra polémica enorme foi desencadeada por duas entrevistas, a dois bispos, um de Leiria, outro de Coimbra, acerca do segredo de Fátima e da clausura imposta a Lúcia, uma das videntes, sequestrada até à morte no Convento do Carmelo em Coimbra.

“Em consequência destas entrevistas os Ultra do regime assaltaram-me a casa e deixaram tudo num pandemónio. O Gonçalo Pereira da Rosa conta isso num livro. Aliás, ele já me deu a honra de evocar alguns outros episódios que vivi nesses tempos. Um repórter de O Século que relatou, tal como eu, uma peregrinação em Fátima escreveu um texto que foi manchete dizendo que estava um milhão de pessoas no Santuário. Ele fez tudo vendo pela televisão. Eu, que estive no local, e com informações obtidas na secretaria do Santuário, escrevi meio milhão, título que o chefe da redação do Diário Notícias resolveu destacar como manchete. Resultado: ouvi uma lição que nunca mais esquecerei. Nunca se contabilizam multidões. Em especial nos títulos”.

Esta entrevista com António Valdemar foi interrompida várias vezes para falarmos da obra de Teixeira Gomes, na opinião do jornalista “um dos maiores escritores de sempre da língua portuguesa”. Cerca de meia hora, em tempos diferentes da nossa conversa, leu trechos da sua obra de viajante e cronista. António Valdemar acabou de escrever um posfácio para um catálogo de uma exposição a realizar no Mosteiro da Batalha com o Retábulo Imaginado por Almada Negreiros. Encontrou um pequeno trecho de Teixeira Gomes que esclarece um dos muitos restauros que ali se efetuaram no fim do século XIX.

“Devo ao meu pai o estímulo para ler a obra de Teixeira Gomes. Devo a Norberto Lopes, meu director em A Capital, a possibilidade de conhecer a biografia de Teixeira Gomes, no livro «O Exilado de Bougie». Foi o único Presidente da República portuguesa escritor, (Teófilo Braga era critico e historiador) que teve a coragem de abandonar o cargo, exilar-se na Argélia e nunca mais voltar a Portugal”.

Na altura em que citávamos os escritores favoritos falámos também do percurso acidentado da sua vida. António Valdemar já sofreu “uma facada no peito para colocar um by-pass”, cujo recobro durou dois dias numa maca num corredor de um hospital. Também passou por outros problemas de saúde graves que, entretanto, foram ultrapassados e não lhe roubaram a excelência da escrita e a vitalidade da sua veia criativa.

António Valdemar orgulha-se ainda de ser um jornalista que faz dezenas de revisões aos seus textos; diz que aprendeu com Carlos Drummond de Andrade que “escrever é cortar palavras”, e com Vieira de Almeida que “o simples não é o fácil”. “Estou com a vista numa miséria, mas não é isso que me impede de imprimir os textos uma dezena de vezes, até os libertar dos adjectivos, e os enxugar até ficarem reduzidos ao essencial. É assim que gosto de escrever”.

A ligação ao Ribatejo e livro de memórias na forja

A conversa com António Valdemar durou um dia de trabalho mas ficou a meio já que não falamos de muitas outras recordações da sua vida de repórter, assim como das suas ligações ao país real, e a cidades como Santarém e Torres Novas, onde conviveu com figuras da região que ainda hoje cultiva e gosta de ir acompanhando. Valdemar é casado há quase 30 anos, em segundas núpcias, com Teresa Bento, empresária no Entroncamento, o que lhe permite ter uma segunda habitação em Torres Novas onde costuma passar temporadas.
Começou há três anos a escrever um livro de memórias que tem o título «A 10ª ilha». Já vai em duzentas páginas mas, confessa, depois de ler o que escreve fica desapontado. O mesmo se passa com os milhares de textos que escreveu ao longo da vida. Diz que está fora de causa fazer antologias porque o tempo é curto para viver a vida e continuar a escrever.
Ao longo de toda a conversa citou dezenas e dezenas de nomes; só por duas vezes deixou para mais tarde dois que apareceram na conversa. Mesmo assim, com os dias preenchidos a escrever sobre Amália Rodrigues, de quem foi visita de casa, e Teixeira Gomes, assume que vai continuar a tentar o milagre das suas memórias que não quer que se transformem numa autobiografia. “A infância vai ficar de fora”, garante.
Só não contou se no livro vão aparecer os nomes de todos aqueles que o odiaram ao longo da vida pela pertinência do seu trabalho, ou ainda aqueles que sempre o odiaram por causa do mal da inveja, por despeito e por não terem entendido que, ao ignorarem ou apagarem o seu nome, estão a ajudar a escrever o seu futuro e a valorizar a sua vida de trabalho e o seu carácter que “sempre o mandou recusar apertos de mão a filhos de puta”.

António Valdemar: sempre recusei apertar a mão aos fdp

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