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Trezentos dias sem família nem abraços:  a pandemia numa instituição para deficientes 

Ivo, Luís e Camilo nunca mais viram as suas famílias. Sandra deixou de poder ir trabalhar. Emídio ficou na instituição, separado da namorada. A pandemia condicionou-lhes a liberdade e roubou-lhes a autonomia. Todos têm deficiência intelectual e mantê-los, há quase um ano, fechados numa instituição tem sido de uma violência inexplicável.

Sandra Paulino deixou de poder ir para a farmácia, onde estava integrada e trabalhava há três anos. Foi difícil perceber e aceitar que não podia sair ou abraçar e beijar aqueles de quem gosta. Com isso já se conformou. Mas com a falta desta rotina passou a lembrar-se, todos os dias, das limitações que o trabalho lhe fazia esquecer. Há quase um ano que o seu mundo se resume ao lar residencial e actividades ocupacionais na Cercipóvoa, instituição sediada na Póvoa de Santa Iria que apoia pessoas com deficiência. “Mas isto há-de passar. Estou à espera de lá voltar, porque gosto muito. Lá parece que não sou eu, esqueço-me do resto”, diz.
O que Sandra sente é um “vazio enorme” que não consegue ser preenchido com as actividades que diariamente desenvolve na instituição onde é utente há 16 anos. “As pessoas com deficiência intelectual necessitam de saber o que vão fazer a seguir e as rotinas ajudam-nas a estabilizar o comportamento e a sentir segurança”, explica a psicóloga da Cercipóvoa, Teresa Pedras.
Além da perda de autonomia que pode vir a ter, nalguns casos, efeitos a longo prazo e até irreversíveis, a “perda do vínculo com os familiares” é algo que os está a afectar ainda mais. “Vai fazer um ano que muitos deixaram de conviver com as famílias, quando estavam habituados a ir semanalmente a casa”, conta a psicóloga. Desde Março de 2020 estes utentes só vêem os pais, irmãos, primos e sobrinhos através do telemóvel ou entre as grades do portão.

Saudades e a falta
de abraços são
o mais difícil de aguentar
Na residência autónoma da Cercipóvoa, Ivo, Camilo, Emídio e Luís tentam manter as rotinas de outros tempos. Fazem a cama, tomam banho, põem perfume e vestem a roupa mais arrojada do armário como se fossem passear ou participar numa actividade fora da instituição. Fazem tudo sozinhos, num claro “estímulo à forma de vida autónoma”, vinca o presidente da Cercipóvoa, José Gonçalves.
Na sala, onde recebem a reportagem de O MIRANTE, convivem, cantam, vêem futebol e recordam a última colónia de férias a que foram. Tentam, a custo, manter alguma normalidade e motivação.
As saudades são o mais difícil de aguentar. “Estive a falar com a minha sobrinha e irmã ao telefone. Ficaram a chorar. Estou há muitos meses aqui fechado. Passei cá o Natal, o fim de ano, o dia dos meus anos e nunca mais fui a casa. Tenho saudades de abraçar. Estou ansioso que isto acabe”, desabafa Camilo Gonçalves, de 65 anos.
O sentimento é partilhado pelos restantes colegas de casa. “Com isto tudo fui-me abaixo. Tenho feito videochamadas com o meu irmão, mas tirando isso...”. As palavras que saem num tom baixo de tristeza são de Ivo Pereira, de 42 anos, natural de Samora Correia. Não recorda há quantos anos está na instituição. “Foi quando a mãe fechou os olhos”. Mas não tem memória de ali passar tanto tempo sem um abraço.
“Esta população necessita de muito afecto e o distanciamento tem sido muito complicado. É uma barreira física que tem grandes implicações ao nível psicológico e emocional. Agora tentamos com os olhos e as palavras dar abraços”, diz Teresa Pedras. Nos casos mais complicados, a ausência de afecto físico e das famílias “reflecte-se numa grande tristeza, sinais de depressão, comportamentos mais conflituosos e aumento de crises”.
A Luís Lopes a pandemia cortou-lhe a liberdade que tanto aprecia. Tem 61 anos e 22 deles foram passados na rua, a viver em “barracas e barracões”, até que uma irmã descobriu o seu paradeiro e o institucionalizou na Cercipóvoa. “Desde que cá estou ando sempre limpo e arranjado. Mas desde que veio isto - a pandemia - sinto falta das minhas voltinhas”, afirma, como quem se confessa debaixo do olhar atento de Camilo Gonçalves, o seu amigo e conselheiro.

“Digo-lhe que gosto dela
e que tenho saudades”
Emídio Materno, 28 anos. É o mais tímido e o último a falar. A viola que carrega ao ombro deixa adivinhar que é um romântico por natureza. Estudou música e é fã do cantor Tony Carreira. Não vê a mãe desde Março, mas é da namorada Mónica - utente que durante a pandemia foi para casa dos seus familiares - de quem diz sentir uma saudade que não cabe no peito. “É a mulher da minha vida. Digo-lhe que gosto dela e que tenho saudades, e ela diz igual”, conta o jovem que sonha ter uma casa, ser músico e carpinteiro.
A conversa é interrompida por acordes de viola. Emídio Materno solta a voz e canta a canção “Sonhos de Menino”, do seu ídolo. À sua volta faz-se silêncio. Sentados no sofá, olham uns para os outros e sorriem. Emídio, Ivo, Luís, Camilo e Sandra são aos olhos de quem os vê uma família. Quando isto acabar vão fazer uma festa de Natal, nem que seja no Verão. Depois de 334 dias - e os que faltam - confinados numa instituição, ninguém vai certamente achar a ideia despropositada.

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