Uma injecção de esperança contra o vírus que deixou o mundo cheio de medo
Ainda é cedo para falar em imunidade de grupo, mas o arranque da vacinação à população de Vila Franca de Xira é um sinal positivo para quem anseia por dias melhores. O MIRANTE conta a experiência de sete dos 666 idosos vacinados em dois dias, que depois de ultrapassarem a ansiedade viveram reencontros inesperados que fizeram lembrar tempos de normalidade.
Faltam cerca de 10 minutos para Maria de Lurdes Feliciano, de 82 anos, poder levantar-se da cadeira e deixar o pavilhão municipal do Cevadeiro, em Vila Franca de Xira, onde foi montado o centro de vacinação Covid-19. Cumprida a meia hora de espera obrigatória, controlada por uma aluna de enfermagem, para o caso de surgir algum sintoma, vai regressar a Vialonga “mais confiante” do que estava antes de estender o braço e levar a injecção. Confessa que “não tinha muita pressa” e tão pouco esperava ser vacinada no segundo dia de funcionamento desse centro. “Não custou nada e já fiquei despachada”, atira a idosa que faz parte da lista dos 666 vacinados nos dois primeiros dias.
Enquanto Maria de Lurdes se prepara para sair, há um auxiliar com um borrifador nas mãos pronto a desinfectar a cadeira para dar lugar a outro utente. O ritmo é certeiro, até porque em dois dias apenas um utente precisou de assistência médica. “Nada teve a ver com a vacina, mas com o estado de ansiedade da pessoa”, esclarece a enfermeira chefe, Ana Chambel, explicando que “é normal os idosos sentirem alguma pressão, porque estão há meses fechados em casa”.
Num dos oito postos de vacinação deste centro, Hélder Martins prepara-se para levar a primeira dose da vacina. Nada de despir a camisola, basta arregaçar a manga. Estende o braço e conta que veio da Póvoa de Santa Iria à boleia da nora. Se está nervoso? “Agora não, mas quando me deram a novidade fiquei. Fecharam-me em casa há muito tempo, sabe? Já não estava habituado a isto”, diz a O MIRANTE, o idoso de 83 anos.
Armazenados num pequeno frigorífico, a uma temperatura que não pode estar abaixo dos dois graus nem acima dos oito, os pequenos frascos de vacina são uma espécie de quebra-cabeças para os enfermeiros. “Aqui o trabalho tem de ser minucioso, porque cada gota conta. O objectivo é sempre retirar o máximo de doses possível”, diz a directora do Agrupamento de Centros de Saúde (ACES) do Estuário do Tejo, Sofia Theriaga, que na manhã de sexta-feira, 26 de Fevereiro fez um périplo pelo centro de vacinação, acompanhada pelo presidente da Câmara de Vila Franca de Xira, Alberto Mesquita.
Cada gota conta
O espaço não é, pelo menos para já, um problema. Há circuitos que têm de ser cumpridos, mas há chão que chegue para manter o distanciamento. “Só devemos criar mais centros de vacinação quando o número de vacinas o justificar e nos disserem que é preciso. Enquanto isso não acontecer temos aqui um centro de vacinação com todas as condições para fazer face ao número de vacinas disponíveis”, diz aos jornalistas o presidente do município, adiantando que está, no entanto, a ser estudado um segundo espaço em Alverca.
Em média, o ACES do Estuário do Tejo, que serve cinco concelhos, está a receber por semana 3.500 doses de vacinas da Pfizer e da AstraZeneca (esta só é administrada a pessoas com menos de 65 anos). Se o número vier a aumentar, o que é expectável, “abrem-se mais postos de vacinação e escalam-se mais profissionais”, refere a directora executiva do ACES. Uma ginástica de recursos humanos que pode levar a que os centros de saúde fiquem com menos profissionais de saúde, mas como “neste momento a prioridade número um é a vacinação, todos os meios necessários vão ser alocados”.
Reconhecendo que em Janeiro “foi complicado permitir o agendamento de consultas” nos centros de saúde do concelho, Sofia Theriaga diz que o abrandamento do número de novos casos está a permitir um retorno à normalidade e garante que mesmo na pior fase esteve sempre assegurado o atendimento a pessoas com “doença aguda e de grupos de risco”.
Levar a vacina e aproveitar para pôr a conversa em dia
A vez de Maria Ferreira e do marido Isauro Ferreira chegou no mesmo dia. “Ainda bem”, porque se poupou uma viagem entre Vialonga e Vila Franca de Xira ao condutor de serviço, o filho João Paulo Ferreira que há quase um ano deixa diariamente à porta de casa dos pais pão e um jornal. “Estive com atenção ao telemóvel, mas pensei que já não chegasse até mim. Afinal já a levei e não custou nada. Custa-me mais a andar porque a minha coluna não ajuda”, conta Isauro sobre a sua experiência.
À saída aproveitam para pôr a conversa em dia com Maria de Lurdes e Manuel Feliciano, um casal amigo com quem não falavam desde que o medo de apanhar o vírus os fechou em casa. “Há muito tempo que não nos víamos”, atira Maria de Lurdes, de 82 anos. “Esta pandemia não deixa a gente sair, é uma tristeza. Dantes encontrávamo-nos muitas vezes na missa, em Vialonga”, diz Isauro Ferreira.
Para Edmundo Modesto, diabético e doente cardíaco, mais do que um dia de reencontros, 26 de Fevereiro vai ficar marcado como o dia em que teve a primeira arma para combater a entrada do vírus no corpo. “Estive no Ultramar, na guerra colonial, mas esta aqui é pior. Deixa o mundo cheio de medo”, diz o ex-combatente de 82 anos, que foi vacinado no mesmo dia que a esposa Lurdes Modesto. Casados há 56 anos acreditam que sairão vencedores desta guerra quando voltarem a estender o braço para levar a segunda dose. Mas, sobre essa, ainda não há previsão da chegada a Vila Franca de Xira.
Ninguém vai ficar para trás
No concelho de Vila Franca de Xira estão sinalizadas 10.326 pessoas com mais de 80 anos ou mais de 50 anos com patologias enquadradas nas normas definidas pela Direcção-Geral de Saúde. Para já, segundo a directora do ACES Estuário do Tejo, embora haja algum receio e ansiedade, e até quem atrapalhe a logística por chegar demasiado cedo, 98 por cento dos utentes tem respondido afirmativamente à chamada.
Sobre o não deixar ninguém para trás, o presidente da câmara municipal reforça que o transporte está assegurado para todos aqueles que necessitarem, bastando para isso contactar a autarquia (263 270 885, ou smpc@cm-vfxira.pt). A triagem é feita pelo serviço municipal de Protecção Civil que analisa todos os casos e encontra, em articulação com as juntas de freguesia as soluções mais adequadas.