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Grandes empresas de Azambuja não têm ligação ao território
Daniel Claro deixa a política ao fim de 15 anos na oposição em Azambuja

Grandes empresas de Azambuja não têm ligação ao território

Daniel Claro não tem tido uma vida fácil, com uma doença que o encolheu, o desassossego que lhe limitou as amizades e a gaguez que faz com que demoro mais tempo a exprimir as ideias. Agora, aquele que tem sido o rosto do Bloco de Esquerda em Azambuja, está a iniciar um caminho que não inclui a política. Nesta entrevista defende um referendo sobre a instalação de centrais fotovoltaicas e diz que fazem falta médias empresas no concelho.

Sentado em frente ao computador a ler jornais, Daniel Claro tem da janela de sua casa uma vista privilegiada para uma das principais avenidas da vila de Azambuja, que é hoje um “deserto”. Não por causa da pandemia, avisa, mas pela falta de um “plano de incentivo para a fixação de comércio”. O eleito municipal do Bloco de Esquerda em Azambuja está de saída da política, ao fim de 15 anos, e não fossem as eleições este ano, teria que pedir a suspensão do mandato.

A artrite reumatoide, doença que o acompanha desde a juventude, foi-lhe encolhendo o corpo e empurrando-o para uma cadeira de rodas. Tem menos 14 centímetros que o metro e oitenta e um que media. A caixa torácica foi apertando até lhe deformar o corpo e desenvolver a doença pulmonar obstrutiva crónica. Chegou a entrar no auditório do Páteo Valverde, onde tinham lugar as assembleias municipais de Azambuja, antes da pandemia, sentado numa cadeira de rodas, empurrado pela esposa. O ar frágil chocou alguns, as suas intervenções incomodaram outros, mas nunca se deixou levar pela apatia que por vezes ataca aqueles que o povo elegeu.

Agora que a voz se arrasta e temendo poder fazer impressão às pessoas faz chegar a sua intervenção por escrito. “Nada tem a ver com ser gago, isso é uma característica que me individualiza e que embora os incomode continuam a ouvir-me para ver onde o discurso vai chegar”, apressa-se a esclarecer contrariando as longas pausas que faz antes de responder a qualquer pergunta.

Daniel Claro recebeu O MIRANTE na casa de onde não sai desde que começou a pandemia, a não ser para consultas médicas. Em altura de apresentação de candidatos às eleições autárquicas, o bloquista anuncia a sua saída, preocupado com a necessidade de “encontrar um ponta-de-lança” para o partido.

Em 2017 o slogan da campanha do BE era “Vamos mexer com isto”, mas não convenceram muitos eleitores. Este partido tem futuro em Azambuja?

O Bloco de Esquerda tem futuro em Azambuja se souber organizar-se e encontrar pessoas. Percentualmente somos dos concelhos do distrito de Lisboa que mais votos conquistou em 2017. O problema de Azambuja e da sociedade em geral é a falta de cidadania. Hoje as pessoas sentam-se em casa, olham para o jornal local e dizem: “bandidos”. Mas continuam com as pantufas calçadas.

Com tanta agitação no Partido Socialista e com Silvino Lúcio como cabeça-de-lista à Câmara de Azambuja, acha possível uma mudança de cor política?

Não, só se o PS metesse uma argolada muito grande.

O aterro às portas da vila, as centrais fotovoltaicas, não são argoladas muito grandes?

É verdade que sim. Mas também é verdade que em Aveiras de Cima, um ponto de forte referência em termos eleitorais, tem o Parque Urbano da Milhariça a desenvolver-se, ou seja, há obra para agradar aos eleitores.

Qual a sua posição relativamente à instalação de mega centrais fotovoltaicas no concelho?

Sou claramente contra. Querem fazer de Azambuja, Rio Maior e outros concelhos um enorme parque solar, sem que sejam conhecidas as repercussões da radiação térmica em zonas habitadas e do emaranhado de redes de alta tensão que vão passar perto das casas das pessoas. Repare-se que nos Estados Unidos da América todos os grandes parques solares ficam no deserto.

Ainda vale a pena discutir o assunto?

Discussão foi precisamente o que faltou. A instalação destas centrais merecia um referendo, mas agora já é tarde. A decisão já está tomada pelo Partido Socialista, que não se impôs em Azambuja para dizer o que queremos e não queremos para o nosso concelho, tal como fez Benavente relativamente a estas matérias.

Mais uma vez Azambuja fica com o que os outros não querem?

Azambuja tem pouco peso político e tem optado sempre pela ocupação extensiva do território, sem um olhar atento e sem políticas que se adequem às quatro zonas de desenvolvimento diferenciadas: o alto concelho, o eixo Alcoentre a Aveiras de Cima, o eixo Casais da Lagoa a Vila Nova da Rainha e a Lezíria, sendo que esta última precisa urgentemente de uma política integrada que inclua espaços para incubadoras de empresas ligadas à agricultura.

Só na plataforma logística estão instaladas mais de duas centenas de empresas. Azambuja ainda precisa de mais empresas?

As grandes empresas que estão em Azambuja não têm qualquer ligação ao território. O que faz falta são as médias empresas, com enraizamento na terra e que suportem com o seu peso económico uma câmara municipal reivindicativa e com maior peso político. Agora, atendendo ao que cá temos, é fundamental que se elabore uma carta económica do concelho para decidir que tipo de investimento é bem-vindo.

Em 2018 disse em assembleia municipal que a corrida de toiros é um ritual que já caiu em desuso e foi o único a votar contra a moção “Tauromaquia é Cultura”. Para si não é?

Esta pergunta é uma armadilha. O que acho é que há um debate grande e sério para fazer sobre essa encenação de um modo de vida que já não volta. Agora digo com certezas que sou completamente contra o financiamento de touradas com dinheiros públicos.

Os 600 mil euros usados pela Câmara de Azambuja para requalificar a praça de toiros ainda lhe estão atravessados na garganta.

Claro que sim. Azambuja gastou dinheiro que não tinha para requalificar uma praça de toiros, através do reembolso de 2,5 milhões de euros do Fundo Social Europeu. Esse dinheiro deveria ter sido usado para pagar o empréstimo contraído para requalificar escolas.

O que é urgente resolver em Azambuja?

A revisão do Plano Director Municipal e a criação de um plano de desenvolvimento integrado; é urgente as pessoas saírem à rua e defenderem os seus interesses. Há um acentuar do individualismo que faz com que as pessoas estejam a perder o sentimento de pertença. É urgente recuperá-lo.

No caso da contestação do aterro, acha que a população fez pouco para travar a sua expansão, que vai ser decidida até Maio?

Azambuja fica comodamente em casa a gritar que cheira mal, como quem espera que surja um cavaleiro montado num cavalo branco e resolva o assunto. Não estou a ver o presidente da câmara, Luís de Sousa, a ser esse tal dom Sebastião, por isso creio que vamos ter muitas dificuldades em conseguir fechar o aterro. Tivemos pessoas empolgadas, mas aos poucos o assunto foi ficando em banho-maria e as consciências tranquilas de que alguma coisa se fez sem que se tenha feito nada. Precisamos de acções mais radicais.

Anda no mesmo carro há 20 anos e nunca teve amigos

Daniel Claro nasceu em Santarém há 64 anos e vive em Azambuja há mais de 30. Se lhe disserem que gosta menos daquela terra que qualquer outro que ali tenha nascido dirá que “isso não faz qualquer sentido”. A sua filha, o filho e o neto nasceram em Azambuja. Os seus pais morreram na terra. “Há quem tenha nascido cá e durma cá, mas não trabalhe nem viva cá”, diz, acrescentando que “Azambuja é uma terra onde infelizmente muita gente passa e pouca gente vem”. Defende uma feira da Lezíria que seja “âncora para espoletar a discussão sobre o futuro do concelho” e ajude a fomentar a sua identidade: Lezíria. Anda no mesmo carro há 20 anos e só mudou de casa por causa das acessibilidades. Sobre este assunto diz que até se podia sentar os políticos em cadeiras de rodas para verem a quantidade de barreiras arquitectónicas, mas assim que se levantassem da cadeira seguiriam viagem e o problema continuava. É marxista e diz-se um desassossegado por natureza. Foi esse desassossego que o levou aos 17 anos a pertencer ao Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (MRPP), depois à União Democrática Popular (UDP) e por fim ao Bloco de Esquerda. Frequentou os cursos superiores, foi agricultor, professor e formador. Continua colectado embora não exerça, à espera de “ganhar coragem para a reforma”. É casado com Helena Pessoa, professora reformada e com quem fundou a instituição para pessoas com deficiência Cerci de Azambuja. Helena é hoje a sua força, os braços que o levantam da cama e as mãos que o ajudam a comer. “É a minha vida”, diz. Depois, faz uma pausa e acrescenta: “Quando se chega ao fim da vida todos temos tendência a pedir desculpa e tenho que o fazer. Por minha culpa as pessoas nunca se sentiram confortáveis comigo. Fui um homem que nunca teve amigos, porque ou queria monopolizar a conversa ou fechar-me nos meus pensamentos”. Devido ao avançar da doença “a perspectiva não é boa, mas não me mato. Se penso que morro um dia destes? Isso penso”.

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