Ser médico de família é um dom que não está ao alcance de todos
Ser médico é um título, exercer medicina é um dom. A frase serve de inspiração para a reportagem de O MIRANTE com quatro médicos da região e presta homenagem a Pedro Sousa, João Ferreira, Joaquim Branco e Maria Amélia Paulo, a propósito do Dia Mundial do Médico de Família que se assinala a 19 de Maio.
“Ir ao médico ainda é encarado como uma visita social”
Pedro Sousa, médico de família em Torres Novas, diz que para os médicos serem bons profissionais têm de ser felizes. Defende a capacitação dos utentes, mas ainda há quem vá ao médico por uma unha negra e quem agradeça à moda antiga. O médico não se cansa de repetir que a medicina familiar tem de ser de proximidade e de um enorme humanismo, caso contrário não está a cumprir o seu propósito. Gosta de estabelecer uma relação de empatia, mesmo tendo cada vez mais burocracia para tratar.
Médico e coordenador da Unidade de Saúde Familiar Almonda desde 2016, Pedro Sousa, de 35 anos, já foi surpreendido com ofertas de dúzias de ovos, garrafões de azeite e, mais recentemente, com presentes para a filha, de 14 meses. E mesmo que tente explicar que o que faz pelos utentes “faria por qualquer outro”, sabe que não vale a pena discutir com quem tem esse velho hábito de agradecer.
Entre os cerca de dois mil utentes que assiste há os que conhece melhor e receituários que sabe de cor, porque “ir ao médico ainda é encarado por alguns como uma visita social”. Como os que aproveitam uma ida ao mercado semanal para marcar consulta ou pedir receita para o medicamento que está a acabar. “Se pudessem, alguns, estavam cá todas as semanas”, diz a O MIRANTE, com um sorriso no rosto.
Pedro Sousa defende a capacitação dos utentes na gestão da sua saúde, evitando assim uma afluência tão elevada às unidades. Na opinião do clínico, residente na Golegã, essa capacitação tem vindo a diminuir. “Se recuar no tempo, não se corria para o médico por uma inflamação ligeira, curava-se em casa. Hoje à mínima percepção de febre há essa precipitação em recorrer aos cuidados de saúde”, diz.
A pandemia fez com que Pedro Sousa passasse a atender metade dos seus pacientes habituais. As consultas presenciais sempre se mantiveram, somando-se às que fazia por telefone, à colaboração em centros de atendimento a doentes respiratórios e aos 40 doentes com Covid-19 que acompanhou. “Foi o maior desafio da minha carreira; o da minha vida é conseguir gerir a profissão com a vida familiar. Costumo dizer que a medicina é uma parte importante da minha vida, mas não é a minha vida. Não pode ser um sacerdócio com celibato”, defende.
Foi a vontade de ajudar o próximo que o motivou a seguir medicina. Pedro Sousa é o médico mais novo do corpo clínico da USF Almonda, onde, tal como noutras, se sente o “hiato geracional”. A maioria está à beira da reforma e só nos últimos meses, no concelho, aposentaram-se três. “Para captar novos médicos vai pesar, como sempre pesa, se a equipa é dinâmica, aliciante em termos de objectivos e se tem capacidade de progressão”, considera.
É fundamental aumentar o tempo de cada consulta
O coordenador da Unidade de Saúde Familiar (USF) Cortes de Almeirim, João Ferreira, defende um maior tempo e disponibilidade para estar com cada paciente e é isso que a classe médica tem reivindicado nos últimos tempos, ainda sem sucesso. Cada consulta deveria demorar cerca de 20 minutos mas nem sempre é possível e a saúde dos doentes fala mais alto. No entanto, os médicos compensam a situação com um maior número de consultas de modo a acompanhar o doente com mais proximidade.
João Ferreira defende que é importante haver mais tempo para os doentes porque uma consulta com uma grávida é diferente da consulta com uma criança ou um idoso. As equipas da USF de Almeirim também mudaram a forma de trabalhar. Agora se um colega está ausente, devido a licença de maternidade, por exemplo, os restantes médicos ficam com os utentes desse profissional para que não existam pessoas sem acesso às consultas.
O coordenador, que tem cerca de dois mil utentes ao seu cuidado, considera preocupante existir quase um milhão de pessoas sem médico de família, mas alerta que é importante perceber quantas pessoas não têm médico de família por opção. Nos primeiros meses de pandemia os pacientes quase desapareceram da unidade de saúde de Almeirim. O mais preocupante foi a ausência dos pacientes com doenças crónicas que têm obrigatoriamente de ser controladas. O acompanhamento regular deixou de existir durante uns meses mas entretanto a situação já está controlada.
A pandemia acabou por trazer algumas coisa boas, nomeadamente, a adaptação às tecnologias para consultas médicas. “Actualmente vêm à consulta, pedimos para fazer uns exames, o paciente envia o resultado por email e nós respondemos por email ou por telefone, o que torna tudo muito mais prático. É uma ferramenta que pode vir a ser muito importante no futuro”, sublinha.
Não é fácil gerir dois mil utentes
Joaquim Branco, 66 anos, é médico em Vila Nova da Barquinha, tendo começado a exercer a profissão em 1985, no “velho” centro de saúde da vila. “Ser médico de família nos dias de hoje é muito diferente de quando comecei. As pessoas são mais exigentes, mas também são mais cultas, o que facilita muito o nosso trabalho”, afirma.
O coordenador da Unidade de Saúde Familiar (USF) diz que a Medicina Geral e Familiar está actualmente organizada de forma mais prática e funcional. “Diariamente temos um bloco de consultas de vigilância, como os hipertensos, diabéticos. Depois cada médico tem as consultas marcadas com antecedência e, ainda, as consultas abertas, aquelas que ficam para as urgências do dia. Isto veio evitar, principalmente, as longas filas de espera para consulta”, explica.
Apesar de toda a evolução, o clínico assume que nem sempre é fácil gerir os cerca de dois mil utentes que tem a seu cargo. “O meu horário é de sete horas, mas a maioria dos dias faço mais do que isso. Atendo uma média de quatro doentes por hora, mas tenho mais trabalho para além do atendimento, nomeadamente passar exames e receitas aos doentes crónicos que não precisam de se deslocar à Unidade de Saúde”, conta.
Joaquim Branco tem orgulho na vida profissional que escolheu e afirma que se tivesse de escolher hoje seria novamente médico de família em Vila Nova da Barquinha. “Aqui há uma grande proximidade com o utente, algo indispensável para conseguir fazer bem o meu trabalho e ajudar as pessoas”. Com uma carreira de mais de 36 anos, garante que, apesar de todas as horas trabalhadas, nunca deixou a sua vida pessoal para trás. “O dia tem 24 horas e, se for bem gerido, sobra muito tempo para a família. É isso que tenho tentado fazer ao longo da vida”, afirma com um sorriso.
Maria Paulo dedicou parte da vida à medicina em Azambuja
Maria Amélia Paulo, 70 anos, trabalhou grande parte da vida no Centro de Saúde de Azambuja, onde esteve até se reformar, em 2011. Após a aposentação ainda trabalhou sete anos como médica de família no Hospital da Luz, em Lisboa, que abandonou no início da pandemia, para não colocar em risco a família, sobretudo a mãe, que na altura estava acamada. A profissional, natural de Aveiras de Cima, conta que acabou por ser médica de família por opção, pois era a especialidade que lhe garantia maior proximidade com os doentes. Embora já não exerça a profissão, vai sabendo pelos antigos colegas do que se passa nos centros de saúde do concelho de Azambuja, onde os médicos são cada vez menos e há cada vez mais dificuldade em captar novos profissionais.
“Ser médico de família é mais desgastante, porque o Serviço Nacional de Saúde (SNS) exige aos médicos mais burocracias, que acabam por tirar o tempo que se dedica ao doente”, conta Maria Paulo, lamentando que os profissionais tenham apenas 15 minutos para ver o utente. No entanto, a clínica considera que continua a existir a proximidade entre o médico e o doente, embora esta fosse maior quando os médicos se fixavam nas localidades e as adoptavam como suas.
“Lembro-me de colegas de Lisboa que vinham de propósito para Azambuja trabalhar e não queriam deixar o centro de saúde pelo carinho que tinham pelos pacientes”, acrescenta, lamentando que os profissionais que são colocados nas localidades mais pequenas prefiram mudar-se para as grandes cidades.
Maria Paulo, que agora se dedica a ser médica voluntária no Lar do Centro Social e Paroquial de Aveiras de Cima, diz que o melhor de se ser um médico de família é a proximidade com o utente e que o menos bom é o tempo que o trabalho rouba à família.