Bullying: testemunhos da violência que deixa marcas para a vida
Ana sofria sozinha e em silêncio com vergonha de contar aos pais o inferno que vivia na escola. Inês reprovou de ano e teve a primeira depressão aos 17 anos. A exposição ao bullying é uma experiência traumática que deixa marcas para a vida e não pode ser relativizada, alerta a psicóloga Helena Gonçalves.
Ana Santos escondia dos pais as marcas físicas e psicológicas. Chorava no quarto sozinha enquanto tentava adormecer com medo do que lhe podia acontecer ao voltar a entrar na escola. Era a mais baixa e gordinha da turma e foi esse o “motivo” para um grupo de raparigas começar a perseguir, insultar, ameaçar e agredir com violência quando tinha dez anos. Quatro anos depois abandonou a escola e hoje, aos 35 anos, ainda lhe custa recordar os episódios traumáticos que a tornaram numa mulher “mais fria e reservada”.
“A escola era um inferno, em vez de ser um lugar seguro e de aprendizagem. Não conseguia concentrar-me, vivia num medo constante. Há um dia em que uma delas vem ter comigo e começa a bater-me e a apertar o pescoço até deixar de conseguir respirar”. É assim que Ana Santos, residente no Forte da Casa, concelho de Vila Franca de Xira, descreve o período mais difícil da sua vida, ou seja, os quatro anos em que foi vítima de bullying sem que os seus pais soubessem ou sem que quem sabia - professores, colegas e funcionários - fizessem algo para a libertar daquele sofrimento.
O bullying, uma prática que se define pelo uso da força física, ameaça ou coerção para intimidar ou dominar de forma violenta, não é um fenómeno de agora. Sempre existiu e é um problema sério com um impacto muito forte que deixa marcas para a vida. “Os professores, os pais devem estar atentos aos sinais de alerta da criança ou jovem que alterou o seu humor e se mostra ansioso, que deixou de comunicar ou perdeu o apetite”, defende a psicóloga especialista em psicoterapia, Helena Gonçalves, em declarações a O MIRANTE.
Além da ansiedade que começava a sentir sempre que ia a caminho da escola, Ana Santos chegava a ficar com febre, numa reacção psicossomática provocada pela alteração emocional. “Era o seu corpo a tentar proteger-se, a reagir já que a sua mente não conseguia expressar o seu medo verbalmente”, explica a psicóloga de Torres Novas. Durante os intervalos “ligava à mãe e inventava desculpas para que a fosse buscar”. Dizer que lhe doía a cabeça ou a barriga eram as mais usadas. “Só pensava numa forma de fugir dali, nem que fosse apenas durante um dia. Ainda hoje não gosto de escolas”, conta Ana.
Mãe de dois filhos, uma de quatro e um de 12 anos, sempre que tem de entrar no estabelecimento de ensino de um deles é como se estivesse a reviver o pesadelo que foi a sua adolescência. “Gostava que me apagassem as memórias desta fase da minha vida”, diz em jeito de pedido, consciente que o trauma se reflecte no seu papel de mãe ao admitir que teme “talvez mais do que outras” que os seus filhos possam passar pelo mesmo.
Perguntar “porquê a mim” e não encontrar resposta
“É natural que haja esse medo: se aconteceu comigo pode acontecer com os meus filhos. Deste modo é possível que essa emoção passe para eles através da forma como a mãe ou pai, que foi vítima de bullying, se comporta”, alerta a psicóloga.
Para Inês Araújo, que também foi vítima de bullying, não é um processo fácil mascarar esse medo do filho de cinco anos. “É mulato e tem vitiligo - uma perturbação na pigmentação da pele - e acho que por causa dessas características pode ter mais probabilidade de sofrer”, refere a jovem de 25 anos, da Póvoa de Santa Iria.
Tal como Ana Santos, também começou por ser vítima de bullying na escola, aos dez anos, mas há uma diferença entre elas: Inês partilhou com a sua mãe o que lhe estava a acontecer e juntas procuraram ajuda psicológica. Nunca escondeu, até porque com as marcas com que ficava no corpo era difícil alguém não notar. “Mas, mesmo partilhando a dor, sentia que sofria sozinha”, diz.
O episódio mais marcante de que tem memória assemelha-se ao caso recente do jovem que foi atropelado no Seixal enquanto tentava fugir dos seus agressores. Um rapaz empurrou-a e por muito pouco não foi atropelada. “Quase todos os dias o vejo e ainda hoje não consigo olhá-lo na cara. Na altura a professora de geografia assistiu a tudo e castigou-o”, conta.
Inês Araújo tentou, naquela altura, perceber o porquê de aquilo estar a acontecer com ela. “Gozavam comigo por a minha mãe ser coxa e por eu ter hiperactividade e andar vestida com roupas da feira. Eu pedia roupas de marcas, mas também sabia que não tínhamos dinheiro para isso”, conta, explicando que a ansiedade e o medo não lhe permitiam a concentração em casa ou na sala de aula e que por isso reprovou mais do que uma vez no sétimo e no oitavo ano. Aos 17 anos foi diagnosticada com depressão e o desespero levou a que tentasse o suicídio por três vezes. Recentemente iniciou um processo de terapia emocional e está a tirar o curso de auxiliar de acção educativa.
Sem terapia é difícil ultrapassar os traumas
Alguns dos casos que os pacientes de Helena Gonçalves contam assemelham-se aos de Ana e Inês. Muitos já são relatados na vida adulta, mas surgiram no início da adolescência e ficaram guardados na mente, recalcados, até a terapia os fazer vir à tona. “Sem terapia é muito difícil estas questões ficarem resolvidas”, alerta, lamentando o estigma que ainda existe em ir ao psicólogo.
Também ajudaria se “a escola e a sociedade em geral deixasse de ter uma cultura virada para a parte cognitiva, que esquece as emoções e os professores pudessem receber formação nesse sentido”. Isto porque, na opinião da psicóloga, as emoções como a tristeza ou a raiva ainda não são bem compreendidas. “Ao dizer-se não chores está-se a reprimir a emoção na criança, que vai passar a vê-la como algo que não deve fazer”, sublinha.
É possível fazer denúncias anónimas de bullying
Através de um questionário online, disponível no site da Associação Plano i é possível fazer denúncias informais e anónimas de bullying em contexto escolar. Chama-se Observatório Nacional de Bullying, foi criado em Janeiro de 2020 e num ano recebeu 407 denúncias, a maioria (67%) apresentadas por encarregados de educação das vítimas ou ex-vítimas. As vítimas ou ex-vítimas são mais raparigas (249) e os agressores mais rapazes (211), com idades entre os 12 e os 13 anos.
A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) apoia quem é vítima de bullying (linha gratuita nos dias úteis das 09h00 às 19h00 - 116 006). Existe ainda a possibilidade de dar conhecimento da situação às autoridades nomeadamente através dos profissionais da PSP ou GNR do programa Escola Segura.