A Casa Memória de Camões não pode continuar a ser politizada
O MIRANTE continua a dar atenção à Casa Memória de Camões e ao burburinho que se tem gerado com críticas e enjoos da actual direcção presidida por António Matias Coelho, que é também avençado da Câmara Municipal de Constância.
Rui Duarte foi arquivista na autarquia e convidado por Máximo Ferreira para pertencer aos órgãos sociais. Diz que está de saída assim que forem realizadas eleições. Mas falou abertamente sobre as polémicas e o que sabe sobre património não inventariado e do conhecimento dos sócios.
Qual o balanço que faz do seu mandato como membro do conselho fiscal da Associação Casa Memória de Camões? E como vê esta polémica à volta da liderança da actual direcção?
A minha relação com a associação começou por força das tarefas que executava na Câmara Municipal de Constância. Foi nesse contexto, para desenvolver uma rede de bibliotecas do concelho, que iniciámos também o trabalho na Associação Casa Memória. Estávamos em 2010/2011. O que se pretendia era criar um conjunto de sinergias em torno das bibliotecas, da leitura, do livro, potenciando os recursos que existiam. Não apenas da biblioteca municipal, mas naquele momento a estratégia da carta educativa, com a criação dos centros escolares, incluíam bibliotecas escolares. É neste contexto que surge a Casa Memória. Fazia todo o sentido incluir esta associação no projecto e assim foi. Tendo em conta a escassez de recursos, nomeadamente de recursos humanos especializados, tivemos de recorrer a outras formas de dar corpo ao projecto através de pessoas não especializadas na área que se encontravam desempregadas. Iniciámos esse trabalho mas infelizmente nunca o concluímos, por várias vicissitudes, nomeadamente a escassez de recursos humanos. Mas uma parte ficou tratada. Diria que talvez 25 a 30 por cento terá sido tratado.
Estamos a falar apenas de inventário da biblioteca?
Estamos a falar do tratamento documental da biblioteca, que incluía a parte do inventário, parte da catalogação, a componente da classificação e a componente da indexação.
O acervo que existia na Casa Memória de Camões está incluído nessa percentagem?
Sim, exactamente. É só a esse que me estou a referir.
E o trabalho foi feito na Casa Memória onde estavam os livros?
Sim, o trabalho foi todo feito na sede da Casa Memória. Os livros nunca saíram para outras instalações.
Os livros estavam devidamente acondicionados?
Sim. Esse conjunto de livros tinha já alguma organização. Provavelmente uma organização dada pela própria fundadora, Manuela de Azevedo. Recordo-me que a própria câmara municipal fez a aquisição de algum mobiliário mais adequado para esse efeito.
Dessa biblioteca, com a qual teve contacto, estamos a falar de livros que representam o legado de Victor Fontes?
Não incluía essa biblioteca de Victor Fontes. Nunca vi, nunca tive nenhum contacto com esse núcleo documental.
O Rui Duarte estava a catalogar livros que chegaram à Casa Memória de Camões vindos da biblioteca municipal?
Se a informação que tenho é correcta, aqueles seriam documentos da própria fundadora, da colecção pessoal e privada da fundadora.
Nessa altura Manuela Azevedo já não tinha qualquer intervenção?
Sim, por questões relacionadas com a idade. Creio que naquele momento já não estaria em condições para isso.
A direcção nessa altura tinha algum diálogo consigo ou o seu trabalho dependia exclusivamente da relação com a câmara?
De facto a minha relação era apenas com a câmara municipal.
A presidente da Casa Memória era a esposa do presidente da câmara, na altura, Máximo Ferreira?
Sim, era a esposa do senhor presidente de câmara. De qualquer forma não existia qualquer constrangimento nesse sentido.
O que pensa dos livros que manuseou? Quando pegava nos livros sentia que tiveram um dono, um leitor interessado? Ou eram livros daqueles que são oferecidos a todo o mundo?
Existiam os dois cenários. Existiam de facto documentos que já tinham sido manuseados, alguns deles com apontamentos, dedicatórias, com informação secundária que merece atenção. E existe um outro volume de documentos que resultam dessas ofertas, que não estão ainda manuseados.
Que informação tem sobre esses livros? A indicação é que a chuva terá destruído parte desses livros.
Essa informação é relativa à Biblioteca de Victor Fontes.
Fala-se em cinco mil livros?
Talvez sejam mesmo cinco mil livros. É um volume bastante considerável. Não sei precisar ao certo.
Esse trabalho ficou nos 25/30 por cento porque, entretanto, o Rui mudou de emprego, de entidade patronal?
Não, não. Ainda me mantive muitos anos em Constância. Terminou o trabalho porque os recursos não eram os suficientes. O trabalho na Casa Memória foi ficando para segundo plano.
A sala onde o Rui Duarte trabalhou nessa catalogação é um espaço onde é possível os livros estragarem-se? Chove lá dentro?
Os livros estavam salvaguardados e protegidos. No edifício da Casa Memória, numa sala em baixo do auditório. Havia uma sala contígua ao auditório, num segundo edifício, e seria aí que estariam então esses tais documentos de Victor Fontes. E esse edifício, sim, ainda hoje está bastante degradado.
Voltando aos livros da biblioteca: estão inventariados mas não aparecem no inventário que a actual direcção, ou as anteriores, apresentavam no final do ano?
Talvez tenha sido algum descuido porque esse facto e esse detalhe foi por diversas vezes mencionado pelo conselho fiscal.
Mas só lá estão os tais 30% inventariados?
Exactamente. O restante não, porque não foi possível concluir. É importante perceber que a minha relação com a associação é de associado e não de colaborador. E já saí da câmara em 2019. O trabalho na Casa Memória foi mais ou menos de um ano.
Quando o convidaram para o conselho fiscal?
Fui convidado algures entre 2012/2013. O presidente Máximo Ferreira lançou-me o desafio de integrar esse projecto. Na altura a associação estava numa fase em que praticamente não havia associados para compor a lista dos vários órgãos.
Câmara deve investir mas sem ter uma posição totalitária
O presidente do conselho fiscal, de que faz parte, é muito crítico do presidente da direcção e do presidente da câmara. Está solidário?
Acho que faz algum sentido essa intervenção crítica. Na medida em que parece estar a existir uma certa ingerência política no direito de associação, no direito às colectividades de gerirem os seus interesses. A autarquia deveria esclarecer melhor a sua posição. Os associados devem perceber o porquê de isso estar a acontecer, quais as vantagens para a associação, quais as vantagens para o concelho. É importante que isso seja transparente e nesse sentido acho que deve ser defendida essa posição.
Está a dizer que também sente que a câmara está a meter-se onde não deveria?
É importante que isso fique muito claro, muito esclarecido e que não restem dúvidas das razões e eventuais vantagens que isso pode trazer para a associação e também para o concelho.
A Casa Memória tem futuro? Não terá de ser um projecto político acima de tudo?
Deve ser um projecto que congregue diversos interesses. Nomeadamente interesses políticos. Penso que a câmara, dado o potencial do mito camoniano para o concelho, em termos culturais, políticos, turísticos, deve investir nesse projecto. Mas investir não significa, parece-me, ter uma posição totalitária ou particularmente dominadora
O espírito da fundadora, Manuela de Azevedo, deveria manter-se?
Creio que sim. Deve manter-se e deve ser perpetuado.
O actual presidente da direcção disse que não tinha sequer dinheiro para pagar a uma funcionária e que não lhe restou outra alternativa que pedir a intervenção da câmara…
Importa primeiro referir que o presidente da direcção tem uma relação de trabalho com a câmara que já se verificava antes de assumir a presidência. De facto, a associação parece não ter, até pelo número de associados e pelas receitas geradas, condições para suportar os encargos com um funcionário. Isso só tem sido possível porque a câmara municipal tem financiado esse custo. Se a câmara não o pode fazer por essa via e isso implica alterar os estatutos, é um aspecto jurídico que não sei responder.
Como vê essa mistura entre poder político e o facto do poder político se aproveitar de ter os seus homens de confiança na associação para de certo modo assaltar a associação?
É isso que tem de ficar transparente. São esses aspectos que têm de ficar muito claros para que não reste de facto nenhuma dúvida.
E é verdade que a presença nas assembleias tem sido maioritariamente de pessoas ligadas à câmara?
Afirmativo. A associação tem poucos associados e parte significativa dos associados tem relação com a câmara, com o agrupamento de escolas, com os grandes empregadores no concelho. Isto provavelmente resulta de ser um concelho pequeno. São de facto as contingências destes pequenos territórios e das proximidades que se vão gerando.
À margem
Camões fechado a sete chaves em Constância
Constância é uma vila com cerca de 900 habitantes, muito boa para descansar a cabeça depois de uma semana de trabalho, lugar ideal para ter uma casa de fim-de-semana para quem não enjoa o cheiro do fumeiro da fábrica do Caima, com o rio Zêzere mesmo ao lado a pedir uma descida de canoa e depois um mergulho nas águas limpas antes de chegaram ao leito do Tejo. Camões, o Príncipe dos nossos poetas, o renovador da língua portuguesa como a conhecemos nos tempos de hoje, tem fama de ter passado por lá e de ter gozado ali as delícias da sua vida cheia de aventuras que o levaram aos sete cantos do mundo.
A jornalista Manuela de Azevedo levou um projecto envenenado para Constância ao querer que, numa terrinha de misérias e encantos, conseguissem dar corpo a uma Casa Memória, que homenageia o maior poeta português de todos os tempos, que dá nome ao Dia de Portugal. Quatro anos depois de morrer, as intenções e os objectivos de Manuela de Azevedo estão por conta de um orçamento miserável de cerca de 15 mil euros suportados pela autarquia e destinados a pagarem o ordenado de uma funcionária. A associação está hoje entregue aos políticos, ou a quem vive das avenças dos políticos, e até o espólio da jornalista e estudiosa camoniana está por inventariar. Recorde-se que Manuela de Azevedo fundou a associação em 1977, foi a responsável pela encomenda da estátua ao escultor Lagoa Henriques, mobilizou o arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles para a construção do jardim horto de Camões e desencantou o dinheiro que foi preciso para as obras na casa quinhentista que está fechada a sete chaves.