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O ciclismo trouxe-o para Alpiarça e foi um amor para a vida toda
Dar ao pedal é uma paixão de longa data de António Marçalo

O ciclismo trouxe-o para Alpiarça e foi um amor para a vida toda

O ciclista é como um forcado: quando parte para uma etapa ou um treino nunca sabe como é que vai acabar. Porque os riscos e imponderáveis são muitos.

A comparação é feita por quem sabe do que fala. António Marçalo, 70 anos, foi ciclista profissional durante oito anos em equipas de topo e sentiu na pele essa dura realidade. No dia em que começou mais uma edição da Volta a Portugal partilhou com O MIRANTE algumas memórias dos tempos em que foi colega de equipa de antigas glórias como Joaquim Agostinho e Marco Chagas; e contou como o rapaz de Sesimbra se perdeu de amores por Alpiarça, onde casou e fez vida.

António Marçalo, 70 anos, é como entrevistado o espelho do que foi enquanto ciclista profissional: um homem humilde, avesso a protagonismos e ao auto-elogio, que gosta de ficar na sombra. Foi um carregador de pianos, um homem que dava tudo em cada prova em prol das estrelas da equipa, como Joaquim Agostinho e Marco Chagas. “Nunca vesti a camisola amarela e nunca lutei por isso. Quando partia para uma Volta a Portugal já sabia o que ia fazer”, vinca o antigo atleta do Sporting e dos Águias de Alpiarça.

Não é preciso muito tempo de conversa para se perceber que dali dificilmente vamos levar grandes títulos ou frases polémicas. Mesmo quando a entrevista resvala para a política, António Marçalo chuta para canto. É assunto a que não liga, mesmo vivendo há muitos anos numa vila que sempre foi extremamente politizada. Diz que mesmo que algum partido o convidasse para integrar uma lista não aceitaria.

Lamenta que Alpiarça tenha desistido do ciclismo e que não promova mais a sua ligação histórica à modalidade. “Alpiarça foi sempre uma terra do ciclismo, com grandes ciclistas, e ainda hoje é muito conhecida em todo o país por causa do ciclismo”, diz. Quando questionado sobre a eventual criação de um museu do ciclismo, considera que seria positivo para a terra.

Uma história de amor que começou na pista dos Águias

António Marçalo chegou a Alpiarça em 1977 para representar a conceituada equipa de Os Águias/Clok depois de ter corrido cinco épocas com a camisola do Sporting e uma pela equipa da Costa do Sol. Fez duas épocas no Ribatejo até a equipa profissional se extinguir, mas permaneceu na vila ribatejana pois arranjou emprego na fábrica cervejeira de Santarém que patrocinava a equipa. Continuou ligado à modalidade como treinador de jovens nos Águias e foi nessa condição que conheceu a sua futura esposa, Zélia, que era irmã de um dos seus pupilos e praticava atletismo no clube.

Foi um amor para a vida toda de que nasceu Daniel, o único filho do casal e que está à frente da equipa que trabalha no movimentado restaurante e pastelaria Danidoce que a família explora há anos na zona alta da vila, perto do recinto de feiras. Os tempos de pandemia não foram fáceis para o negócio, mas actualmente começa a recuperar. A honestidade, o respeito e o espírito de luta são valores que cultiva e que fez questão de transmitir ao filho.

Antes de abrir a pastelaria e, mais tarde, o restaurante, António Marçalo trabalhou também na venda de melão, dando gás à veia empreendedora que já vinha da juventude. Até porque o mundo do trabalho começou cedo para ele, nas terras que a família amanhava lá para as bandas de Sesimbra, ou na pesca artesanal na Praia do Meco.

Uma colecção de mazelas

A vida de ciclista não foi fácil, com treinos quase diários, estradas manhosas e bicicletas que estavam longe das máquinas que hoje se produzem. Mas António Marçalo era um atleta de antes quebrar que torcer e terminou todas as Voltas a Portugal em que participou; “e sempre longe do carro vassoura”. Só desistiu duas vezes em prova: uma porque partiu um braço numa queda; e outra porque se partiu a corrente e o carro de apoio não trazia bicicletas suplentes.

Ao longo da carreira coleccionou mazelas: partiu um braço, partiu uma perna, após uma queda esteve meia hora em coma; e febres altas impediram-no de alinhar na Volta a Portugal de 1974.

“Um ciclista é como um forcado quando vai para a arena. Quando vai para a estrada nunca sabe o que vai apanhar pela frente. Pode apanhar um carro, pode apanhar uma mota, pode apanhar um cão ou uma pessoa, pode sair da estrada... Vi e vivi muitas situações dessas. O pior acidente foi quando caí e parti uma perna num treino, logo no início da carreira. Nunca mais fiquei a pedalar certo”, conta.

Tem problemas de coluna desde os 43 anos por causa de uma queda em casa, tendo partido três vértebras. Durante esta fase de pandemia fez três operações mas hoje, apesar de coxear ligeiramente, consegue fazer a sua vida. Mas já pouco pega na bicicleta que o acompanhou na vitória numa etapa da Volta a Portugal há quase meio século e que guarda religiosamente como memória de tempos que recorda com saudade.

Uma etapa na Volta que lhe soube pela vida

António Marçalo correu a primeira Volta a Portugal com apenas 20 anos, em 1971, após ter estado parado um ano por ter partido uma perna numa queda. Essa lesão condicionou-lhe a carreira, retirando-lhe rendimento, nomeadamente nas etapas de contra-relógio. “E as voltas eram ganhas muitas vezes nos contra-relógios”, recorda, admitindo que poderia ter chegado mais longe na carreira.

A primeira prova profissional foi a clássica Porto-Lisboa, um esticão de 350km que não era para meninos e em que perdeu cinco quilos. O seu primeiro ordenado foi de 4.500 escudos mas havia Voltas a Portugal em que os ciclistas do Sporting arrecadavam 200 ou 300 contos, muito dinheiro para a época. Pelo meio fez o serviço militar obrigatório e o seu batalhão chegou a estar mobilizado para o Ultramar. À última da hora acabou por não ir.

Antes de ser ciclista profissional António Marçalo tinha passado pelas escolas de ciclismo do Sporting e pela equipa de amadores, onde foi campeão nacional. O seu talento, potenciado pelos muitos quilómetros a pedalar que fazia nas suas deslocações para o trabalho como aprendiz de estucador na Cruz de Pau, não passou despercebido e aos 20 anos era colega de grandes craques da modalidade.

Natural de Sesimbra, onde nasceu em 22 de Julho de 1951, representou a equipa profissional do Sporting de 1971 a 1974 e teve como companheiros nomes grandes do ciclismo nacional como Joaquim Agostinho, Firmino Bernardino ou Leonel Miranda. Fez três décimos lugares na Volta a Portugal e dessa época tem como coroa de glória a vitória numa etapa da Volta a Portugal em Sintra, em 1972, de que guarda uma fotografia com o então camisola amarela e colega Joaquim Agostinho. “Era o homem mais fácil de lidar. Era o máximo como ciclista e como pessoa. Ele nunca queria só para ele, queria tudo igual para todos”, diz do malogrado ciclista que foi seu chefe de fila.

Em 1975, António Marçalo integrou o projecto internacional Sporting Portugal/Sotto Mayor/Lejeune, participando em competições em França e Luxemburgo onde correu com lendas como Eddy Merckx, Raymond Poulidor, Luís Ocaña ou Joop Zoetemelk. Esteve escalado para a Volta à França mas acabou por ser desconvocado devido a um desaguisado com um director. Depois de os leões acabarem com o ciclismo, integra a equipa da Costa do Sol, em 1976, e Os Águias/Clok, em 1977 e 1978, tendo sido companheiro de outra glória da modalidade, o ribatejano de Pontével Marco Chagas, de quem é amigo e admirador.

A sombra do doping sempre pairou sobre o ciclismo e tanto Joaquim Agostinho como Marco Chagas perderam Voltas a Portugal por causa disso. António Marçalo nunca teve problemas desses. “Fui ao controlo várias vezes mas nunca acusei nada”, diz, referindo que na altura os ciclistas auto-medicavam-se e não havia o acompanhamento médico que há hoje, o que acabava por resultar em situações dessas.

António Marçalo com Joaquim Agostinho (foto DR)
O ciclismo trouxe-o para Alpiarça e foi um amor para a vida toda

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