Há uma nova vontade de viver que nasce com o cancro
Raquel Carvalho foi diagnosticada com um linfoma aos 26 anos. Com sonhos por concretizar e muita vontade de viver decidiu não se deixar derrubar pelas consequências da doença maligna no sangue. Ana Paula Jesus teve cancro da mama, deixou de poder pescar no Tejo mas ganhou uma força maior para viver. Desta conversa pode concluir-se que ter cancro não é o mesmo que ter uma sentença de morte.
Ao fim de algumas semanas a debater-se com um linfoma, Raquel Carvalho decidiu que tinha que mudar o rumo da sua vida. “Foi como se tivesse acordado para a vida, como se quisesse viver mais. De repente deixei de ser uma pessoa negativa, abri-me aos outros e comecei a fazer o que realmente gostava”. Aos 26 anos não se está preparado para se atender uma chamada e receber um diagnóstico de cancro do sangue, mas também não se está preparado para se abdicar dos sonhos. E Raquel decidiu não deixar escapar os seus.
As sessões de quimioterapia deixaram-na debilitada nos primeiros dias. O corpo ficava pesado, as mãos dormentes, a cabeça com uma dor que teimava em não ir embora e os enjoos não a deixavam comer. “Havia dias em que não conseguia fazer nada. Depois comecei a perceber que o segundo dia era melhor que o primeiro, que o terceiro era ainda melhor e decidi que não ia ficar deitada num sofá. Tinha que viver de alguma forma”.
Fascinada com carpetes desde que se lembra, Raquel Carvalho decidiu improvisar um cavalete e começar a entrelaçar tecidos. “Era um sonho que tinha e que comecei a realizar durante os tratamentos. Ainda está muito no início, mas quero continuar e um dia poder vender as minhas carpetes”. Em simultâneo, decidiu avançar com a concretização de um outro sonho que já tinha dado os primeiros passos antes do cancro: trabalhar como designer gráfico, o que implica criar conteúdo para marcas nas redes sociais e harmonizar toda a sua comunicação visual.
Para que os sonhos avançassem durante o cancro, Raquel Carvalho sabia que tinha que fazer contas. Se ia fazer quimioterapia no início da semana sabia que só quinta ou sexta-feira iria conseguir produzir. Sempre que conseguia, exercitava o corpo com uma caminhada e permitia-se comer algo que lhe apetecesse no momento. Às vezes uma bolacha, às vezes fast food ou um gole de cerveja. “Pode parecer clichê mas quando se tem cancro passa-se a dar mais valor às pequenas coisas”, diz.
Despir o cancro de tabus
“Esconder o cancro é escondermo-nos de nós. E o cancro não tem que ser um bicho de sete cabeças. Temos que pensar que o vamos vencer”. Foi este o pensamento a que Raquel Carvalho se agarrou quando uma nova biópsia confirmou que o linfoma, que antes estava limitado a uma zona do pescoço, se tinha espalhado pela clavícula e barriga.
Muito activa nas redes sociais, a jovem residente em Vale da Pinta, concelho do Cartaxo, não queria simplesmente desaparecer quando teve que passar da radioterapia para a quimioterapia. Tinha medo que o cabelo caísse, que a sua imagem mudasse. Ainda assim, despiu-se de tabus e preconceitos e começou a partilhar nas suas redes sociais vídeos com a sua rotina antes e depois das sessões de tratamento.
“Não conhecia ninguém que tivesse passado pelo mesmo e tinha tantas dúvidas de como iria ficar ou o que iria sentir, por isso decidi mostrar-me para preparar as pessoas que estão ou vão um dia passar pelo mesmo”. Os vídeos acabaram por ser, para Raquel, uma espécie de libertação onde se refugiava e encontrava apoio entre amigos e desconhecidos. “Alguns com cancro e muitas dúvidas. O que lhes digo é que chorem quando lhes apetece chorar, mas não chorem todos os dias, que não procurem respostas na Internet mas junto dos médicos e que não parem de viver”.
Ter cancro não é uma sentença de morte
Enquanto tomava banho, Ana Paula Jesus reparou num pequeno inchaço no peito. Era uma bolinha pequena à qual não deu grande importância. Às vezes sentia-a, outras vezes não, até ao dia em que lhe ocorreu que podia ser cancro. Marcou uma consulta, fez uma mamografia e dias depois chegou o resultado: cancro maligno na mama direita.
Fora do consultório médico esperava-a uma das filhas. Sem entrar em grandes rodeios, Ana Paula Jesus, revelou o diagnóstico com o mesmo número de palavras utilizado pela médica minutos antes. “Começou a chorar, mas não havia outra forma de o dizer. Apeteceu-me fazer o mesmo, ficar sozinha e perguntar para mim mesma: será que mereço isto?”. Rapidamente percebeu que não iria ter resposta, porque o cancro pode calhar a qualquer um. “E quando se tem cancro tem-se medo de morrer, pelo menos até se ouvir um médico dizer que tem cura, que vamos sobreviver”.
Quando iniciou as sessões de quimioterapia, em Setembro de 2020, no Hospital de Vila Franca de Xira, o cancro já tinha invadido 16 gânglios linfáticos. O cabelo começou a cair e Ana Paula Jesus percebeu que não ia parar. “Então decidi cortá-lo e aí percebi que o cabelo não era o mais importante. O que realmente importava era a cura, por isso, nunca escondi a minha careca”.
O espelho devolveu-lhe uma imagem desconhecida. Quem era aquela mulher careca e com mais 15 quilos? Ana Paula Jesus nunca tinha tido preconceitos com o seu corpo. “E não era agora que ia ter. Ninguém vive bem se viver em função do que os outros pensam”. Nas idas à rua, à igreja ou ao hipermercado não havia ansiedade, nem sequer vergonha, apenas muita irritação com os olhares de compaixão que recebia. “Não era porque tinha engordado, nem por estar careca. Não queria que tivessem pena de mim. Ter cancro não é o mesmo que ter uma sentença de morte”.
“Nunca tive tanta pressa de viver”
Ana Paula Jesus, 54 anos, nasceu em Vila Franca de Xira e reside na Coutada Velha, concelho de Benavente, há 28 anos. É conhecida como a Paula pescadora, alcunha que nasceu antes do cancro, pelos dias que passava no Tejo a apanhar lambujinha. Depois da operação e dos tratamentos de radioterapia e quimioterapia ficou com 60 por cento de incapacidade. Cozinheira de profissão, agora de baixa médica e a fazer medicação pelo menos nos próximos cinco anos, sabe que será “difícil voltar a fazer o que mais gostava”. Mas o mais importante, vinca, “é viver e poder ver a família crescer”.
“Nunca tive tanta fé na vida como durante o cancro. Nem tanta pressa de viver e de resolver todos os meus problemas”, diz, anunciando que já decidiu que quer mudar de casa, para uma com melhores condições. “Tem que ter ar condicionado, para viver mais quentinha”. Ana Paula Jesus, curada do cancro, não esquece o dia em que recebeu a boa nova. “Quando dizem que tiraram tudo é um grande alívio”.
Raquel Carvalho, agora com 28 anos, continua à espera de receber a mesma notícia: “Quando chegar esse dia vou fazer uma festa e correr para dizer à minha avó que já não tenho cancro. Até lá vou aproveitar a vida”.
A jovem que foi multada por comer no carro
Quem não se lembra da jovem do Cartaxo que foi multada em 200 euros durante o confinamento por estar sozinha a comer uma sopa dentro do carro durante a pausa do trabalho? Essa jovem que foi notícia nacional era Raquel Carvalho. Na altura já lutava contra a doença que a apanhou desprevenida, mas tinha receio de falar sobre ela, de a tornar pública. Oito meses depois, O MIRANTE voltou a encontrar-se com a jovem, numa manhã de Dezembro junto ao Mercado Municipal do Cartaxo. Hoje Raquel Carvalho não tem medo de contar a sua história, nem de falar das fases más da doença. Pelo contrário, tem orgulho em contar o que de bom nasceu na sua vida depois do cancro. Como diz, hoje é “uma Raquel diferente”.