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Carlos Saramago luta contra o cancro à procura de pintar a obra da sua vida
O pintor natural de Mação mantém uma atitude positiva de vida apesar da doença com que tem lutado ao longo da vida

Carlos Saramago luta contra o cancro à procura de pintar a obra da sua vida

Carlos Saramago luta contra um cancro galopante que já lhe roubou uma mão e o ante-braço. Aos 51 anos o artista de Mação não desiste e afirma que ainda lhe falta pintar e desenhar a obra da sua vida.

Carlos Saramago é natural de Mação apesar de ter nascido em Abrantes. O artista recebeu O MIRANTE a 4 de Janeiro, na sua casa e atelier à entrada da vila numa altura em que um cancro que o persegue há anos está numa das fases mais difíceis. Carlos Saramago nasceu com uma doença rara de pele - epidermólise bolhosa distrófica crónica - e luta contra o sexto cancro que há um ano lhe roubou a mão direita e o antebraço.
Até aos nove anos passava mais tempo no hospital do que na escola. “Faltava muito às aulas. Foram-me sempre dizendo que o problema seria cada vez mais grave, mas nunca pensamos nisso. Como passava muito tempo no hospital a minha mãe levava-me blocos de desenho e livros e foi assim que comecei”, lembra, contando que copiava os quadradinhos da banda desenhada. “Tenho uma colecção da Marvel e da DC já com mais de 300 livros. Sempre fui muito apaixonado por esse tipo de banda desenhada, foi a minha grande inspiração. Desenhava, recortava e brincava com os bonecos”, acrescenta Saramago que começou depois a desenhar os rostos dos doentes do hospital e na escola a desenhar temas que os professores de Educação Visual lhe davam. “Sou um autodidacta”, assume.
Quando era miúdo cultivava um estilo surrealista, mas mais para o abstracto. Por volta de 1986 começou a fazer exposições em bares e restaurantes. “Cheguei a expor em discotecas onde desenhava caricaturas”, prossegue. Aos 17 anos saiu de Mação e foi para a Suíça, no cantão italiano, junto ao Lago Maggiore. “A minha irmã e o meu cunhado estavam lá a viver e conseguiram arranjar-me uma licença para ficar”, conta. “Comecei logo a pintar na rua. Já lá estavam dois artistas e pensei que fosse dar bronca; um fazia caricaturas e o outro retratos; decidi que não iria fazer o mesmo. Tinha levado uns quadros de paisagens de Portugal que foram vendidos nos primeiros dias. Decidi continuar com as paisagens, só a marginal de Ascona desenhei-a em centenas de perspectivas; vendia tudo. Foi aí que percebi que tinha jeito para a pintura”, afirma.
Quando vivia na Suíça surgiu a oportunidade de fazer uma operação plástica às mãos. A cirurgia foi em Milão (Itália) e não correu bem. Esteve durante algum tempo em coma. Ao fim de seis meses regressou a Ascona e nunca mais pensou em operações, assegura. “Era muito boémio, o que ganhava gastava”, confessa, revelando que ganhava 350 euros por dia a pintar na rua. “Começava o esboço de um desenho, fazia quatro ou cinco rabiscos e tocavam-me logo no ombro a dizerem que já estava bom. Percebi que só as manchas e o abstracto da paisagem já funcionava”, diz o artista.

O regresso a Portugal
Volta a Portugal em 1993 e reencontrou-se com a mulher que viria a ser sua esposa até aos dias de hoje. “As autoridades suíças já andavam em cima de mim por andar na rua a altas horas da noite e pensei que depois com família seria ainda mais complicado. Decidi ficar em Portugal, enveredando pelos retratos e caricaturas”, conta. Foi para Monte Gordo (Algarve), onde esteve cerca de oito anos. Nos primeiros três anos “correu bastante bem”. “As pessoas não tinham coragem para dizer que aquilo estava péssimo. Como levava muito barato iam comprando” afirma, com um sorriso. De Monte Gordo ia até à costa espanhola, até Sevilha e Canárias. Mais tarde tentou o norte de Espanha, na Galiza, conta Saramago, que com o nascimento do segundo filho fixou-se na Nazaré com a família.
Na Nazaré andou cinco anos a fugir à polícia. “Não tinha licença e a câmara também não a queria dar. Às vezes a polícia de choque juntava-se à minha volta, à espera que arrumasse o material”, relembra, até ao dia em que agarrou num papel que afixou num poste com a mensagem: “A Nazaré não valoriza a arte nem dá apoio aos artistas de rua”. Carlos Saramago conta que um dia depois foi chamado à câmara onde o vereador lhe entregou a licença para poder pintar na rua. “Estivemos lá 23 anos...”, sublinha.

A luta contra o cancro
Carlos Saramago combate o seu sexto cancro, um melanoma de pele. “Tive primeiro na mão esquerda, até fiz um quadro antes, que representava a mão a soltar-se entre borboletas e margaridas”, recorda. Depois o cancro passou para a cabeça e para um pé. “Fui tratado e depois apareceu na mão direita. Veio descontrolado e sofri a amputação da mão e do antebraço há cerca de um ano. Há três ou quatro meses soube que estava a espalhar-se pelo braço e axila”, revela o pintor, avançando que a doença está completamente descontrolada e que as células cancerígenas passaram para o sangue.
O artista emagrece de dia para dia, por muito que coma, mas confessa que está a estudar com os médicos um tratamento que não cura mas que lhe poderá dar mais alguns meses ou anos de vida. “Este cancro está a dar cabo de mim. Deixa-me cada vez mais fraco, mas ainda assim mantenho uma atitude positiva porque acredito que ainda não chegou a altura de ir ao tapete”, garante. Mesmo com as restrições que a doença lhe impõe Saramago não atira o pincel ao chão. “Quero continuar a estrada porque ainda não fiz a obra de arte da minha vida”, conclui.

Pobreza e a venda de uma obra por 12 mil euros

Carlos Saramago vem de uma família muito humilde. “Os meus pais não tinham condições monetárias para me oferecerem brinquedos, não havia dinheiro em casa”, lembra o artista, contando que chegou a pedir nas ruas do concelho de Mação de mão dada com a mãe e com a irmã mais nova. O pai ficou numa cadeira de rodas aos 40 anos depois de ter sofrido um AVC e ter ficado sem um pé. Pedir na rua era a única forma de sustento para os cinco filhos do casal. “Trazíamos pouco dinheiro, mas dava para matar a fome”, recorda Saramago com tristeza, contando que muitas vezes o almoço e o jantar era café e sopas de pão.
O pintor reconhece que só a partir de 2015 é que o seu trabalho começou a ser mais mediático, graças também às redes sociais. Expôs na Suíça, Itália e Espanha. Em Portugal começou com as exposições colectivas e depois individualmente. A explosão junto do público deu-se com a amputação. “No dia a seguir a ter sido amputado ligaram-me de uma leiloeira a dar a boa notícia que tinha vendido quatro quadros. Não queria acreditar”, confessa, considerando que talvez os compradores tivessem achado que iria ficar por ali. Já conseguiu vender um quadro online por mais de seis mil euros, enquanto o seu recorde em galeria é de 12 mil euros por uma tela.

O apoio da Câmara de Mação

Recentemente Saramago teve em exposição 47 obras na galeria QuARTel em Abrantes sob o título “Linguagem surrealista por um fio”, juntamente com alunos do pintor Massimo Esposito; pintura mas também escultura, onde usa materiais recicláveis. “Eu não fico cá, porque é que a arte tem de ficar?”, questiona. Quando as vendas de quadros começaram a aumentar, no início do ano passado, a Câmara Municipal de Mação reservou alguns trabalhos a Carlos Saramago. “Depois das vendas terem abrandado escolhi uma série de quadros para a câmara, apresentei-lhes a proposta e eles aceitaram”, revela, adiantando que quer oferecer alguns desenhos para complementar a colecção municipal.

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